sexta-feira, 3 de junho de 2011

429- Federalismo - Livro - 2 - o estado unitário

PARTE I


Teoria do Federalismo

José Luiz Quadros de Magalhães

Tatiana Ribeiro de Souza



1- O FEDERALISMO E AS DEMAIS FORMAS DE ESTADO



O tema da organização territorial dos Estados contemporâneos é hoje de grande importância para a construção da democracia participativa e fortalecimento da democracia representativa em crise no mundo.

A tradicional classificação das Formas de Estado apenas entre Estado Unitário e Federal está superada pela evolução das formas de organização territorial e repartição de competências, cada vez mais complexas, ocorrendo hoje, claramente, uma valorização crescente da descentralização territorial efetiva, como forma de ganhar em agilidade, eficiência e, principalmente, democracia por meio do controle social da ação estatal. É curioso o fato de que, na década de 1980, tanto a direita como a esquerda brasileiras se mostravam favoráveis à descentralização. As motivações eram, evidentemente, diferentes, pois, se por um lado o interesse da esquerda era fortalecer a democracia participativa, de base local, o interesse da direita era reduzir o papel do Estado imprimindo mais eficiência à administração pública e estimulando a concorrência nas unidades subnacionais, obtendo como conseqüência o desenvolvimento.

A despeito das divergências entre esquerda e direita, quanto às vantagens da descentralização, não se pode negar que a descentralização de poder favorece o respeito à diversidade cultural, permitindo a construção de soluções criativas para os problemas diários, que levam em consideração o sentimento da localidade, da região cultural e, especialmente, do sentimento de cidadania que se constrói na rica diversidade das culturas das cidades, espaço real e não virtual.

Para entendermos o federalismo e a diversidade que esta forma de organização do território e distribuição de competência tomou no decorrer do tempo, é necessário compreendermos antes as formas mais simples de organização territorial. Observe-se, no entanto, que não existe consenso sobre a classificação das formas de Estado, nem mesmo sobre a classificação dos Estados Federais existentes hoje no mundo, que gera uma série de divergências entre os teóricos do Federalismo. A Espanha, por exemplo, ora aparece como Estado Regionalizado, ora como Federal. O Iraque, ainda em processo de afirmação de uma nova ordem jurídico-política, já aparece em algumas classificações como Estado Federal. Enfim, são diversos os exemplos de dissenso teórico relativamente à classificação das formas de Estado. Considera-se, portanto, essencial a qualquer classificação, a definição clara dos referenciais que norteiam a tipologia defendida.

Para efeito de compreensão do federalismo, adotaremos uma classificação de Formas de Estado que entendemos ser mais adequada à realidade atual e perceptível nas Constituições de Estados Nacionais e de Estados-membros nos Estados federais:

1- Estado Unitário:

a) Simples

b) Desconcentrado

c) Descentralizado

2- Estado Regionalizado

a) Estado Regional

b) Estado Autonômico

3- Estado Federal

a) Centrípeto (por agregação) ou centrífugo (por segregação)

b) De duas ou três esferas

c) Simétrico ou assimétrico

d) De Concorrência e de Cooperação



1.1. Estado Unitário



O Estado Unitário, entendido como aquele que possui apenas uma esfera dos poderes legislativo, executivo e judiciário, pode ser classificado na teoria de três maneiras diferentes: O Estado Unitário simples, o Estado Unitário desconcentrado e o Estado Unitário descentralizado.



1.1.1. Estado Unitário Simples

O modelo simples de Estado Unitário, não dividido em regiões administrativas desconcentradas ou descentralizadas, não se efetivou na história devido ao grau acentuado de centralização que dificulta ou, na maioria das vezes, impossibilita a administração do território, centralizando de forma absoluta as decisões do Estado. O Estado Unitário simples foi um modelo teórico criado para a lógica do Estado Moderno, nacional e soberano, em processo de formação a partir do século XV, e adequado a um conceito de soberania do Estado que não mais pode ser aceito, onde se imaginava a soberania como sendo una; indivisível; inalienável e imprescritível (1). Importante lembrarmos que o Estado moderno nasce absolutista para posteriormente, no século XVIII, transformar-se em um Estado constitucional. No Estado absolutista não havia divisão de poderes, seja horizontal (executivo, legislativo e judiciário) seja vertical (estado nacional e unidades subnacionais, como regiões, departamentos, estados-membros, municípios ou comunas).

