terça-feira, 7 de junho de 2011

436- Federalismo - Livro - 7 - Poder constituinte municipal

2- A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE

José Luiz Quadros de Magalhães

Tatiana Ribeiro de Souza



Para entendermos o Estado Federal é de fundamental importância compreendermos a teoria do poder constituinte, uma vez que a característica essencial do Estado Federal é uma descentralização de competências constitucionais, ou em outras palavras, a existência de um Poder Constituinte decorrente. À medida que a democracia se afirma no mundo contemporâneo como o sistema político que pode melhor lidar com as complexidades de sociedades plurais e multiculturais, não há porque não descentralizar.

A partir do momento que a descentralização tornou-se uma necessidade para a boa gestão, para um melhor controle da sociedade sobre os gastos públicos e dialogo mais eficaz na construção de políticas públicas que atendam as necessidades da população, surgiram no mundo formas diversas de organização territorial. Entretanto nenhuma ainda superou as vantagens do federalismo, e nenhuma pode alcançar o grau de descentralização e autonomia que o federalismo pode oferecer. Para entendermos estas vantagens potenciais que podem permitir uma boa gestão democrática, transparente e eficaz precisamos compreender a teoria do poder constituinte.





2.1. O Poder Constituinte Originário



Segundo a visão de diversos constitucionalistas, a diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados-Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte sem nenhuma convocação formal.

Na França revolucionária (1789), foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando, a partir de então, que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se, então, que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, mas sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte, vamos encontrar no complexo jogo de poder por trás da constituinte aqueles que têm a capacidade ou a possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.

Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do poder constituinte nasceu, na cultura européia, com SIÉYES, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos com poderes derivados do primeiro é contribuição do pensador revolucionário.

Siéyes afirmava que objetivo ou o fim da assembléia representativa de uma nação (leia-se do povo, ou seja, dos que se sentem parte do Estado nacional) não pode ser outro senão aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de determinado grupo.1

A conclusão da escola clássica francesa entendendo a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional, – sendo que para que isso ocorra deve ser produto de uma assembléia constituinte representativa da vontade deste povo – se opõe Hans Kelsen, que afirma que a Constituição provém de uma norma fundamental.2 Importante ressaltar, neste ponto, que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do poder constituinte: seja um poder de fato ou um poder de direito.

Outro aspecto que devemos estudar sobre o poder constituinte é relativo à sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita à criação originária do Direito enquanto outros compreendem que esse poder constituinte é bem mais amplo, incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudanças sócio-culturais,3 e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa constitucional.

Finalmente, um terceiro aspecto a ser estudado, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do poder constituinte.

Para a melhor compreensão desta matéria, é necessário estudar separadamente cada um desses elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do poder constituinte com a sua amplitude e mesmo com sua titularidade em determinados casos.



2.2. Amplitude do Poder Constituinte



Encontramos em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro, como a de Pinto Ferreira, a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.4 Entre muitos clássicos podemos destacar Walter Dodd, Kelsen e Hauriou, dentre muitos, que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição, encontramos Schmitt, Heller, Recaséns Siches, Carl Friedrich e Dnez.

A importância dessa discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (por meio de emenda e revisão), que chegaria, no entendimento de alguns, a quase a força de uma nova constituinte, em que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareceriam. O problema central dessa discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de grande insegurança, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isso fique bem claro, e para tal enfrentamos essa questão para posteriormente discutirmos o mais importante: os limites necessários ao poder de reforma, seja por meio de emendas ou seja por meio de revisão.

Retornamos, pois, à antiga discussão para compreendermos o perigo que reside por detrás dos rótulos, teorias que, ao oferecerem muita força ao Legislativo ordinário para mudar a Constituição, podem retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, até mesmo contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria ou ditadura da maioria que, como um rolo compressor, desmonta a Constituição. Essa discussão é ainda especialmente importante quando presenciamos problemas vividos pela democracia representativa, em que o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismos de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos em detrimento de muitos, mas que se legitimam por intermédio da aparente democracia representativa.

Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negarem a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, protegendo, assim, a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Essa é a questão central que nos interessa.

