2.2. Amplitude do Poder Constituinte
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza
Encontramos em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro, como a de Pinto Ferreira, a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.4 Entre muitos clássicos podemos destacar Walter Dodd, Kelsen e Hauriou, dentre muitos, que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição, encontramos Schmitt, Heller, Recaséns Siches, Carl Friedrich e Dnez.
A importância dessa discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (por meio de emenda e revisão), que chegaria, no entendimento de alguns, a quase a força de uma nova constituinte, em que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareceriam. O problema central dessa discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de grande insegurança, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isso fique bem claro, e para tal enfrentamos essa questão para posteriormente discutirmos o mais importante: os limites necessários ao poder de reforma, seja por meio de emendas ou seja por meio de revisão.
Retornamos, pois, à antiga discussão para compreendermos o perigo que reside por detrás dos rótulos, teorias que, ao oferecerem muita força ao Legislativo ordinário para mudar a Constituição, podem retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, até mesmo contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria ou ditadura da maioria que, como um rolo compressor, desmonta a Constituição. Essa discussão é ainda especialmente importante quando presenciamos problemas vividos pela democracia representativa, em que o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismos de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos em detrimento de muitos, mas que se legitimam por intermédio da aparente democracia representativa.
Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negarem a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, protegendo, assim, a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Essa é a questão central que nos interessa.
Lembrando as palavras de Ivo Dantas;
“...o Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente à sociologia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma....”5
Seguindo essa linha de raciocínio e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que, embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual está rompendo, esse poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
Talvez seja necessária, neste ponto, uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da assembléia constituinte originária que decorrem das influências dos diversos grupos de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte desde que manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes e os limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes mediante abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas puramente corporativas sobre o processo de votação na assembléia constituinte. Entretanto, essas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a esse sistema econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que Siéyes já mencionava como ilegítimas, pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ilegítima.
Temos então, até aqui, as seguintes conclusões:
• O poder constituinte originário é o poder de criar a Constituição e logo uma nova ordem jurídica soberana.
• Esse poder é soberano e não sofre limites no ordenamento jurídico-positivo anterior com o qual ele está rompendo.
• Embora não haja limites jurídico-positivos no ordenamento anterior, há limites de ordem social, cultural e econômica, que se constituem no próprio processo de legitimação democrática desse poder, desde que manifestos de forma democrática e dialógica, em um processo de comunicação entre representantes e os diversos grupos e campos de interesse da sociedade civil.
• A legitimação democrática do poder constituinte originário não se esgota na eleição dos membros da assembléia nacional constituinte ou de uma possível ratificação popular da Constituição por meio de um referendo.
• Há, entretanto, pressões de pequenos grupos privilegiados (corporações, poder econômico concentrado) que, de maneira diferenciada em sociedades diferentes, exercem pressão ilegítima, pois desequilibram de forma não democrática o complexo processo de construção de um texto que represente e proteja a manifestação democrática dos diversos grupos presentes em uma sociedade democrática.
• A amplitude do poder constituinte significa o reconhecimento de outras formas de poder constituinte além do poder de criar a Constituição.
• Essas outras formas de poder constituinte seriam o poder de reforma chamado de poder constituinte derivado e o poder constituinte decorrente pertencente aos entes federados de um Estado federal, que no nosso caso são os Estados-Membros e os municípios que podem elaborar suas próprias Constituições.
• O poder constituinte originário é um poder soberano e sem limites no ordenamento jurídico-positivo anterior, enquanto o poder de reforma e o poder constituinte decorrente dos Estados-Membros e Municípios são sempre limitados pela força do poder originário, portanto de segundo grau e subordinados.
• O reconhecimento do poder de reforma como poder constituinte derivado não é mera questão de rótulo, mas pode carregar a idéia de que esse poder possa ser tão amplo que seria capaz de alterar radicalmente a Constituição, trazendo, com isso, uma insegurança indesejável, pois destrói um dos elementos essenciais do constitucionalismo, que é a segurança nas relações jurídicas.
• O poder de reforma se divide em poder de revisão e de emenda, sendo que alguns juristas vêm defendendo a possibilidade, de mediante revisão, alterar-se radicalmente a Constituição, o que traz insegurança, pois fortalece muito o legislativo ordinário e maiorias provisórias negando a idéia de um poder originário que envolva amplamente a sociedade no processo excepcional de elaboração de uma Constituição. Isto é a negação da idéia sobre a qual reside o fundamento primeiro da Constituição e do constitucionalismo: segurança jurídica.
• A democracia não se resume no simples processo de escolha de possíveis representantes, mesmo porque, em grande parte, esses representantes não representam a todos mas muitas vezes a pequenos grupos ou a si mesmos.
• Democracia é participação e comunicação entre representantes e os vários grupos da sociedade civil.
• Como conclusão parcial, podemos dizer que, reconhecendo o caráter de poder constituinte derivado ao poder de reforma por meio de emenda e revisão, é fundamental que se ressalte o seu caráter de subordinação.
CITAÇÕES
4 PINTO FERREIRA, Luís. Princípios gerais de direito constitucional moderno p. 51.
5 DANTAS, Ivo. Poder constituinte e revolução, p. 40-41.
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