quarta-feira, 15 de junho de 2011

469- Federalismo - Livro - 19 - os entes federados no Brasil


PARTE II
O Federalismo Brasileiro na Constituição de 1988
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza

3- OS ENTES FEDERADOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
            A denominação “entes federados” é dada para as territorialidades que integram uma federação, com autonomia política, legislativa, administrativa, financeira e, principalmente, com poder constituinte decorrente. Como vimos na teoria do federalismo, cada uma dessas unidades federadas possui personalidade jurídica de direito público interno e se relacionam entre si com autonomia, dentro dos limites de suas competências.
A divisão territorial pode atender a diferentes finalidades, como à organização político-administrativa descentralizada, ao desenvolvimento integrado de políticas de interesse comum, à transferência de recursos públicos, e também para a indução do desenvolvimento. Por esta razão, internamente ao federalismo brasileiro, encontramos diferentes unidades subnacionais (anteriormente designadas como “territorialidades”), mas nem todas possuem o status de ente federado. Para que uma unidade subnacional seja considerada “ente federado” ela precisa ser dotada de ampla autonomia, além de ter a capacidade de auto-organização (que é o poder constituinte decorrente), diferenciando-a das demais divisões territoriais internas.
A Constituição federal de 1988 reservou o Título III especificamente para tratar “Da Organização do Estado”, onde estabelece (ou admite) diversas formas de divisão territorial, como as unidades político-administrativas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), os territórios federais, as regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas, as microrregiões e as regiões integradas de desenvolvimento – RIDEs.
A referência que utilizamos para identificarmos os entes federados brasileiros parte da organização político-administrativa adotada pela Constituição, pois entre os pressupostos essenciais dos entes federados encontram-se a capacidade de auto-governo e auto-administração. Portanto, aquelas territorialidades que não se encontram entre as unidades político-administrativas, são naturalmente descartadas da condição de ente federado. De acordo com o caput do art. 18 essas unidades político-administrativas são: a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. In verbis:
Art. 18 – A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos nos termos desta Constituição.

 Além da autonomia política e administrativa, os entes federados precisam ser dotados da capacidade de se auto-organizarem (poder constituinte decorrente), o que deve ser feito por meio de uma Constituição própria, ainda que receba outro nome (como Lei Orgânica), respeitada a Constituição Federal. Podemos encontrar no texto constitucional pátrio a transferência de poder de auto-organização a todas as unidades político-administrativas da Federação, isto é, à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal. A União é organizada pela Constituição Federal, que exerce dupla função: estabelecer as bases da organização e do funcionamento da República Federativa Brasileira e organizar o ente federado “União”. Cada Estado-membro rege-se por uma Constituição própria, elaborada, aprovada e promulgada pelas respectivas casas legislativas. Já o Distrito Federal e os Municípios regem-se por suas respectivas Leis Orgânicas, também elaboradas, aprovadas e promulgadas por suas respectivas casas legislativas, que, a despeito de receberem nome diverso, são suas respectivas Constituições.
Passaremos agora à analise de cada um dos entes federados, nos termos da Constituição Federal.

3.1. A União
            A União não se confunde com o Estado Federal, pois ela é apenas um dos entes que integram o Estado Federal. A confusão que costuma ser feita entre a União e o Estado Federal se deve basicamente a três fatores: 1- os dois possuem a mesma circunscrição territorial; 2- ambos são organizados pela Constituição Federal e 3- entre as competências da União encontra-se a de tratar de assuntos de interesse nacional, o que corresponde a falar em nome da República Federativa do Brasil. Portanto, enquanto o Estado Federal é pessoa jurídica de Direito Internacional, capaz de manter relações internacionais, a União é pessoa jurídica de Direito Público Interno, capaz de manter relações intergovernamentais com os Estados-membros, com os Municípios e com o Distrito Federal. Ressalte-se, porém, que quando o Estado Federal se relaciona com Estados estrangeiros, é a União quem representa os interesses do Estado Federal, em nome deste e não em seu próprio nome.
            Note-se que a Constituição Federal possui dupla função: a de estruturar o Estado Federal e organizar o funcionamento da União. Decorre desta dupla função que algumas normas Constitucionais federais destinam-se a todos os entes da federação, pois são normas que orientam o funcionamento do Estado Federal como um todo, enquanto outras normas destinam-se exclusivamente à União, pois são normas de organização e funcionamento deste ente federado. Portanto, no que diz respeito ao funcionamento da União, as normas constitucionais não devem, necessariamente, ser reproduzidas nos Estados, nos Municípios e no Distrito Federal, apenas aquelas que são normas-princípios, pois as normas-regras não são de observância obrigatória para os demais entes, só para a União.