Lembrando as palavras de Ivo Dantas;



“...o Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente à socio¬logia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma....”5



Seguindo essa linha de raciocínio e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que, embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual está rompendo, esse poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.

Talvez seja necessária, neste ponto, uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da assembléia constituinte originária que decorrem das influências dos diversos grupos de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte desde que manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes e os limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes mediante abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas puramente corporativas sobre o processo de votação na assembléia constituinte. Entretanto, essas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a esse sistema econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que Siéyes já mencionava como ilegítimas, pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ilegítima.

Temos então, até aqui, as seguintes conclusões:



• O poder constituinte originário é o poder de criar a Constituição e logo uma nova ordem jurídica soberana.

• Esse poder é soberano e não sofre limites no ordenamento jurídico-positivo anterior com o qual ele está rompendo.

• Embora não haja limites jurídico-positivos no ordenamento anterior, há limites de ordem social, cultural e econômica, que se constituem no próprio processo de legitimação democrática desse poder, desde que manifestos de forma democrática e dialógica, em um processo de comunicação entre representantes e os diversos grupos e campos de interesse da sociedade civil.

• A legitimação democrática do poder constituinte originário não se esgota na eleição dos membros da assembléia nacional constituinte ou de uma possível ratificação popular da Constituição por meio de um referendo.

• Há, entretanto, pressões de pequenos grupos privilegiados (corporações, poder econômico concentrado) que, de maneira diferenciada em sociedades diferentes, exercem pressão ilegítima, pois desequilibram de forma não democrática o complexo processo de construção de um texto que represente e proteja a manifestação democrática dos diversos grupos presentes em uma sociedade democrática.

• A amplitude do poder constituinte significa o reconhecimento de outras formas de poder constituinte além do poder de criar a Constituição.

• Essas outras formas de poder constituinte seriam o poder de reforma chamado de poder constituinte derivado e o poder constituinte decorrente pertencente aos entes federados de um Estado federal, que no nosso caso são os Estados-Membros e os municípios que podem elaborar suas próprias Constituições.

• O poder constituinte originário é um poder soberano e sem limites no ordenamento jurídico-positivo anterior, enquanto o poder de reforma e o poder constituinte decorrente dos Estados-Membros e Municípios são sempre limitados pela força do poder originário, portanto de segundo grau e subordinados.

• O reconhecimento do poder de reforma como poder constituinte derivado não é mera questão de rótulo, mas pode carregar a idéia de que esse poder possa ser tão amplo que seria capaz de alterar radicalmente a Constituição, trazendo, com isso, uma insegurança indesejável, pois destrói um dos elementos essenciais do constitucionalismo, que é a segurança nas relações jurídicas.

• O poder de reforma se divide em poder de revisão e de emenda, sendo que alguns juristas vêm defendendo a possibilidade, de mediante revisão, alterar-se radicalmente a Constituição, o que traz insegurança, pois fortalece muito o legislativo ordinário e maiorias provisórias negando a idéia de um poder originário que envolva amplamente a sociedade no processo excepcional de elaboração de uma Constituição. Isto é a negação da idéia sobre a qual reside o fundamento primeiro da Constituição e do constitucionalismo: segurança jurídica.

• A democracia não se resume no simples processo de escolha de possíveis representantes, mesmo porque, em grande parte, esses representantes não representam a todos mas muitas vezes a pequenos grupos ou a si mesmos.

• Democracia é participação e comunicação entre representantes e os vários grupos da sociedade civil.

• Como conclusão parcial, podemos dizer que, reconhecendo o caráter de poder constituinte derivado ao poder de reforma por meio de emenda e revisão, é fundamental que se ressalte o seu caráter de subordinação.



2.2.1. Poder Reformador



O poder constituinte derivado de reforma divide-se em dois: o poder de emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário pertence a uma assembléia eleita com finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função, sendo um poder temporário, o poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais, circunstanciais e temporais existentes.

O poder de reforma por meio de emendas pode, em geral, manifestar-se a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e, algumas vezes, temporais. Esse poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.

