sexta-feira, 3 de junho de 2011

430- Federalismo - Livro - 3 - estado regionalizado

1- 1.2. O Estado Regionalizado




José Luiz Quadros de Magalhães

Tatiana Ribeiro de Souza



A diferença básica entre o Estado Unitário descentralizado e o Estado Regional está no grau de descentralização ou no número de competências transferidas para as regiões e nos tipos de competências que são transferidas. Enquanto no primeiro só há transferência de competências administrativas, no Estado Regional, além destas, as regiões possuem crescentes competências legislativas ordinárias.

O processo de descentralização que vem ocorrendo na Europa fundamenta-se não apenas na evolução da democracia e na busca de maior eficiência e celeridade dos serviços públicos, mas também na busca da manutenção da unidade territorial de Estados complexos como a Itália e a Espanha.

A manutenção da unidade territorial com base em autoritarismos e centralização de poder tem vida curta e tende a uma ruptura radical. Por este motivo, a Espanha e a Itália inauguraram novos regionalismos autônomos, com a Constituição Espanhola de 1978 (após longos anos de ditadura franquista) e a Constituição Italiana do pós-guerra, em 1947.

1.2.1. O Estado Regional

Embora a Constituição de 1947 refira-se, expressamente, à Itália como um Estado Unitário, esta permitiu que a Itália caminhasse para um Estado regional, que se coloca para alguns, como forma intermediária entre o Estado Unitário e o Federal.

No caso italiano, a diversidade cultural e o desenvolvimento econômico desequilibrado, com um norte extremamente industrializado e desenvolvido, e um sul menos desenvolvido, leva ao surgimento e fortalecimento de movimentos separatistas como a Liga Lombarda, que defende a independência do norte, e, especialmente, da Lombardia. Outra situação especial está na região de Alto Adge, que pertenceu à Áustria e tem hoje uma população majoritária de ascendência austríaca que só fala alemão e pouco se comunica com a população de idioma italiano. Para administrar estas e outras situações, o caminho tem sido o de oferecer maior autonomia às regiões, arrefecendo os ânimos separatistas. Desta forma, o Estado italiano tem caminhado para uma descentralização cada vez mais acentuada, o que faz a doutrina atual classificar a Itália, ao lado da Espanha, como um Estado altamente descentralizado.

No Estado regional, a descentralização ocorre de cima para baixo, sendo que o Poder central transfere, por meio de lei nacional, competências administrativas e legislativas ordinárias. Não há que se falar, no Estado Regional, assim como no Estado Autonômico, que estudaremos a seguir, em poder constituinte decorrente que implica em descentralização de competências legislativas constitucionais, o que só ocorre no Estado Federal. No Estado Regional, o poder central concede autonomia, amplia e reduz esta mesma autonomia administrativa e legislativa ordinária. O Judiciário, como ocorre na Itália, permanece unitário e meramente desconcentrado. As expressões, União, poder constituinte decorrente e Estado membro só podem ser utilizadas no contexto do Estado Federal. No Estado Regional, as Regiões elaboram seus Estatutos nos limites da Lei nacional.

Não é apenas o grau de descentralização (ou seja, o número de competências descentralizadas) o elemento diferenciador entre o Estado Regional, o Estado Autonômico e o Estado Federal, mas também a forma de sua constituição e organização, expressa na maneira de criação dos entes descentralizados e a relação entre as esferas autônomas de organização territorial assim como em relação ao Estado federal, na qualidade de competências descentralizadas, e não necessariamente na quantidade.

Na Itália, exemplo de Estado Regional, existem quatro níveis de competências administrativas (o Estado nacional; a região; a província e a comuna); dois níveis de competências legislativas ordinárias (o legislativo nacional e regional); e um judiciário unitário mas sempre desconcentrado.

1.2.2. O Estado Autonômico

Das formas descentralizadas de Estado, a mais criativa e recente é a criada pela Constituição Espanhola de 1978. Estado de imensa complexidade, a Espanha foi mantida unida no período franquista sob o regime autoritário centralizador, que proibia as manifestações culturais das diversas nações (identidades culturais pré-existentes a formação da Espanha moderna) que compõem o Estado nacional espanhol. Com quatro idiomas reconhecidos no texto constitucional, (o castelhano, o galego, o basco e o catalão) e mais diversos dialetos, a Espanha é rica em diversidade cultural, o que, de um lado, retrata um belo mosaico cultural, mas, de outro, traz problemas para a manutenção de sua unidade territorial.

Aspecto fundamental para a existência e permanência de um Estado nacional, o povo nacional, enquanto elemento constitutivo do Estado, deve ser compreendido como o conjunto de pessoas que se sentem parte do Estado, que compartilham valores comuns que fazem com se sintam integrantes do Estado nacional, ou, em outras palavras, pessoas que compartilhem a crença coletiva em um determinado Estado nacional, sua história e seu projeto para o futuro. Para isto, é necessário que, por sobre o sentimento de ser galego, basco, catalão ou castelhano, exista o sentimento de ser espanhol. Este sentimento de ser parte de um Estado nacional é um sentimento recente, surgindo com a formação dos Estados nacionais, e é construído a partir de determinados pontos de aglutinação que podem ser uma origem étnica comum; um projeto político comum; uma religião comum; um idioma; enfim, algum fator que possa identificar as pessoas como integrantes de uma crença coletiva no Estado nacional.

