Reflexões sobre o novo constitucionalismo na América do Sul: Bolívia e Equador
José Luiz Quadros de Magalhães
Introdução
O século XXI começou com uma importante novidade: o estado plurinacional enquanto construção social que desafia a teoria constitucional moderna. Embora possamos encontrar traços importantes de transformação do constitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e da Venezuela de 1999 são as constituições do Equador e da Bolívia que efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar inclusive uma ruptura paradigmática não só com o constitucionalismo moderno mas com a própria modernidade.
O processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio para os estudiosos do tema. Como declarou recentemente, em entrevista divulgada por meios impressos e eletrônicos, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, as transformações radicais por que passa a humanidade na contemporaneidade representam um desafio para os intelectuais.
É fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam a estudar e compreender o mundo em que vivemos se voltem à tarefa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os últimos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo muitas de suas criações. É obvio que uma ruptura, uma mudança paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca será total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o futuro estará impregnado do presente.
Não estamos negando as contribuições da modernidade européia e suas revelações de encobrimentos passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história (não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos, revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações. Muitos dos encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão agora se revelando.
O que pretendemos neste texto e em outros que se seguirão sobre o tema, é buscar entender as rupturas possíveis no campo da Teoria da Constituição e da Teoria do Estado. Para isto vamos desenvolver reflexões sobre determinados eixos que acreditamos são essenciais para compreender o processo em curso na Bolívia a partir da Constituição Plurinacional.
Como proposição inicial de estudo e reflexão analisaremos:
a) A relação histórica moderna entre Constituição e democracia. O estudo deste aspecto do constitucionalismo moderno é muito importante para entender uma das contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera a modernidade européia). O constitucionalismo moderno não nasceu democrático e sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente do movimento operário no decorrer do século XIX.[1] O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível com a democracia majoritária e mesmo após o “casamento” entre constituição e democracia representativa majoritária a resistência do liberalismo sempre foi muito grande aos mecanismos efetivamente democráticos includentes.[2] De certa forma assistimos isto até hoje quando os imperativos econômicos liberais impostos pela União Européia (o banco central europeu) e organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional ignoram ou até mesmo combatem mecanismos democráticos representativos que interfiram em pseudo verdades econômicas. O “novo constitucionalismo” que surge na América do Sul trás consigo o conceito de democracia consensual não hegemônica para o qual as construções teóricas modernas dos direitos fundamentais sobre a necessidade de mecanismos contra-majoritários e da existência de vitórias temporárias de argumentos debatidos, podem ser não aplicáveis (veremos isto mais adiante). Não falaremos de argumento vitorioso ou de melhor argumento, o diálogo não será interrompido pela votação e a conquista da maioria, e, logo, não serão necessários mecanismos contra-majoritários onde a regra será o permanente dialogo não hegemônico com fins de construir consensos sempre temporários. Na democracia majoritária representativa moderna a votação interrompe cada vez mais cedo o debate (não há muito tempo para o diálogo) de forma que em muitas circunstâncias só restou o voto sem debate. É necessário decidir, daí a necessidade do voto. Como a decisão deve ser tomada cada vez mais rapidamente em muitos casos só restou o voto. É a “democracia majoritária” ou a construção de maiorias contra a própria democracia. Este será o eixo desenvolvido neste artigo.
b) Outro eixo que debateremos em outro momento será a uniformização “versus” a diversidade. Já escrevemos em outros artigos e ensaios sobre esta dicotomia. O Estado moderno é uniformizador, normalizador. Desta uniformização (homogeneização) depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para que os diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados, que começam a se constituir no século XVI, reconheçam o único poder central do Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as identidades pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que podem ser representados com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo os mouros e judeus da península ibérica) simbolizada pela queda de Granada em 1492 e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da uniformização de valores por meio da religião obrigatória que se reflete no direito moderno com a uniformização do direito de família e do direito de propriedade que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como essência da economia moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco nacional, um exército nacional e uma polícia nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito moderno segue este padrão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no direito internacional (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança). Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito à diferença e o direito à diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda maior em se admitir o direito a diversidade como direito coletivo. O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua proposta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como resultado do diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a construção de um novo argumento. Não há uniformização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da compreensão de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um pluralismo epistemológico[3]. A enorme dificuldade do direito moderno em reconhecer a diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalismo plurinacional: este constitucionalismo se constrói sobre a diversidade radical, que é seu fundamento.
c) Chegamos então ao terceiro eixo: o pluralismo epistemológico, rapidamente mencionado acima e que será desenvolvido oportunamente. Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser a sustentação deste novo constitucionalismo.[4]
d) No quarto eixo de discussão vamos discutir a possibilidade de superação de um sistema monojurídico ou bijurídico (Canada?) por sistemas plurijuridicos que podem ser caracterizados especificamente pela existência de vários direitos de família e de propriedade e da existência de tribunais (judiciários locais) capazes de solucionar estes conflitos além da constituição de tribunais (pluriétnicos e ou plurirepresentativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de construção de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções consensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias de argumentos de uns sobre outros. Assim um judiciário que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido, apontando o argumento vencedor e com isto interrompendo o conflito sem solucioná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante. Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argumento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso, uma vez que o conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece latente e certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão rápida, pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados, voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser conquistada no Judiciário: no lugar de um argumento vitorioso, de um lado vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada.
e) Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-afro-latino americana) não pode passar pelos mecanismos uniformizadores do direito constitucional e internacional modernos.
f) A superação do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução dialógica não hegemônica do direito “plurinacional”.
g) A necessidade de busca de um universalismo possível como um desafio teórico filosófico final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e psicanalista Alain Badiou.[5]
Passemos então ao tema deste primeiro texto: a tensão histórica moderna entre a democracia e a constituição e sua possível superação no constitucionalismo plurinacional.
1- O constitucionalismo liberal e a conquista do voto igualitário.
O constitucionalismo não nasceu democrático. E demorou muito tempo para se democratizar. Precisamos recuperar algumas informações históricas para entender este processo.
O Estado moderno (a partir de 1492) foi construído a partir de uma aliança entre nobreza, burguesia e o rei. Das três esferas de poder territorial (império, reino e feudo) o estado moderno é construído a partir da afirmação do poder do rei sobre os senhores feudais (nobres), e da aproximação dos burgueses que, necessitando da proteção do rei, ajudam a financiar a construção do estado moderno. A insurreição dos servos ameaça o poder e posição de nobres e burgueses, que passam a necessitar da proteção do poder real, ou seja, de um poder centralizado, hierarquizado e uniformizado.
Assim, o capitalismo moderno se desenvolve a partir da necessária proteção do rei (do estado) para crescer. Não é possível capitalismo sem estado. O estado moderno cria o povo nacional, o exercito nacional, a moeda nacional, os bancos nacionais, a polícia nacional. Sem isto não teria sido possível o desenvolvimento da economia capitalista. A expansão militar, a conquista do mundo, a exploração de recursos naturais com a escravização de milhões de pessoas consideradas inferiores, é fator fundamental para o desenvolvimento da economia capitalista. A polícia como mecanismo de repressão dos excluídos do sistema é outro fator primordial. Forças armadas para buscar recursos naturais para alimentar a indústria e polícia para reprimir os explorados que produzem.
O segundo passo do estado moderno será o surgimento do constitucionalismo. As revoluções burguesas representam o amadurecimento da classe burguesa que se desenvolve sob a proteção do rei. Importante perceber esta aliança que está presente até hoje nos estados contemporâneos (ainda modernos). A burguesia se desenvolve sob a proteção do poder do rei, e é justamente quando esta classe consegue mais poder econômico que a nobreza que então passa a buscar o poder político. Este poder político é conquistado com as revoluções burguesas. A partir deste período vamos assistir alianças ou rupturas provisórias com uma posterior acomodação do poder entre nobres e burgueses que se sustenta na Europa até hoje.
O constitucionalismo moderno surge da necessidade burguesa de segurança nas relações econômicas, nos contratos. Constitucionalismo significa, portanto, “segurança”.
O constitucionalismo nasceu liberal e logo, não nasceu democrático. Constitucionalismo e democracia são palavras e idéias incompatíveis para o pensamento liberal na época. Convém neste momento explicitar os significados históricos dos termos.
Os burgueses, agora com poder político, conquistado a partir do poder econômico, necessitavam de uma ordem jurídica estável, que lhes garantisse estabilidade, respeito aos contratos e a propriedade privada. A essência do constitucionalismo liberal será a “segurança” nas relações jurídica por meio da previsibilidade, respeito aos contratos e proteção a propriedade privada. Agora, pela primeira vez, existia uma lei maior que o estado: a constituição. A função da constituição liberal é de afastar o estado da esfera privada, das decisões individuais dos homens proprietários. Assim, os burgueses, que cresceram sob a proteção do rei e do estado moderno, agora construíam uma ordem jurídica que lhes garantia liberdade para expansão segura de seus negócios. Mais uma vez lembramos: não há capitalismo sem estado moderno. É o estado moderno que permite o desenvolvimento da economia capitalista com o exército (para conquista de territórios com a finalidade de exploração de recursos e de mão de obra)[6] ; com a polícia para reprimir os excluídos; com a moeda nacional e os bancos nacionais; com o direito nacional para padronizar, homogeneizar, e logo, coibir toda crítica, toda alternativa.
O constitucionalismo nasceu liberal (e logo, não democrático) com o objetivo de limitar o poder do estado frente aos direitos de homens, brancos, proprietários e ricos. A liberdade individual, fundada na propriedade privada, passa a ser a essência do novo ordenamento jurídico. Constitucionalismo significa segurança, e segurança é expressa no constitucionalismo pela busca de estabilidade econômica e social por meio da pretensão de permanência da constituição.