O poder de revisão em geral tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, manifestação periódica, como na Constituição portuguesa de cinco em cinco anos. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação de poder uma única vez, não podendo ocorrer de novo, pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A revisão é mais ampla que a emenda, pois, como sugere o nome, trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites. No Brasil, entretanto, a nossa revisão foi atípica, manifestando-se por meio de emendas. Entretanto, bem ou malfeita, o que ocorreu foi uma revisão, pois se deu respeitando os aspectos formais processuais da revisão prevista no ADCT.

Devemos, pois, compreender o poder de reforma por meio de emendas e revisão e os seus limites, materiais, circunstanciais, formais e temporais. Quanto aos limites, podemos dizer o seguinte:



• Os limites materiais dizem respeito às matérias que não podem ser objeto expresso ou implícito de emenda.

• Os limites materiais implícitos dizem respeito à própria essência do poder de reforma. Mesmo que não haja limites expressos, a segurança jurídica exige que o poder de reforma não se transforme, por falta de limites materiais expressos, em um poder originário. O poder de reforma pode modificar mantendo a essência da Constituição, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes da Constituição, pois reforma não é construir outro, mas modificar mantendo a estrutura e os fundamentos.

• São limites materiais implícitos o respeito aos princípios fundamentais e estruturais da Constituição, que só poderão ser modificados por intermédio de outra assembléia constituinte, ou seja, de outro poder constituinte originário. Este poder constituinte originário surge apenas diante de uma força social maior que o próprio ordenamento jurídico. É o reconhecimento pela teoria da constituição da possibilidade de revolução, da possibilidade legitima de ruptura popular.

• O art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF traz os limites materiais expressos, dispondo que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação de poderes e a democracia.

• Partindo da premissa da indivisibilidade ou indissociabilidade dos direitos fundamentais podemos afirmar que não podem ser deliberadas emendas que venham, de alguma forma, limitar os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos.

• Podem ser propostas emendas sobre a separação de poderes, a democracia, os direitos individuais e suas garantias e o federalismo, desde que sejam para aperfeiçoar, jamais para restringir.

• A proteção ao federalismo significa a proteção ao processo de descentralização essencial ao nosso federalismo centrífugo.

• além dos limites materiais expressos no art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF 88, encontramos limites circunstanciais que proíbem emendas ou revisão durante situações de grave comprometimento da estabilidade democrática, como Estado de sitio, Estado de defesa e intervenção federal.

• Como afirmado acima, há limites materiais implícitos que representam a própria essência do poder constituinte derivado.

• O poder de reforma, como o nome sugere, diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica, pois não é possível, por meio de emenda ou revisão, alterar os princípios fundamentais ou estruturais de uma ordem constitucional.

• Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência da Constituição e mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada.

• Reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas, jamais, a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.

• Reforma não significa para o Direito Constitucional a construção de novo.

• Outro limite óbvio implícito diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento ao poder constituinte de reforma;

• Essas regras não podem ser objeto de emenda.

• As regras de funcionamento do poder constituinte derivado, o poder de reforma, por motivos óbvios, não podem ser objeto de emenda ou revisão, pois, caso ocorra o contrario estaríamos condenados a mais absoluta insegurança jurídica.

• Alem disso, são limites ao poder de reforma a proibição de revisão antes de cinco anos contados da promulgação da Constituição (limite temporal).

• A proibição do funcionamento do poder de reforma (emendas ou revisão) durante Estado de defesa, Estado de sítio ou intervenção federal constitui limite circunstancial como já mencionado.

• Os limites formais obrigam que a emenda de dê mediante quorum de três quintos em dois turnos de votação em seção bicameral, enquanto a revisão (contrariando a lógica doutrinaria que exigia processo mais qualificado) ocorre em seção unicameral por maio¬ria absoluta (50% mais um de todos os representantes).

• Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não havendo limites temporais para a reforma por meio de emendas. Acrescente-se não ser possível a realização de nova revisão uma vez que não é possível emenda sobre os processo de modificação formal da Constituição. A revisão estava prevista no ADCT e assim que cumpriu-se a determinação daquele dispositivo este deixou de existir no nosso ordenamento jurídico-constitucional.





Essa discussão não é nova e encontramos nos clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeiro, várias referências à amplitude do poder constituinte e do poder de reforma.