Este Estado Unitário simples por motivos óbvios (se pensarmos nas condições das comunicações e transportes na época da formação do Estado moderno no século XV) é possível apenas em micro Estados, e mesmo nestes não vai existir de fato. A delegação de poderes a entes territoriais menores (que caracteriza a desconcentração) é inevitável por razões práticas. O Estado Unitário simples foi uma construção teórica para o nascente Estado Moderno, que não ganhou forma na realidade do poder do Estado.

Logo, o que ocorre nos Estados nacionais que se formam a partir do século XV, é uma prática desconcentrada de exercício de competências. A forma de desconcentração de poder se diversifica, levando aos diferentes modelos de organização do território que são criados no decorrer da história do Estado Moderno.

Temos então até aqui as seguintes conclusões:

1- O Estado moderno com um poder organizado e soberano, um povo nacional e um território delimitado onde nos seus limites é exercido o poder, surge a partir do século XV e XVI na Espanha, França, Portugal e Inglaterra;

2- A primeira forma deste Estado moderno é a forma absolutista, modelo em que não há separação de poderes, seja vertical (descentralização territorial não existe) ou horizontal (não há separação de funções entre executivo, legislativo e judiciário);

3- Logo, a forma pensada de organização do território para este estado é uma forma centralizada e concentrada;

4- Embora absolutista, a dimensão territorial dos estados nacionais que se formavam e a precariedade dos transportes e comunicações à época inviabilizou esta forma unitária simples de organização territorial, exigindo uma desconcentração com a delegação de funções para diferentes níveis territoriais; e

5- O Estado Unitário simples, sem a existência de regiões administrativas autônomas ou meramente desconcentradas, sem nenhuma espécie de desconcentração ou descentralização da administração é, portanto, uma idéia completamente superada.

Trazendo esta reflexão para a nossa realidade atual, podemos pensar a organização interna dos Estados-membros de nossa federação. Estudando as Constituições dos Estados-membros da Federação Brasileira, iremos perceber que os mesmos, na grande maioria dos casos, possuem territórios superiores à dimensão de vários Estados nacionais europeus, e, mesmo assim, mantêm um grau de centralização muito grande na gestão das competências estaduais, semelhante a uma organização de Estado Unitário Simples.



1.1.2. Estado Unitário Desconcentrado



O Estado Unitário desconcentrado é caracterizado pela divisão do território do Estado em diversas regiões, ou em regiões e outras divisões territoriais menores, como departamentos ou províncias, comunas ou municipalidades e ainda arrondissements ou regionais. A terminologia é diferenciada de país para país. Em geral encontramos quatro níveis de descentralização de competências administrativas.

Desta forma, o Estado nacional pode ser dividido em regiões, que, por sua vez, podem ser divididas em departamentos ou províncias, estas em comunas ou municipalidades, e ainda, de acordo com a dimensão dos municípios, a divisão em regionais, distritos, arrondissementes ou qualquer outro nome que possa ser adotado para designar está última subdivisão. Havendo apenas a desconcentração do Estado Unitário, em cada uma destas divisões, para finalidades administrativas, haverá um representante do poder central, que, no entanto, não poderá tomar nenhuma decisão autônoma. A função do representante do Estado nas territorialidades desconcentradas do Estado Unitário, restringe-se a levar ao Poder central as questões que sejam de interesse das diversas esferas de divisão territorial, para que a decisão final seja tomada na esfera centralizada. A vantagem deste modelo, em relação ao Estado Unitário Simples, é que ele permite que a decisão do poder central possa ocorrer sobre bases de informações confiáveis e sobre as verdadeiras reivindicações de cada divisão territorial, aproximando o Poder central da população. Por outro lado, a criação de diversas esferas apenas desconcentradas, ou seja, sem autonomia de decisão, sobrecarrega o poder central, criando uma imensa burocracia, o que torna as decisões lentas, tomadas fora do tempo adequado.

Importante lembrar que o território pode ter diversas divisões, com finalidades diferentes. Desta forma, uma divisão territorial que tenha a finalidade de desconcentrar ou mesmo descentralizar a administração pública territorial pode ser diferente da adotada para a finalidade jurisdicional, ou seja, para a desconcentração do Poder Judiciário, com a distribuição de Juízes e tribunais com a sua regionalização. Obviamente, num Estado Unitário, haverá sempre uma última instância central, uniformizadora, de acordo com a organização judiciária adotada e com a legislação processual.

