José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza
Existem várias formas de Estados Federais no mundo contemporâneo. Podemos perceber com clareza o movimento em direção a uma acentuada descentralização, que os Estados democráticos do mundo vêm construindo.
O federalismo clássico constitui-se no modelo norte-americano, formado por duas esferas de poder, a União e os Estados-membros (federalismo de duas esferas ), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de Estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar novas entidades territoriais de direito público, o Estado federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de direito público interno), uma das esferas de poder, ao lado dos Estados-membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica superior.
Importante ressaltar, neste ponto, alguns aspectos importantes:
1. O federalismo clássico de duas esferas diferencia-se de outros Estados descentralizados, como o estado autonômico, regional ou unitário descentralizado, pelo fato de ser a única forma de Estado cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder constituinte decorrente. Assim:
1.1 No Estado unitário descentralizado, as regiões autônomas recebem, por lei nacional, competências administrativas, caracterizando a descentralização pela existência de uma personalidade jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Esta descentralização de competências administrativas pode ocorrer em nível municipal, departamental ou regional, em um nível ou em vários níveis simultaneamente. Exemplo: a França.
1.2 No Estado regional, as regiões autônomas recebem competências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando o seu Estatuto, mas sempre com o controle direto do Estado nacional (é o modelo italiano, onde, embora a Constituição da Itália de 1947 mencione este Estado como sendo unitário, as transformações por que vem passando fazem com que os teóricos classifiquem-no hoje como modelo de Estado altamente descentralizado: um Estado regional).
1.3 No Estado autonômico espanhol, outro modelo altamente descentralizado, ocorre uma descentralização administrativa e legislativa ordinária, diferenciando-se este modelo de Estado regional pela forma ímpar de constituição das autonomias, onde a Constituição Espanhola de 1978 permitiu que a iniciativa partisse das províncias para constituírem regiões autonômicas e que estas elaborassem seus Estatutos, que, para terem validade, devem ser aprovados pelo Parlamento Nacional, transformando-se em lei especial.
1.4 Já no Estado federal, os entes descentralizados detêm, além de competências administrativas e legislativas ordinárias, também competências legislativas constitucionais, o que significa que os Estados membros elaboram suas Constituições e as promulgam, sem que seja possível ou necessária a intervenção do Parlamento Nacional (no nosso caso, do Congresso Nacional) para aprovar esta Constituição estadual (como é necessário em relação aos Estatutos das regiões autônomas no Estado regional e no Estado autonômico), que sofrerá apenas um controle de constitucionalidade a posteriori. Não há, portanto, hierarquia entre Estados-membros e União.
1.5 Não estamos considerando, como característica diferenciadora entre estes tipos de Estados, a descentralização de competências judiciais.
1.6 O grau de descentralização ou o número de competências legislativas e administrativas transferidas aos entes descentralizados também não é hoje mais elemento diferenciador, uma vez que existem Estados federais centrífugos onde o número de competências legislativas e administrativas dos estados-membros é inferior ao de regiões autônomas. O nosso federalismo é um dos modelos mais centralizados, bastando, para confirmar esta afirmativa, ler a distribuição de competências legislativas e administrativas nos artigos 21 a 24 da Constituição Federal de 1988, para verificar a concentração de competências na União, em detrimento dos Estados-membros e Municípios.
1.3.1. A origem da Forma Federal de Estado
Alguns pesquisadores costumam buscar na Grécia Clássica a origem do federalismo moderno, onde cidades-estado com alto grau de autonomia constituíram alianças.
No século VI a.C. a Grécia constituía um Império não centralizado em torno de um rei de natureza divina, como ocorria no Egito ou na Mesopotâmia. A Grécia era composta de cidades dispersas ao longo da costa mediterrânea, independentes umas das outras e governadas por magistrados destituídos de caráter sagrado. A democracia ainda era extremamente elitista, pois, embora as decisões fossem públicas, os pobres, os estrangeiros, os escravos e as mulheres não participavam da decisão.
