2.3. Natureza do Poder Constituinte
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza
Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sinônimo de lei positiva posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente nesse ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nessa perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o Direito a regra, transformando construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto.
O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação à ordem com a qual rompe e pela qual não se limita. Essa afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, pois é o poder de transformação social da própria história. Nesse recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional que afete seus princípios fundamentais, criando, na verdade, uma nova Constituição. Esses mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica que, como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa apenas em representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar, entretanto, que esses milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas não há como proteger esses milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isso nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas como são exemplo o que ocorreu na Venezuela, Bolívia e Equador neste inicio de século XXI.
Retornando à discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que se entendermos, entretanto, que o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do Direito natural. Nesse sentido, o Direito é sinônimo de justo e, logo, a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se contiver uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas várias teorias é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo essa hipótese, o poder constituinte originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e, ao contrário, será mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do correto, do direito.
Não nos filiamos ao pensamento do Direito natural por o considerarmos elitista. Ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete dessa vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo?
Por esse motivo, entendemos que somente processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular podem justificar uma ruptura que, sendo fato irresistível, se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será essa compreensão dialogicamente compartilhada em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o Direito e sua compreensão e transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.
Portanto, podemos concluir que esse poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático entendendo-se por democrático um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.
2.4. Titularidade do Poder Constituinte
Finalmente devemos responder à pergunta sobre quem é o titular do poder constituinte nas suas várias manifestações históricas.
Retornando à visão (um pouco distante do real) dos “clássicos” da teoria constitucional, encontramos no revolucionário Siéyes a afirmação de que “a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei”. Uma visão idealista importante como construção do discurso do Estado constitucional, mas que, obviamente, não resiste a uma análise histórica. Podemos perceber, mesmo que a construção conceitual da idéia de nação para Siéyes constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. De forma diferente, a idéia de nação como um compartilhar de valores, história, projetos, constitui numa construção histórica, e não algo que existe antes de tudo.
Como vimos, foi com Siéyes que surge a idéia de poder constituinte, diferenciando esse do poder constituído que não pode, na sua ação autônoma, atingir as leis fundamentais contidas na Constituição, criada por um poder constituinte que, por sua vez, é produto da vontade da nação.
No Direito Constitucional brasileiro, um autor importante é Pinto Ferreira, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa as expressões “Convenção Constitucional”, “Assembléia Constituinte” e “Convenção Nacional Constituinte”, afirma que a Assembléia Nacional Constituinte é o corpo representativo escolhido para criar a Constituição. Para o autor, há dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo, no qual há uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, não havendo necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, no qual a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular por meio do referendo. Para o autor, esse segundo modelo está mais próximo do espírito democrático.7
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Dessa forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, em que o titular é um rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto, encontramos também exemplos em que poderes constituintes, de forma diferente, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas do povo nacional.
Não há dúvida de que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos que permitam que o processo de elaboração da Constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas por meio de legitima pressão da sociedade civil organizada.
Esse poder será democrático à medida que o processo constituinte serve como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, as manifestações do jogo de forças sociais sejam legitimamente exercidas. É fundamental, para isso, que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica, seja reduzido ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor à vontade presente na realidade social.
A Constituição Federal de 1988, embora com problemas formais decorrentes de sua história, foi incorporada pela sociedade, tem em cada brasileiro, na sociedade organizada, nos tribunais e juízos de primeiro grau, em administradores e legisladores, seus intérpretes e defensores contra o seu desmonte por meio de emendas constitucionais, muitas inconstitucionais, decorrentes de uma visão equivocada que prioriza o econômico ao Direito, como se o econômico fosse uma verdade matemática, contra a qual o Direito e a Justiça nada podem.
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