3.2. Os Estados-membros
            Os Estados-membros, dotados de autonomia, são assim denominados para se diferenciarem do conceito de Estado-nação, pois este possui mais do que autonomia, possui soberania e é constituído pelos Estados-membros (no caso das federações). Como membros integrantes da federação, os Estados-membros são, por excelência, entes federados e sua autonomia consiste na capacidade de se auto-organizar, auto-governar, auto-administrar e auto-legislar.
            A capacidade de auto-organização dos Estados se consubstancia na Constituição Estadual, que é o exercício do poder constituinte decorrente, observando-se os limites fixados pela Constituição Federal. Além de regerem-se por suas próprias Constituições, os Estados-membros elegem seus representantes, que implementam políticas públicas com autonomia, respeitadas as Constituições Federal e Estadual, e as leis federais e Estaduais, estas últimas elaboradas em cada Estado-Membro, pelas respectivas Assembléias Legislativas.
            A divisão territorial da República Federal em Estados-membros é passível de alterações, pois a Constituição Federal prevê em seu art. 18, §3º, as modalidades de mobilidade territorial admitidas para criação e extinção de Estados-membros, nos seguintes termos:
Art. 18 ..................................................
§3º – Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.

            Infere-se do dispositivo em tela, que é possível aumentar ou diminuir o número de Estados-membros brasileiros alterando sua estrutura territorial, conforme se trate de “incorporação entre si” (que reduz o número de Estados-membros), “subdivisão” (que aumenta o número de Estados-membros) ou “desmembramento” (que pode aumentar o número de Estados-membros se não for para anexar a outro Estado-membro já existente). Portanto, a alteração do federalismo brasileiro não passa necessariamente pela reforma (através de Emenda) da Constituição Federal, pois basta usarmos os institutos jurídicos (como estes que acabamos de mencionar) já autorizados pelo texto constitucional de 1988, para promovermos uma verdadeira reestruturação do nosso federalismo.

3.3. Os Municípios
            O estatuto jurídico dos Municípios na Constituição de 1988 também está assentado na garantia expressa da autonomia municipal prevista no art. 18, segundo o qual a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos.
            A autonomia municipal consiste na capacidade dos municípios de gerir os próprios negócios, dentro de limitações fixadas pela Constituição. O conteúdo dessa capacidade constitui as competências municipais, que são divididas nas seguintes funções: 1) fundamental organizante (por meio da Lei Orgânica Municipal); 2) auto-gestão; 3) administrativas compartilhadas com os demais entes da Federação; e 4) legislativas exclusivas e suplementares.
A função fundamental organizante dos municípios brasileiros consiste na capacidade de auto-organização por meio da elaboração da Lei Orgânica Municipal. O artigo 29 da Constituição de 1988 estabeleceu que o município reger-se-á pela Lei Orgânica, que deverá ser elaborada seguindo um processo legislativo especial, com parâmetros taxativos, que devem ser rigorosamente observados. Essas características são próprias de poder constituinte decorrente, tanto formal como materialmente. Portanto, esta competência municipal que chamamos de função fundamental organizante decorre do poder de estabelecer seus próprios critérios de organização.
            Para a elaboração da Lei Orgânica Municipal, segundo a Constituição Federal, são necessários dois turnos de votação, com um intervalo mínimo de dez dias entre eles. Além disso, para ser aprovada, é preciso a concordância de dois terços dos vereadores do Município, devendo ser promulgada pela própria Câmara, e não pelo Prefeito, como ocorre no processo legislativo ordinário.
Quando discorremos sobre a evolução constitucional da autonomia municipal, vimos que outras constituições brasileiras já a previam. A novidade trazida pela Constituição de 1988 foi, além de ampliar as competências municipais, conferir a capacidade de promover sua própria organização e funcionamento.
            A Lei Orgânica Municipal se difere das leis ordinárias tanto em razão da forma mais rígida como é elaborada, quanto pelo conteúdo de caráter organizante, além disso, compete aos municípios definir os termos da sua organização, devendo apenas respeitar os preceitos anteriormente enumerados, os princípios da Constituição Federal e do respectivo Estado-membro.
            As funções de auto-gestão do município se referem ao governo próprio, sem interferência de outra autoridade que não sejam as municipais, eleitas diretamente pelos respectivos munícipes. Desde que respeitados os limites da autonomia e das competências municipais, além dos limites legais, os governos eleitos nos municípios são os responsáveis diretos pela gestão política local, assumindo total responsabilidade pelo funcionamento da máquina pública municipal e pelo atendimento das demandas locais.
            Entre as competências municipais constitucionalmente garantidas encontramos atribuições de natureza legislativa e outras de natureza administrativa. Há uma diferença considerável entre receber a atribuição de legislar sobre determinado direito e a de garantir este mesmo direito. Como um bom exemplo disso, podemos citar a preservação ambiental: uma coisa é legislar sobre direito ambiental, outra coisa é ter que preservar o meio ambiente. Os municípios possuem tanto competências legislativas (capacidade de regulamentar por meio de normas de direito) como competências administrativas (responsabilidade e autonomia para atuar em determinados assuntos). Mas, para cada uma dessas formas de competência, o texto constitucional federal estabeleceu as matérias e os respectivos limites.
            A responsabilidade dos gestores municipais não se confunde com as funções administrativas compartilhadas, pois estas últimas dizem respeito a matérias já definidas na Constituição Federal e seu conteúdo é de caráter irrenunciável por parte de qualquer ente da federação. O artigo 23 da Constituição Federal cuidou de estabelecer o que chamamos de "competências comuns" da União, dos Estados-membros, dos municípios e do Distrito Federal. Essas competências devem ser entendidas como responsabilidades compartilhadas, cabendo a todos os entes o empenho em cumpri-las.

