quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

907- PODER MUNICIPAL 4 - Democracia no Estado.

Capítulo II
 DEMOCRACIA NO ESTADO


A ideia de democracia como nos referimos anteriormente, vincula-se a ideia de democratização do Estado, implicando a ideia de representação em alguns órgãos estatais. A democracia direta é, segundo alguns, obstaculizada pela população das cidades contemporâneas, problema já levantado por Rousseau. Al­guns mecanismos de democracia semidireta como plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de leis e o veto popular, muitas vezes são utilizados como forma de manutenção de governos autoritários no poder. Regimes de governo democráticos têm seus mecanismos utilizados para a manutenção de grupos por maior tempo no poder como veremos adiante.
Uma nova visão do Estado como um espaço efetivamente democrático requer que não pensemos a democracia apenas para como o voto para representação no Estado, mas sim como construção de canais de comunicação da sociedade organizada, com as instituições estatais e privadas. Todo espaço existente dentro do Estado deve estar organizado de forma a permitir que a sociedade se manifeste. Isso implica que a democracia, como processo, tem que superar a ideia de representação em determinados órgãos estatais, partindo para a ideia e a construção de uma Constituição democrática, que estruture a participação e discussão nos órgãos do próprio Estado, na empresa, nas variadas organizações sociais, na comunidade, no bairro, no trabalho, na escola, na Universidade, etc. A finalidade primeira da Constituição seria, portanto, a criação de estruturas democráticas na sociedade e não apenas para o Estado. Uma Constituição de princípios, em que os cidadãos não estejam presos a amarras de teorias econômicas e sociais, mas na qual possa a sociedade promover mudanças em amplos processos de discussão, por intermédio dos mecanismos constitucionais de participação social, respeitando-se princípios essenciais e universais de direitos humanos.
 A universalidade desses princípios, inseridos na Constituição, cria dificuldade saudável no estabelecimento de seu conteúdo valorativo, pois, ao se procurar princípios de direitos humanos comuns às diversas culturas, estaremos excluindo, desses valores, vinculações a sistemas econômicos específicos e a limitações de cunho cultural, religioso, filosófico e político de forma efetiva, e não apenas como discurso constitucional.
1. A IDEOLOGIA CONSTITUCIONAL
Questão fundamental que deve ser aborda é a discussão sobre a ideologia constitucional. O professor Washington Peluso Albino de Souza traz contribuição inestimável ao Direito Constitucional, quando estabelece o conceito de ideologia constitucionalmente adotada[1].
Em inúmeros trabalhos sobre o Direito Econômico, o professor ensina que a Constituição tem ideologia própria, desvinculada muitas vezes de sistemas econômicos específicos. Dessa forma, o texto constitucional tem vontade própria a partir do momento de sua elaboração, adaptando-se a situações históricas diversas, nas quais, pelo princípio da economicidade, poderemos encontrar a linha de maior vantagem ou, em outras palavras, qual o princípio, em face da ideologia constitucional, deve ser aplicado naquela situação específica. A Constituição, nessa perspectiva, é extremamente dinâmica e democrática, pois, longe de dogmas econômicos e sociais, ela se adapta a situações as mais diversas, para então, de acordo com a realidade histórica e a vontade popular, assegurada por princípios constitucionais fundamentais, redirecionar os destinos do Estado em constante processo de evolução democrática da sociedade democrática.
Nesse ponto, a obra do Professor Washington Albino é importante para o desenvolvimento deste livro. Ao defendermos nova Constituição, na qual os princípios são mais valorizados, podemos excluir de seu conteúdo várias regras em sentido restrito, mas mesmo que isto não ocorra a leitura constitucional condiciona, por intermédio dos princípios constitucionais, a atuação estatal e privada, e o modelo socioeconômico, embora não estabelecido pelo texto constitucional, estará condicionado a esses princípios, podendo ser modificado conforme a vontade critica da população.
