1.3.3. O Estado Federal Centrípeto e Centrífugo
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza
O federalismo centrípeto dirige-se ao centro, pois historicamente originário de estados soberanos que formaram, no caso norte-americano, uma confederação (1777) e posteriormente uma federação (1787). Nos mais de duzentos anos de existência da federação norte-americana, ocorre gradualmente uma centralização de competências – a União lentamente incorpora competências dos Estados membros. Entretanto, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o federalismo centrípeto, justamente por estes motivos, é o mais descentralizado, pois se originou historicamente de Estados soberanos que se uniram e abdicaram de sua soberania, mantendo com eles, entretanto, um grande número de competências administrativas e legislativas ordinárias e constitucionais. Esta terminologia com freqüência causa confusão e por vezes é empregada de maneira equivocada.
Desta forma, o grau de descentralização é muito grande e representado pelo grande número de competências administrativas, legislativas e jurisdicionais dos Estados membros, que ainda transferem diversas competências para os municípios (condados, municípios, cidades). Embora caminhem em direção ao centro, não se pode afirmar até quando permanecerá nesta direção e muito menos que esta centralização tenha sido constante e linear. É perceptível que a tendência ao centro, nos momentos de crise grave, é revertida no momento de crescimento, o que também não pode ser tomado como uma afirmativa absoluta.
Importante lembrar que o federalismo centrípeto (EUA, Suíça e Alemanha) é formado a partir de Estados soberanos que historicamente constituíram uma Confederação e depois uma federação. Por este motivo percebe-se uma tensão típica desta forma, onde o movimento constitucional é centrípeto para resistir a uma matriz de poder político e cultural centrífuga, o que é o oposto do nosso modelo.
O federalismo brasileiro, ao contrário de norte-americano, é um federalismo centrífugo (movimento constitucional em tensão com um movimento político e cultural centrípeto em nossa história independente até os dias de hoje) e absolutamente inovador ao estabelecer um federalismo de três esferas, incluindo o município como ente federado.
O aspecto centrífugo do nosso federalismo é extremamente importante para a interpretação da Constituição e rejeição de aspectos inconstitucionais em medidas provisórias, leis, atos de governo e emendas à Constituição.
Como já mencionado, o nosso Estado federal surgiu a partir de um Estado unitário, criado pela Constituição de 1824. O seu processo de formação é, portanto, exatamente o inverso do norte-americano, o modelo clássico. A Constituição brasileira de 1891, inspirando-se nas instituições norte-americanas, adota o federalismo. Entretanto, a história não pode ser copiada, e o modelo norte americano, tanto de Suprema Corte, como de presidencialismo, como de bicameralismo e federalismo foram construídos na história norte-americana, sendo bastante diferente do nosso.
A visão de nosso federalismo como federalismo centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Somos um Estado federal que surgiu a partir de um Estado Unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação moderna e um Estado democrático de Direito efetivo. A Constituição de 1891 construiu um modelo federal altamente descentralizado, mas artificial, pois não houve União de Estados soberanos, mas sim uma divisão para se criar uma União artificial, que, por este mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras posteriores. Não se pode negar a história, mas sim trabalhar com ela para fazer evoluir o nosso Estado para modelos mais descentralizados e, logo, mais democráticos. Por isto, um federalismo de três esferas teria que surgir no Brasil, país de tradição municipalista.
A federação descentralizada de 1891 recua no grau de descentralização em 1934 e 1946, sendo que, na Constituição de inspiração social-fascista de 1937, a federação foi extinta. A conexão entre autoritarismo e centralização é muito forte na nossa história. Nas Constituições de 1967 e principalmente de 1969 (a chamada Emenda nº1), temos uma federação nominal. A expressão “federalismo nominal” refere-se ao nome dado ao Brasil de “República Federativa” pelas Constituições de 1967-69 que não corresponde à distribuição de competências prevista no próprio texto e a uma prática autoritária que nega o federalismo. O Brasil neste período tem nome de Estado federal mas é, na sua estrutura e na realidade dos jogos de poder, um mero Estado unitário autoritário. No Brasil da ditadura empresarial-militar a partir de 1964 as liberdades democráticas são suprimidas o federalismo definitivamente comprometido com a supressão da eleição de governadores e a instituição de senadores nomeados não eleitos pelo povo. Vivemos naquele período uma ditadura mais sofisticada que outras ditaduras latino-americanas, pois foi adotado um sistema semelhante ao sistema eleitoral norte-americano com a adoção de um bipartidarismo legal (nos EUA ocorre um bipartidarismo de fato) e a eleição do presidente da república pelo voto indireto. Tínhamos um novo general a cada cinco anos.
A Constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, criando um novo federalismo centrífugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três esferas (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, embora as inovações tenham sido muito importantes, o número de competências destinadas à União em detrimento dos Estados e Municípios é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos Estados federais mais centralizados do mundo.
A compreensão do nosso federalismo como federalismo centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta e para que se exerça uma leitura constitucionalmente adequada das normas infra-constitucionais, assim como um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos e emendas à constituição absolutamente inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à constituição, e, logo, restrição a qualquer ação contrária à forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar, que se uma emenda centralizadora, logo, tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida neste sentido.
Desta forma, o reflexo desta compreensão ocorre, por exemplo, na leitura correta das limitações materiais previstas no artigo 60, § 4º, quando dispõe que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal. Alguns autores referem-se a este dispositivo como cláusula pétrea. Não acreditamos que esta terminologia seja a mais adequada para nomear as limitações materiais do poder de reforma na atual Constituição, uma vez que não estamos nos referindo à cláusulas imutáveis, mas sim à cláusulas não modificáveis em um certo sentido. No caso específico da vedação de emendas tendentes a abolir a forma federal, esta limitação só pode ser compreendida a partir do sentido do nosso federalismo, no caso um federalismo centrífugo.
Isto quer dizer que:
1. O artigo 60 não veda emendas sobre o federalismo, mas emendas tendentes a abolir a forma federal.
2. Ao vedar emendas tendentes a abolir a forma federal, no nosso caso específico, em um federalismo centrífugo, que tem que buscar constitucionalmente à descentralização, só serão permitidas emendas que venham a aperfeiçoar o nosso federalismo, ou, em outras palavras, que venham a acentuar a descentralização.
3. Emendas que venham a centralizar, em um modelo federal historicamente originário de um Estado unitário e altamente centralizado, são vedadas pela Constituição, pois tenderiam à extinção do Estado federal brasileiro. Centralizar ainda mais o nosso Estado federal significa transformá-lo de fato em um Estado unitário descentralizado, ou em outras palavras, criar um federalismo meramente nominal.
4. Logo, qualquer emenda que centralize mais competência na União é inconstitucional e deve sofrer o controle de constitucionalidade.
5. Finalmente, o modelo centrífugo (federalismo que tende constitucionalmente à descentralização) é princípio constitucional que se impõe não apenas ao legislativo e ao constituinte derivado, mas também a toda a atuação dos poderes da União e, obviamente, também ao executivo.
Podemos concluir que toda e qualquer atuação do legislativo e do executivo da União, que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimentos direcionados aos Estados membros e/ou municípios, é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os Estados e Municípios, pois inconstitucional. Diante da opção de cumprir uma determinação inconstitucional ou a Constituição, cumpre-se a norma hierarquicamente superior, ou seja, a Constituição. Para aquele que descumpre a Constituição, se chefe do executivo federal, cabe o processo por crime de responsabilidade, por atos contrários à Constituição, à Federação e ao Estado democrático e social de Direito.
Ótimo material, extremamente elucidativo!
ResponderExcluir