Como não existia um clero estruturado na Grécia daquela época, surgiu na Jônia a primeira visão laica do mundo. A descentralização de poder, e logo a inexistência de um Imperador com poder centralizado, onde se tornava necessária a fundamentação religiosa de seu poder, permitiu um grande desenvolvimento da filosofia grega. Não existia um principio divino e abstrato que impedisse a busca de explicações naturais e racionais para os fenômenos observados. A inexistência de deuses sempre metidos nos assuntos humanos permitia a busca de causas naturais para o que se observava na Terra.
Origem mais recente do federalismo ocorre na Suíça. Quando se forma a Confederação Helvética, originariamente esta não se constitui em uma nação. Esta confederação de várias cidades-estado surgiu para manter a diversidade cultural contra o centralismo absolutista que ganhava força na Europa. Estas cidades, desejosas de se administrar com autonomia uniram-se e se tornaram independentes do domínio estrangeiro. Em 1848, a Confederação formada no século XIV transformou-se em um Estado Federal altamente descentralizado. Para se ter uma idéia do grau de descentralização Suíça, a Constituição de 1848 foi formada pela União de 22 cidades-estados (a partir de 1979 são 23 com a criação da República e Cantão de Jura) em uma superfície de 41.293 Km².
Entretanto, o primeiro Estado Federal do planeta foram os Estados Unidos da América com a Constituição de 1787. Sem uma história suficientemente longa, e formados por pessoas de diferentes religiões, nacionalidades e culturas, os Estados Unidos passa a apostar na Constituição como pilar da sua identidade nacional. A Constituição Federal de 1787 foi elaborada por apenas 55 delegados, de 12 estados, presentes na Convenção da Filadélfia, e substitui a Confederação que se formou após a independência das 13 colônias de 1776. O federalismo da Constituição de 1787 foi recebido com muita resistência à época. O texto da Constituição foi aprovado pelos Estados-membros sempre por pequena margem, com muitas críticas ao aprofundamento de um poder central em meio a uma cultura de independência e autonomia. Havia muita resistência na perda de soberania dos Estados, agora membros de um Estado Federal. Isto explica o alto grau de autonomia que os Estados federados norte-americanos detêm até hoje.
1.3.2. A origem e evolução do Federalismo Brasileiro
Como foi visto acima, o Estado Federal moderno não se estruturou sobre bases teóricas, mas com base na experiência norte-americana que culminou com a Constituição de 1787. No modelo original norte-americano, quando as treze colônias do norte se rebelaram contra o domínio britânico e se transformaram em Estados soberanos, constituíram inicialmente um acordo de Confederação para superar a instabilidade decorrente do rompimento colonial. Mais tarde, em 1787, fortaleceram o acordo deixando a condição de confederação de Estados independentes para se constituírem em um único país, os Estados Unidos da América, por meio de um modelo a que chamamos federação.
Nas palavras de Abrúcio (2001, p. 96), o Estado federativo moderno é uma invenção dos founding fathers norte-americanos. Segundo ele,
Madison, Hamilton e Jay, autores de O Federalista, procuravam encontrar uma resposta para a seguinte pergunta: como assegurar a autonomia de cada uma das treze ex-colônias britânicas, desejosas de manter o máximo de independência, e simultaneamente constituir uma nova nação, capaz de proteger todos os pactuantes das guerras internas e externas, sob o clima de liberdade e respeito à representação estadual? (ABRÚCIO, 2001, p.96)
A engenharia política necessária para constituir mais um ente político, a União, sem destruir os originários, os Estados, foi inédita, ainda que inspirada nos Cantões suíços.
A novidade do modelo federal norte-americano consistia especialmente no rompimento com o modelo clássico de soberania estabelecido por Jean Bodin. , segundo o qual o poder seria uno e indivisível. “A federação moldada pelos norte-americanos, ao contrário, fundamentar-se-ia numa soberania compartilhada, garantida pela Constituição” (ABRÚCIO, 2001, p. 96).
Dessa forma, o projeto de Estado federal norte-americano rompia tanto com o modelo confederativo (que é formado por Estados soberanos), como com o arcabouço unitário, em que o centro é superior constitucionalmente aos governos subnacionais e determina, em última instância, a hierarquia decisória. (ABRÚCIO, 2001, p. 96).
