TÓXICA É A DROGA DA SEGREGAÇÃO[1]
Virgílio de Mattos[2]
“Para os EUA e seus estimados 14,8 milhões de usuários de drogas ilícitas, é impossível julgar ou condenar países, como a Colômbia e o México, que apenas estão respondendo (viva o mercado livre!) à demanda norte-americana (...) No fim do caminho, só existe uma solução (...): legalizar e descriminalizar o uso de drogas. O problema é que essa deveria ser uma decisão global, sem nenhuma exceção. O benefício seria este: embora os viciados em drogas continuassem a existir, ninguém ficaria rico com o sofrimento deles. Isso foi o que aconteceu quando a Lei Seca foi revogada nos EUA em 1933. Os bêbados continuaram existindo, mas não houve outros Al Capones”.[3]
Queria dizer a vocês que a única epidemia real no imaginário do “combate às drogas” é a estupidez. A burrice de tentarmos trabalhar com metáforas militares uma questão que está no limite do desejo. Seja prazer ou pulsão de morte não podemos, entre o trágico e o cômico, fazer coro aos desafinados contentes que lucram com a segregação. Aqui não.
Sabemos que a vida é louca, que o bagulho é doido e que o processo é que é sempre lento, como dizem os presos desde o passado longínquo quando as Ordenações Filipinas, como todo texto legal de sua época, misturava conceitos do direito romano e canônico, estávamos em 1603.
E observem que de lá pra cá o discurso muda muito, enquanto a prática muda pouco.
No título LXXXIX, das Ordenações Filipinas o legislador confunde substância entorpecente, ou tóxica com substância venenosa...Veja-se:
“Que ninguém tenha em sua casa rozalgar[4], nem o venda, nem outro material venenoso”.
Só pode ser o tal “barato do veneno” que minha geração gostava tanto e que levou muitos, mas vamos “deixar baixo”, como diz o preso.
O Código Criminal do Império, de 1830, dá um certo descanso à matéria, e só com o Regulamento de 29 de setembro de 1851, disciplinando a polícia sanitária e a venda de substâncias medicinais é que teríamos a “nova legislação” do Brasil independente – independente dos portugueses, apenas dos portugueses.
Esta era a previsão, ou o tipo penal, do legislador republicano de 1890:
“Expor à venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem formalidades previstas nos regulamentos sanitários”.
Nosso vício de origem, até hoje, continua sendo o Decreto-lei n. 891, de 25 de novembro de 1938. Seu texto, comenta-se, teria sido inspirado na Convenção de Genebra, de 1936, e traz, pela primeira vez sistematizada, a relação das substâncias consideradas entorpecentes, garantia para o homem comum – que tem na listagem da substância proibida, um limite -, que vê, pela primeira vez, estabelecido o desenho mais tarde incorporado por todas as legislações antitóxicos, vigendo até hoje: normas restritivas de produção, tráfico e consumo, bem como a hipótese de internação e interdição do usuário de drogas.
São, não mínimo, 75 anos de modelo equivocado. Lucrativo para alguns, mas equivocado.
Como se vê, o absurdo desse controle é antigo, mas as pessoas continuam usando substâncias, proibidas ou não, que produzem euforia, calma, agitação, pasmaceira, sono, fome, prazer ou dor. Cada um goza como pode e como quer. Afastado, obviamente, alguns limites entre adultos e crianças e ausência de coação. Quanto ao resto é a segunda parte da música do Tim Maia: vale tudo mesmo!
Cada momento vivido por qualquer sociedade, teve sua substância “da moda” proibida ou reprimida. Mas a imbecil ideia de que haveria uma teoria do “trampolim” para outras drogas, mais "pesadas", mais “difíceis”, sempre custou muito esforço pra eu entender. Onde é que já se viu? O menino começa a comer açúcar e, inexoravelmente estará injetando cocaína nas veias passados alguns anos?
Mais o diabo mais feio, dizem, é o crack.