 Na análise do atual texto constitucional, são vários os condicionantes da atuação do Estado nos mais variados domínios, inclusive nas questões econômicas e sociais. O texto de 1988, assim como todos os textos constitucionais modernos, em graus diferenciados,estabelece, além das normas de organização e funcionamento do Estado, garantia de direitos fundamentais das pessoas, fazendo sempre opção por determinado modelo econômico. O Professor Washington Albino, em obra, ensina que o Direito Econômico não se vincula a uma ideologia econômica especifica, mas por intermédio de mecanismos teóricos importantes extrai do texto constitucional a sua ideologia. A Constituição pode ser vinculada a um sistema ou um modelo econômico específico, traduzindo opção pelo liberalismo ou pelo socialismo, nas suas variadas versões constitucionais, ou ainda por um modelo neoliberal, que comporta diversos modelos constitucionais com graus de intervenção do Estado no domínio econômico, variáveis, assim como graus de preocupação social também variáveis. Dessa forma, o que chamamos de neoliberalismo, neste texto, é um modelo constitucional que opta por manter a economia capitalista, comportando desde um capitalismo social, até um modelo de Estado mínimo, ideia com a qual a expressão se encontra mais próxima no momento atual[2] 
 Importante notar que o chamado Estado social se traduz em um modelo clientelista que comporta, entretanto, graduações diferentes na preocupação socioeconômica, permitindo que den­tro desse modelo possamos vislumbrar Constituições mais socializantes e mais liberalizantes, não ultrapassando, porém, a barreira que separa esse tipo de Estado social em um extremo do Estado liberal e em outro do Estado socialista.
 Note-se, também, que o movimento neoliberal, que o mundo assiste neste final de século pode ser comparado a um retorno ao liberalismo clássico. O capital encontra-se em estágio completamente diferenciado de desenvolvimento, no qual, ao lado de um processo gigantesco de concentração econômica que acompanha o processo de globalização, a expressão livre mercado tem um sentido muito mais histórico e ideológico. A livre concorrência e livre iniciativa, princípios em nome dos quais o Estado passa a intervir nas questões socioeconômicas, estão hoje restritas a alguns setores econômicos, que giram em torno dos grandes conglomerados econômicos, a cada momento mais reduzem o poder dos Estados nacionais[3]
Em vista dessas reflexões, os dados a seguir são de extrema importância e deverão por isso ser destacados. Em primeiro lugar, com a transferência de competências dos Estados nacionais para regiões econômicas, o Estado, que de forma lenta vem se democratizando, perde poder para centros econômicos maiores, baseados em relações econômicas, que nada têm de democráticos em sua estrutura organizacional.
O segundo ponto é a constatação de que todas as Constituições vinculam-se a modelos econômicos. Sejam liberais, que trazem de forma radical a garantia da propriedade privada contra qualquer intervenção estatal; sejam socialistas que eliminam qualquer forma de propriedade privada dos meios de produção; sejam sociais-liberais ou neoliberais, que em graus diferenciados regu­lam a presença do Estado no domínio econômico para garantir a continuidade do capitalismo com maior estabilidade econômica.
Neste trabalho procuramos justamente trazer como pro­posta modelo de Constituição que permita à sociedade fazer suas transformações por processos democráticos constitucionais. Seria a ideia de uma possível e permanente revolução constitucional, sustentada em sólidas bases de uma Constituição democrática que permita mudanças sem com o ordenamento constitucional.
Para que isso seja possível, duas mudanças na estrutura das Constituições são necessárias. Primeiramente, estas deverão ter reduzidos os seus princípios apenas àqueles que sejam univer­salmente aceitos. Guardemos, para compreensão, que esses con­ceitos, para serem considerados universais, deverão ser aceitos por culturas de povos com organizações sociais e econômicas bastantes diversas. Isso implica a ideia fundamental de que os princípios econômicos deverão abandonar o texto constitucional; não quer dizer que a ordem econômica não será condicionada por nenhum princípio, mais sim o contrário, que o modelo econômico, seja ele qual for estará condicionado a princípios universais o que não acontece atualmente, visto que com frequência as políticas econômicas públicas ou privadas se distanciam bastante dos chamados direitos humanos. Há sempre um imperativo econômico que faz com que direitos universais básicos, como a vida, percam importância diante das questões de ordem econômica. Esta é uma questão que se faz sentir inclusive nas relações entre organismos financeiros internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e, por exemplo, a Comissão de Direitos Humanos da ONU. As políticas desses órgãos jamais foram coincidentes.[4]