No caso do Brasil, como vimos anteriormente, a forma federal de Estado foi adotada na segunda Constituição, a de 1891, quando passamos por significativas mudanças, com forte influência do modelo norte-americano, tanto em relação ao federalismo, quanto à república e ao sistema presidencial de governo.
Durante a vigência da Constituição do Império, de 1824, nossa primeira Constituição, éramos um Estado unitário (modelo em que existe uma única esfera dos Poderes do Estado), em um governo monárquico-constitucional, o que foi rompido com a Constituição que se sucedeu, em 1891, quando atribuímos às antigas províncias o status de estados-membros, da recém instituída federação. O novo modelo implicava, portanto, a criação de uma nova estrutura de poder onde deveriam coexistir os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) do governo nacional, por meio do ente denominado União, bem como os poderes dos novos entes federados, isto é, dos estados-membros.
Pode-se dizer, a respeito do federalismo brasileiro, que não houve um processo histórico de união como nos EUA, mas sim um processo de descentralização de poder, de Estado unitário para federal.
A Constituição do Império, de 1824, estabeleceu um considerável centralismo político e administrativo, em que, a rigor, não havia poder local, pois toda autoridade era centralizada na capital do Império e nos Poderes que a Constituição criou e dos quais derivavam todas as emanações da força do Estado (NOGUEIRA, 2001, p. 29). O peso desta monarquia centralizante sobre a realidade dos poderes locais, sedimentada durante a colônia, fortaleceu o ideal federalista para salvaguardar as autonomias regionais, como bem afirma Silva:
Os federalistas surgem no âmago da Constituinte de 1823, e permanecem durante todo o Império, provocando rebeliões como as “Balaiadas”, as “Cabanadas”, as “Sabinadas”, a “República de Piratini”. Tenta-se implantar, por várias vezes, a monarquia federalista do Brasil, mediante processo constitucional (1823, 1831), e chega-se a razoável descentralização com o Ato Adicional de 1834, esvaziado pela lei de interpretação de 1840. (SILVA, 2000, p. 78-79)
A resistência ao unitarismo firmado na Constituição de 1824 fortaleceu tanto o movimento federalista quanto o republicano, mas, segundo Baleeiro “os republicanos constituíam minoria na opinião pública” e estavam divididos. A exemplo disso, sobre Rui Barbosa, que teve importante participação na transição republicana, comenta Baleeiro que:
combatia o governo e até a Coroa, mas não empregara suas armas poderosas numa pregação nitidamente republicana. Defendia a Federação com o trono, se possível, ou mesmo sem ele ou contra ele. (BALEEIRO, 2001, p. 15)
O nosso Estado federal surgiu, portanto, com base num Estado unitário, fazendo do seu processo de formação uma experiência exatamente inversa à do modelo clássico norte-americano. Mas a inspiração norte-americana acabou provocando uma certa artificialidade no federalismo brasileiro de 1891, a começar pela denominação que demos à "União" e aos "estados-membros", pois a primeira referia-se no modelo original, norte-americano, à figura que representaria a união das ex-colônias britânicas que, após a independência, formaram uma confederação e que constituíam agora um único estado. No caso brasileiro, como vimos, o novo estado (agora federal) não se constituía pela união de coisa alguma, ao contrário, apenas foi possível pela transformação das antigas províncias do Estado unitário em diversas unidades subnacionais autônomas.
Também os Estados-membros, como foram chamados no modelo norte-americano, assim se denominaram em razão do processo que lhes deu origem, ou seja, antes de pertencerem a um estado único, os Estados Unidos da América, perante a ordem internacional, eram Estados soberanos, independentes, que abriram mão de parcela dos seus poderes em nome da recém criada União.
Este raciocínio nos leva a concluir que os nossos estados-membros brasileiros nunca foram efetivamente Estados, no mesmo sentido em que são compreendidos na literatura, mas sim divisões eminentemente administrativas, de efeito interno na monarquia brasileira. Nossa União não se formou pela união de Estados soberanos, mas pela divisão interna das antigas províncias.
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