3.4. O Distrito Federal

            O Distrito Federal é também um ente federado, pois de acordo com a Constituição de 1988 ele se rege por uma Lei Orgânica e, como temos visto ao longo deste trabalho, esta é a principal característica de um ente federado, isto é, ter a prerrogativa de se auto-organizar. Em geral, como também já vimos, considera-se como ente federado, com capacidade de auto-organização, aqueles que têm competência para elaborar sua própria Constituição. Todavia, a Lei Orgânica do Distrito Federal se assemelha à Lei Orgânica Municipal, ou seja, ela recebeu este nome do Constituinte, mas mantém as características materiais e formais de uma Constituição. As características materiais de uma Constituição estão presentes na Lei Orgânica Distrital porque ela estabelece normas de organização e funcionamento para este ente. Já as características formais de uma Constituição, presentes na Lei Orgânica Distrital, mostram-se pelos critérios rígidos para sua elaboração, diferenciando-a das demais espécies normativas. Entre os critérios rígidos para elaboração da Lei Orgânica Distrital encontram-se as mesmas exigências previstas no artigo 29 da Constituição Federal para os municípios, isto é, dois turnos de votação; insterstício mínimo de dez dias entre os dois turnos de votação e aprovação por dois terços dos membros da Câmara Legislativa. Portanto, podemos afirmar que o Distrito Federal tem constituição própria que é a Lei Orgânica Distrital.
            Além da peculiaridade de se reger por uma Lei Orgânica, ao invés de uma Constituição, o Distrito Federal possui outra característica que o torna um ente federado anômalo no federalismo brasileiro: o fato de ser uma territorialidade com características híbridas de município e de estado-membro. O texto constitucional confere ao Distrito Federal, no art. 32, as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios; estabelece a eleição de Governador e de Deputados Distritais (semelhante ao Governador e Deputados estaduais), mas a Casa Legislativa chama-se Câmara Distrital (semelhante às Câmaras Municipais) e, ainda, tem características de Estado-membro, mas não pode dividir-se em municípios.
Estas particularidades do Distrito Federal se devem ao fato de se tratar de ente com finalidade especifica de sediar a Capital Federal, que é Brasília, bem como o governo da União. Ressalte-se, ainda, que o Distrito Federal, elabora suas próprias leis (pois tem competências legislativas ordinárias), mas mantém estreita relação com a União, que tem competência, para dispor sobre a utilização, pelo governo do Distrito Federal, das polícias civil e militar e do corpo de bombeiro militar. Além dessa interdependência com a União, em relação às polícias, o Distrito Federal tem o seu Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública organizados por leis federais e mantidos com recursos da União.

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