As mais antigas provas arqueológicas do consumo humano da folha de coca, datam do IV período pré-cerâmico, que se estende desde o ano 2.500, até o ano 1.800 A.C.
A presença milenar da coca nas sociedades andinas também pode ser comprovada pelo costume ancestral de enterrar junto aos mortos, bolsas com folhas de coca para “el largo viaje a la eternidad”.[5]
A coca é originária da região de Macchu-Yunga, no antigo Alto Perú (hoje Bolívia), e é extraída de um arbusto erithroxylon coca lam que alcança até três metros de altura e produz flores amarelas e frutos vermelhos, têm umas folhas ovais características que chegam a medir de três a sete centímetros de altura, por três de largura.[6]
A cocaína é um alcalóide que se extrai da folha de coca, cuja fórmula química é C17 H21 NO4. Seu isolamento em laboratório e sua identificação como o principal dos numerosos alcalóides que contém a coca teve lugar na Alemanha, entre 1855 e 1862, ainda que o princípio básico da produção do que hoje se denomina “pasta” (ou pasta básica) de coca (mescla de alcalóide composta de dois terços de cocaína) já fosse conhecida pelos índios colombianos desde muito antes.
O descobrimento da cocaína foi resultado de uma época em que a Europa começava a levar a sério as virtudes da folha de coca, graças, sobretudo, à obra do neurologista italiano PAOLO MANTEGASSA, Sulie virtio igieniche e medicinale della Coca, Milano, 1859. Durante muito tempo se continuou falando da coca quando se pensava na cocaína, confundindo ambos os termos ou mesmo atribuindo à cocaína todas as propriedades conhecidas da coca (como se fosse sua essentia ou seu único princípio ativo).
Do mesmo 1884 a publicação do ensaio Über Coca, de SIGMUND FREUD, que despertou o primeiro interesse geral sobre a droga. Freud tampouco distinguia a coca da cocaína e as recomendava indistintamente contra todo tipo de enfermidades, especialmente para aliviar tensão nervosa, fadiga e a neurasthenia (mal-estar físico). Ainda que tenha abandonado suas investigações sobre a cocaína em 1887, Freud deixou claramente firmado que devia ser considerado como um estimulante do tipo da cafeína e não como narcótico do tipo do ópio (papaver soniferum) e da maconha.
A partir da última década do século XIX o multidisciplinar uso terapêutico do extrato de coca começou a ser desbancado (sob os “generosos auspícios” da PARKE DAVIS) pelo consumo da cocaína pura, com fins recreativos, em forma de pó inalatório, tal como a temos hoje. Este tipo de uso estendeu-se rapidamente por todas as classes sociais, tanto nos EUA, quanto na Europa.
ROSA DEL OLMO (1996, p. 77)[7] advertia:
“O econômico é um aspecto difícil de separar dos aspectos que envolvem o cultivo e uso da folha de coca, já que para a maioria da população indígena dos Andes – isto é, para uns oito milhões de habitantes – não existe nenhum ato da vida doméstica, social ou religiosa no qual a coca não desempenhe algum papel”.
Mas o demônio é o derivado mais fácil de ser produzido e relativamente recente na crônica policial do país, o crack – onomatopéia da droga “estalando”, quando é fumada.
É introduzida no porto de Santos-SP, no início dos anos 1980 -, um subproduto do refino da cocaína, ou mesmo a partir dela própria “cozinhado”, é fumado, em vez de inalado ou injetado – como a própria cocaína. Tomou conta do litoral e do interior agro-industrial do estado de São Paulo, sem falar na capital e hoje está disseminado menos nas pequenas cidades.
Em Belo Horizonte é encontrado no cinturão de favelas que cerca a capital em 9, entre 10 ocorrências policiais. A única droga presente em 100% das ocorrências policiais atende pelo prosaico nome de "cachaça".
Data do início dos anos 1990 a sua vulgarização - dado ao seu baixo preço e altíssimo poder de adição – devastando do explorador ao explorado, sem qualquer distinção, nem de classe.