Importante notar que estes aspectos acima citados podem estar presentes simultaneamente, alguns deles, todos eles, um deles, mas devem ser suficientemente fortes para manter a unidade ou o sentimento de pertinência a um Estado nacional. Sem este elemento, o Estado nacional está fadado ao esfacelamento. Vários são os exemplos de Estados que desapareceram quando da perda desta identidade comum e o mais recente é a Iugoslávia. Formada pela União federal de povos distintos, com idiomas distintos, religiões distintas, passado histórico que nem sempre uniu, a Iugoslávia foi concebida após a Segunda Guerra Mundial como um Estado socialista autogestionário e por anos o seu fator de unidade foi este projeto comum, assim como durante muitos anos um outro fator agregador foi a liderança carismática e eficiente do croata Josip Bros Tito. Com a morte de Tito e a crise do socialismo autogestionário iugoslavo, a crença no Estado nacional iugoslavo desaparece, cedendo lugar a outras crenças regionais e “raciais”. A antiga federação Iugoslava do pós-guerra, formada pela Sérvia, Croácia, Montenegro, Macedônia, Eslovênia, Bósnia, que possuiu uma das mais belas constituições socialistas democráticas do mundo, foi transformada em diversos estados soberanos.

A complexidade espanhola não está muito distante da iugoslava. Entretanto, a unidade territorial espanhola é mais antiga (data da expulsão dos mouros pelos reis católicos Isabel e Fernando no final do século XV) e, logo, construiu outros fatores agregadores importantes, como um passado histórico comum, a religião católica, e, interessante, a enorme penetração do castelhano no mundo, que o tornou, de um idioma regional, em um idioma espanhol. Entretanto, mesmo presentes todos estes elementos, o movimento separatista, principalmente basco, é hoje ainda forte, e a unidade espanhola é atualmente representada por dois elementos extremamente eficientes até agora: a monarquia e o estado autonômico altamente descentralizado.

A restauração da monarquia após o período franquista foi muito importante para a Espanha. Separando de maneira adequada a função simbólica de chefe de Estado (o Rei) da função de governo (o primeiro ministro ou presidente de governo na terminologia da Constituição espanhola), deu-se um passo importante para eliminar o risco de se ter um chefe de governo e de estado carismático (porque símbolo e poder efetivo ao mesmo tempo), abandonando, com isto, a triste tradição fascista de Franco, ao mesmo tempo em que permitiu que a figura do Rei pudesse cumprir seu papel simbólico de representar os valores espanhóis acima dos regionalismos.

O outro fator de agregação é o criativo Estado Autonômico. Previsto pela Constituição de 1978, o Estado Autonômico assemelha-se ao Estado Regional, no que diz respeito ao grau de descentralização (descentralização de competências administrativas e legislativas ordinárias), mas com este não se confunde em nenhuma hipótese. A maneira de sua constituição é diferente e pode ser assim enumerada:

1. A iniciativa de estabelecimento de regiões autônomas parte de baixo para cima, sendo que as províncias devem unir-se, formando uma comunidade autônoma e, por meio de uma assembléia democrática, elaborar seu estatuto de autonomia.

2. O estatuto de autonomia pode ou não incorporar todas as competências destinadas às regiões pela Constituição espanhola, o que significa que as competências que não forem assumidas pela região serão assumidas pelo Estado nacional.

3. Uma vez elaborado o estatuto, este deve ser aprovado pelas Cortes Gerais (parlamento espanhol), transformando-o em lei especial que não pode ser mais modificada pelo próprio parlamento espanhol por meio de lei ordinária, voltando para ser aplicado nos limites do território da região autonômica.

4. De cinco em cinco anos, estes estatutos podem ser revistos, seguindo-se o mesmo procedimento, sendo que, neste período, a região pode reduzir suas competências ou amplia-las, admitindo a Constituição espanhola que a região possa inclusive reivindicar competências que na Constituição espanhola estejam destinadas ao Estado nacional espanhol.

5. Em todo momento, o parlamento realiza o controle da autonomia das regiões, aprovando ou não as modificações nos estatutos.

Este modelo extremamente inteligente tem o condão de levar as discussões por autonomia a um espaço democrático e constitucional, evitando a exacerbação dos ânimos em um debate extra-constitucional. A manutenção da unidade espanhola pela forma autoritária do Estado Unitário franquista teria como conseqüência uma guerra civil, como ocorreu na Iugoslávia e na Rússia. A criação de um processo constitucional, para onde podem ser levadas as reivindicações por mais autonomia permitindo que estas possam ser solucionadas democraticamente por meio do debate político, da argumentação séria no parlamento, é hoje a principal responsável pela continuidade da unidade territorial. Problemas existem e sempre existirão, pois são eles que fazem os sistemas evoluírem e se adaptarem constantemente a novas realidades, mas, sem dúvida, o Estado autonômico é a fórmula de administração territorial mais criativa surgida recentemente.

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