sábado, 23 de julho de 2011

576- Mecanismos ideológicos 4 - Nomeações - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Mecanismos ideológicos 4
Nomeações


A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif. Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga comentou para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da cinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.[1]
Badiou menciona que o anti-semitismo de Barre não mais é tolerado pela média da opinião publica francesa. Entretanto um outro tipo de anti-semitismo surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo mas debater a existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.[2]
Assim como ocorre com varias outras palavras mas de forma menos radical (liberdade e igualdade por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Badiou ressalta que o debate que envolve o anti-semitismo e a necessidade de sua erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de descriminação, perseguição, exclusão ou racismo. Existe uma compreensão no que diz respeito à palavra “judeu” e à comunidade que reclama este nome, que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos valores, superior a todos os demais. Não propriamente superior mas em um lugar diferente. Desta forma pode-se discutir qualquer forma de discriminação, mas quando se trata do “judeu” a questão é tratada como universal, indiscutível, seja no sentido de proteção seja no sentido de ataque. Da mesma forma, toda produção cultural, filosófica assim como as políticas de estado tomam esta conotação excepcional. Talvez nenhum outro nome tenha tido tal conotação, ou para Badiou, a força e a excepcionalidade do nome “judeu” só tenha tido semelhança com a sacralização do nome Jesus Cristo. Não há, entretanto, um medidor para esta finalidade. O fato é que o nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de identidade e foi especialmente sacralizado.
O nome “judeu” é um nome em excesso em relação aos nomes ordinários e o fato de ter sido um vitima incomparável se transmite não apenas aos descendentes mas a todos que cabem no predicado concernente, sejam chefes de estado, chefes militares, mesmo que oprimam os palestinos ou qualquer outro. Logo, a palavra “judeu” autoriza uma tolerância especial com a intolerância daqueles que a portam, ou, ao contrário, uma intolerância especial com os mesmos. Depende do lado que se está.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazista ou fascista) seja de sacrifício (como cristãos e judeus e mulçumanos), esta nomeação nos expõe ao pior.
Esta mesma lógica se aplica a nomeação de um Estado judeu. Primeiro, um estado democrático não pode ser vinculado a uma religião. Segundo, porque esta nomeação pode gerar privilégios. Uma democracia exige um Estado indistinto do ponto de vista identitário. Entretanto, como isto seria possível dentro da lógica moderna, onde o estado nacional depende da identidade nacional para o exercício centralizado do poder?
Vários equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do Estado judeu aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também comprometidas com um discurso democrático, com práticas de tortura e assassinatos seletivos por parte do Estado de Israel, por ser este um Estado “judeu”.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados.


[1] Lembramos aqui outro mecanismo de dominação e manipulação do real já mencionado anteriormente que consiste na prática amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo fato particular. Slavoj Zizek no livro “Plaidoyer em faveur de l’intolerance” menciona dois exemplos norte-americanos. Cita o caso, por exemplo da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o namorado e engravida e resolve abortar para não atrapalhar a sua carreira. Este é um caso que ocorre entre milhares, talvez milhões de outras situações. Entretanto o poder toma este caso como exemplo permanente para demonstrar o egoísmo que representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral pelo particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de manipulação para a dominação se torna mais fácil.
[2] É fundamental ler Giorgio Agambem, especialmente o livro Homo Sacer, publicado pela editora UFMG, Belo Horizonte. Ler também o texto Profanation, do mesmo autor, publicado em Paris, 2005 pela editora Payot e Rivages. Neste ultimo texto o autor explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do livre uso das pessoas  determinadas coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Através da profanação, do rompimento do rito com o mito, é possível devolver estas coisas, palavras, ao livre uso.

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