Portanto, podemos concluir que no Estado Unitário Desconcentrado ocorre apenas a desconcentração administrativa territorial, o que significa que são criados órgãos territoriais desconcentrados que não têm personalidade jurídica própria, logo, não têm autonomia, não podendo tomar decisões sem o Poder central. Esta desconcentração pode ocorrer em nível apenas municipal ou também em nível regional e/ou departamental (provincial), ou qualquer outra esfera de organização territorial que se entenda necessária a criação para possibilitar uma melhor administração do território. O modelo meramente desconcentrado aproxima a administração da população e dos diversos problemas comuns das esferas territoriais diferentes. Entretanto, como toda decisão depende do Poder central, torna-se lento. Os Estados democráticos avançados não mais adotam este modelo, que permanece apenas em estados autoritários.



1.1.3. Estado Unitário Descentralizado



Percebemos que hoje no mundo, os Estados nacionais têm caminhado para a descentralização, sendo que aqueles que ainda não adotaram tipos de Estados federais, regionais ou autonômicos, adotam a forma de Estado Unitário descentralizado nas mais recentes legislações (como a França a partir de 1982), caminhando a passos largos em direção a uma descentralização cada vez maior, caracterizada pelo Estado Regional no modelo Italiano ou pelo Estado Autonômico no modelo Espanhol. Podemos ainda ressaltar o caso da Bélgica, que, de Estado Unitário, transformou-se em Estado federal em 1993.

Movidos pelas mais diferentes razões (como distância, diversidade cultural e diferença de grau de desenvolvimento), alguns Estados Unitários (como Portugal e França, que podem ser classificados como Estados Unitários descentralizados), apresentam tratamentos diferentes para determinadas regiões, que recebem grau de autonomia maior. Nestes casos, estas regiões especiais recebem não apenas competências administrativas, mas também legislativas, caracterizando a descentralização legislativa e administrativa. Este é o caso das Ilhas de Açores e Madeira, em Portugal, classificadas como regiões autônomas pela Constituição portuguesa de 1976, e as regiões e departamentos de além mar da França, como a Guiana Francesa, na América do Sul, que é um departamento do Estado francês.

Diante do que foi exposto podemos sintetizar que: para permitir maior agilidade e eficiência na administração territorial, gradualmente os Estados Unitários desconcentrados passaram a adotar a descentralização territorial, conferindo a estes entes territoriais descentralizados (regiões, departamentos ou províncias, comunas ou municípios, etc.) personalidade jurídica própria, transferindo competências administrativas, que foram transferidas por lei nacional a estes entes. Desta forma, não é necessário se reportar ao Poder central (o que o diferencia do Estado Unitário Desconcentrado), não sendo nem mesmo possível a intervenção do Poder central na competência dos entes descentralizados. Importante notar que o Poder central mantém a estrutura desconcentrada ao lado estrutura descentralizada para o exercício de suas competências. Teoricamente, quanto mais competências forem transferidas para os entes descentralizados, mais ágil e mais democrática tende ser a administração. A doutrina européia(2) tem ressaltado a necessidade da eleição de órgãos dirigentes dos entes territoriais descentralizados como característica essencial de sua autonomia em relação ao poder central.


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1- O conceito de “soberania una” se funda na impossibilidade de convivência de dois poderes soberanos em um mesmo Estado. A “soberania indivisível” se assenta na idéia de que não se admite a existência de partes separadas do poder soberano, aplicando-se à universalidade dos fatos ocorridos no Estado. A inalienabilidade e imprescritibilidade da soberania referem-se, respectivamente, à impossibilidade de ser transferida, por quem a detém, para outrem e o fato de todo poder soberano existir permanentemente (SOARES, 2004, p. 114-115).

2- A exemplo de autores que seguem essa linha podemos citar Alain Delcamp (na obra “Les collectivités décentralisées de l’Union européenne” em coédition avec lê Centre national de la fonction publique territoriale (CNFPT), 1995) e Jacques Ziller (na obra “Administrations comparées” Les systèmes politico-administratifs de l’Europe dês Douze. Paris: Montchrestien, 1993).

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