Junto ao álcool vem aparecendo em muitos crimes violentos, e, em especial, em furtos qualificados pelo rompimento de obstáculo – leia-se quebras de vidros de veículos - desde meados dos anos 1990. Mas é o álcool a droga presente na maioria dos crimes, sejam violentos ou não.
Como assinala ROSA DEL OLMO (1990, p. 46)[8]:
“[...] tudo dependia na América Latina de quem consumia [droga]. Se eram os habitantes de favelas, seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornava agressivos. Se eram os ‘meninos de bem’, a droga os tornava apáticos”.
O tráfico não era a indústria vista hoje, com capital financeiro incluído entre as atividades mais rentáveis, atrás apenas do contrabando de gente, armas e munições. O sistema legal antitóxicos baseia-se na tese (velha de Feürbach) da prevenção geral – teoria da coação psicológica -, reabilitação dos dependentes - que não passa, na prática, de falácia, engodo e giro na roda da fortuna do parque de diversões da indústria do crime – tentando evitar, no discurso teórico, que estes, em função do vício, cometam delitos de outra natureza.
Dito em português claro: é crer que coelhos botam ovos de chocolate.
A droga “pesada” que impera na maioria dos crimes violentos é a cachaça!
Além da lei, o que há?
Obviamente a questão não é legislativa, não pode ser legislativa. Se não é legislativa é volitiva? Podemos concordar que só aquele que quer deixar uma adição pode ser acompanhado para isso, sem volição não há nenhuma possibilidade de ação, vocês não me perdoem.
Não há de ser possível incluir segregando. Não é factível que se obrigue a alguém a deixar de fazer uso de uma substância pela proibição legal ou ameaça de internação. Assim fosse, bastaria que proibíssemos a estupidez.
Só é possível trabalharmos a questão do crack com aquele que quer sair do seu uso. Caso contrário apenas estaremos engordando ratos já muito gordos
Estamos dizendo não, vão à merda! Àqueles que propõem a internação involuntária como solução de/para alguma coisa, quem dirá da adição ao crack.
São parasitas, filhos da puta -ia dizendo, mas refreei-me a tempo- conhecidos que dizem ser capazes de tratar se trancar. Como tratar, vamos lá concedo a expressão, se estão trancados contra a vontade?
Desesperado pra ter paciência, pra dizer com Tom Zé, com esses sacanas, que fazem mágica, que acabam com o vício e a dor de corno em três dias e relaxam o flagrante e trazem a pessoa amada em sete.
Pela atenção, pelo carinho com que me receberam, meu muito obrigado.
[1] - Roteiro de intervenção na Roda de Conversa, CRP/MG Políticas Públicas de Álcool e outras drogas. BH - Casa do Jornalista, 20/7/2011.
[2] - Graduado, especialista em ciências penais e mestre em direito pela UFMG. Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Lecce (IT). Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Autor de Crime e Psiquiatria – Preliminares para a Desconstrução das Medidas de Segurança, A visibilidade do Invisível e De uniforme diferente – o livro das agentes, dentre outros. Advogado criminalista. virgilio@portugalemattos.com.br
[3] - Carlos Fuentes, apud Mylton Severiano, Caros Amigos – Ed. Casa Amarela : SP, ano IV – número 48 – março 2001.
[4] - Rozalgar é apenas o nome vulgar de realgar, que vem a ser um “mineral monoclínico, amarelado ou avermelhado, sulfeto de arsênico, comumente empregado em pirotecnia para se obter chama branca e brilhante”
[6] - ELIAS, Riascos e VALLEJO, Zuleta, Estupefacientes y Alucinógenos ante el Derecho Penal Colombiano, Bogotá : Temis, 1971.
[7] - A economia da coca, Discursos Sediciosos, ano l, número 2, ICC, 1996: p. 77.
[8] - A face oculta da droga, RJ : Revan, 1990, p. 46.
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