 A não-consagração de um modelo econômico pelo texto constitucional poderá permitir ainda a mudança ou a passagem de um modelo para o outro, fundado em bases diversas, sem que seja necessário um rompimento com a ordem constitucional que assegurará de forma profunda procedimentos democráticos de mudança. Portanto, desde que a mudança do modelo econômico e social seja legitimada pela vontade da população, este será sustentado pelas instituições democráticas estatais, que promo­verão sua passagem segura, evitando que direitos fundamentais e universais; como a vida e a segurança, sejam ameaçados.
Isso implica desconsiderar a propriedade privada dos meios de produção como direito fundamental, uma vez que a pro­priedade privada como direito absoluto deixou de existir há muito, com a função social da propriedade. Esse direito poderá estar garantido nas normas infraconstitucionais ou não, e sua extinção, ou permanência, dependerá da vontade consciente da população manifestada pelos canais de participação popular.
Supera-se a falsa dicotomia Direito e Economia como se o primeiro pudesse aguardar os pseudo-imperativos do segundo. Lembra o Professo Washington Albino que alguns autores defendiam a submissão à ciência econômica, uma vez que existem imperativos dessa ciência contra os quais o direito não podia regulamentar. Contra esses argumentos se insurge nosso mestre, que afirma que o Direito deve e pode contrariar a ciência econômica, mesmo porque são várias as opções técnicos para se atingir variados objetivos na economia, e não se pode escolher aquela que contraria os princípios constitucionais. Nessa linha, nós raciocinamos, acrescentando, entretanto, que a Constituição não deve fazer opções econômicas, e lembrando que a simples exclusão da ordem econômica da Constituição pode significar a opção pelo liberalismo. Não se defende a opção pela não-intervenção do Estado no domínio econômico, mas sim a não-consagração de nenhum modelo econômico na Constituição, deixando que as normas infraconstitucionais estabeleçam as regras, sempre condicionadas por princípios constitucionais.
As regras em sentido restrito no texto constitucional devem resumir-se àquelas estritamente necessárias para garantir o funcionamento de uma estrutura democrática de Estado e de sociedade, que estudaremos mais adiante.
Teríamos então, na Constituição, graus diferenciados de abrangência de seus princípios e regras. No grau de menor abrangência, situam-se as regras expressas em sentido restrito, que estariam regulando situações específicas necessárias para o funcionamento do Estado democrático e para a garantia de direitos fundamentais da pessoa humana. Em um grau maior de abrangência, as regras expressas em sentido amplo. Tais regras se aplicam a um número maior de situações e se complementam, mostrando-se de maior ou menor importância conforme a situação fática em que se encontram devendo a ideologia constitucionalmente adotada apontar qual o princípio que se aplica em situações específicas, de possível antagonismo. No mesmo grau de abrangência encontramos regras deduzidas em sentido amplo. Estas regras não estão expressas, mas podem ser deduzidas a partir da leitura e interpretação da Constituição em confronto com situações históricas determinadas. A tais regras se aplicam as observações acima feitas para as regras expressas em sentido amplo.
Finalmente direcionando-se como valor maior, ou princípio-síntese de todos os demais, está a ideologia constitucionalmente adotada, que na Constituição democrática legítima o processo democrático, que por sua vez é o processo legitimador de todas as mudanças.


[1] SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva 1980; SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras leituras de direito econômico. Fundação Brasileira de Direito Econômico, 1977; SOUZA. Washigton Peluso Albino de. O discurso intervencionista nas constituições brasileiras. Cadernos de Direito Econômico, n.1, 1983: SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico do Trabalho. Belo Horizonte: Fundação Brasileira de Direito Econômico, 1985.
[2] NOZIK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991; BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1995; MILLON-DELSOL, Chantal. L’etat subsidiaire. Paris, Presses Universitaire de France, 1992, SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo, democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961
[3] ORDOÑES, Jaime. Derechos fundamentales y Constitucion. Contribuciones, 1993; ACKERMAN, Bruce. La justicia social en el estado liberal, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993;HAYEK,Friedrich A. Direito, legislação e liberdade. Uma nova formulação dos princípios de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985, v. III
[4] FERREIRA, Raul. Le nouvel orde economique et la protection des droits de l’homme. Nations Unies. New York, 1986

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