Nelson de Souza Sampaio afirma que o poder reformador está abaixo do poder constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar esse poder reformador de poder constituinte constituído, como o faz Sanches Agesta; poder constituinte derivado, como o faz Pelayo e Baracho; ou poder constituinte instituído, segundo Burdeau – devemos encará-lo, como o faz Pontes de Miranda Rosah Russomano,6 como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau?



2.2.2. Poder Decorrente



Outro aspecto referente à amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte Decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados-Membros e municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, Tomo II, as características principais do Estado federal. Deixamos claro que o que difere o Estado federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, em que o ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário a intervenção ou a aprovação desta Constituição por outra esfera de poder federal. A inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e municípios no caso brasileiro) caracteriza a essência da federação, pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasileiros participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte decorrente.

Não estamos afirmando que os Estados-Membros, a União e os municípios são soberanos, pois soberano é o Estado federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no poder constituinte originário. O que afirmamos é que no Estado federal, além da repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também – e isso só ocorre no Estado Federal – a repartição de competências legislativas constitucionais. Essa repartição de competências constitucionais implica a participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.

Entretanto, esse poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, por esse motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. A Constituição de 1988 estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados-Membros) e de terceiro grau (se dos municípios), subordinados à vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal. A repartição de competências no nosso Estado federal ocorre da seguinte forma:



• O Estado federal é composto de três círculos não hierarquizados: União, Estados-Membros e Distrito Federal e os Municípios.

• A Constituição Federal é a manifestação integral da soberania do Estado Federal.

• A União detém competências legislativas ordinárias, administrativas, jurisdicionais e o poder constituinte derivado de reforma por meio de emendas e revisão à Constituição do Estado Federal, por intermédio do Legislativo da União.

• Os Estados-Membros detêm competências legislativas ordinárias, jurisdicionais, administrativas e o poder constituinte decorrente de elaborar suas próprias constituições, além é claro, do poder de reforma de suas constituições.

• Os municípios detêm competências legislativas ordinárias, admi¬nistrativas (não detêm competências jurisdicionais) e competências legislativas constitucionais, ou seja, o poder constituinte decorrente de elaborar suas Constituições (chamadas de leis orgânicas) e ló¬gico o poder derivado de reforma de suas Constituições.

• O Distrito Federal também se tornou ente federado a partir de 1988, mas com características diferenciadas. Detém competências legislativas ordinárias e administrativas, que podem ser organizadas pelo seu poder constituinte decorrente (competência legislativa constitucional própria), e possui o seu próprio Judiciá¬rio e Ministério Público que, entretanto, não poderão ser organizados por sua constituinte decorrente, mas serão organizados pela União para o Distrito Federal, por razão de segurança nacional. Detém, também, é claro, o poder de reformar sua Constituição (chamada também de Lei Orgânica), o que não muda a sua natureza de poder constituinte decorrente, portanto, de Constituição.



Quanto aos limites do poder constituinte decorrente, estes são encontrados em vários momentos na Constituição Federal e são limites materiais expressos e implícitos. Os limites expressos ocorrem sempre que a Constituição distribui competências e normatiza condutas dos entes federados. Quanto aos limites implícitos, esses são os princípios estruturantes e fundamentais da República que se impõem a todos os entes federados, como a democracia, a separação de poderes, os direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e regionais, a dignidade humana, dentre outros.

Alguns entendem que a Constituição Federal deve ser quase que copiada pelos entes federados, o que no nosso entendimento é antifederal. Se a Constituição federal, expressamente, não mencionou mandamentos aos entes federados, estão livres os constituintes dos Estados e municípios para disporem sobre suas competências livremente, desde que respeitados os princípios que estruturam e fundamentam a ordem constitucional federal. Por exemplo, se a Constituição Federal prevê o quorum de três quintos em dois turnos para emenda à Constituição Federal como norma regulamentadora do funcionamento do poder constituinte derivado federal, nada impede que o Estado-Membro ou o Município estabeleçam quorum diferente, desde que respeitados o princípio da rigidez constitucional que caracteriza sua supremacia em relação às leis ordinárias e complementares e o princípio da separação de poderes.

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