A norma constitucional é capaz de oferecer segurança uma vez que é superior a todas as outras normas e poderes do estado. A norma constitucional, portanto, traz estabilidade uma vez que se pretende permanente. Superioridade da norma constitucional; rigidez constitucional (dificuldade de alterar o texto constitucional); mecanismos eficazes de controle de constitucionalidade das leis e atos; significam estabilidade, permanência e logo, segurança.
Este primeiro passo do constitucionalismo é muito importante. Agora existia uma ordem jurídica constitucional superior a todo poder do estado. Entretanto esta ordem não era democrática. Os liberais, defensores da propriedade privada, da decisão individual, não podiam aceitar a democracia majoritária. O liberalismo, elitista e não democrático em sua essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e logo sobre a vontade de cada um. O liberalismo vitorioso das revoluções burguesas viria garantir a liberdade de escolha individual de homens proprietários. A democracia majoritária se apresentava como incompatível com o liberalismo. Neste período, as constituições garantem direitos individuais de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas da população. As constituições liberais estabelecem o voto censitário.
O século XIX assiste um processo de transformação importante. A formação da identidade operária (o sentimento de classe operária) faz parte das novidades surgidas neste século. A situação de milhões de trabalhadores, depositados em fábricas, trabalhando todos os dias, a maior parte de suas horas de vida diária, permite que gradualmente, estas pessoas, compartilhando a mesma situação de opressão e exploração no mesmo espaço (a fábrica) se organizem e comecem a reivindicar juntos melhores condições de vida.[7] Este é o momento de proliferação de sindicatos, considerados ilegais pela ordem liberal que os reprimia com direito penal e polícia, assim como é o momento de surgimento de boa parte dos partidos políticos modernos, especialmente os partidos de esquerda, vinculados aos sindicatos e ao movimento operário como os partidos socialistas, trabalhistas, sociais democráticos e comunistas (muitos postos na ilegalidade pelo sistema liberal).[8]
Aos poucos, os operários começavam a sentir as profundas contradições do liberalismo. A promessa de uma ordem social e econômica sem privilégios hereditários (que aparecia no senso comum do discurso liberal) não se concretizou e a nova ordem mostrava-se cada vez mais próxima à ordem anterior. Os grandes proprietários copiavam os costumes e práticas da nobreza. As leis produzidas nos parlamentos eleitos pelo voto censitário[9] eram sempre contrárias aos interesses da maioria. O trabalhador era sistematicamente punido e a pobreza era criminalizada. A conquista do voto igualitário masculino teve a participação determinante do movimento operário. É a partir deste momento que começa a ocorrer o casamento entre constituição e democracia.
Importante ressaltar que não de trata de uma fusão de conceitos: democracia e constituição são e não podem deixar de ser, conceitos distintos. Um existe sem o outro e a importante convivência entre estes dois conceitos é (em uma perspectiva da democracia representativa majoritária e do constitucionalismo moderno) sempre tensa. Uma convivência difícil mas necessária. Isto é o que vamos discutir agora.
2- Democracia “versus” constituição
Comentamos acima que o constitucionalismo moderno não nasceu democrático e o seu processo de transformação e lenta democratização ocorreu por força dos movimentos sociais do século XIX, especialmente o movimento operário, os sindicatos e a constituição dos partidos políticos vinculados às reivindicações e lutas operárias.
Vimos que a função primeira de uma constituição liberal era de oferecer segurança aos homens proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de permanência e superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social e econômica para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários.
Ao contrário da constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação, mudança?
A dicotomia entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que se encontra na raiz de nossas vidas. Ao contrário de uma perspectiva contraditória cultural entre busca do novo (risco) e busca de segurança, a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o universo de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação. O próprio universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser humano, como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de transformação permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos outra característica essencial. Somos seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um grau de autonomia racional razoável. Do ponto de vista psicológico, o que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de transformação, a busca do novo. Logo, uma sociedade livre e democrática, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de risco na medida em que é uma sociedade em mutação permanente.
Temos então a equação do constitucionalismo democrático moderno. A tensão permanente entre democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e permanência; transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos, aparentemente contraditórios, é uma busca constante. Democracia constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco minimamente previsível; mudança com permanência.
Importante lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e, portanto, como limite às mudanças. O papel da constituição moderna é reagir às mudanças não permitidas. Já, a democracia, é entendida como democracia majoritária e representativa.
A base da teoria da constituição moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático. Como é oferecida esta segurança?
Para que a Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas, modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto. As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal); processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária para que a constituição acompanhe as transformações ocorridas pela democracia representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com a segurança, nem mudar nada o que acaba com sua pretensão de permanência. Daí que não pode a teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas (emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição. Isto representaria destruir a essência da constituição: a busca de segurança. De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a não transformação da constituição por meio das mutações interpretativas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua essência, a busca de segurança.
Este é o equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno democrático, considerando democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição enquanto limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que protege os direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se pode compreender as teorias modernas da constituição.
Permanece ainda uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se pretende democrática), de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre uma defasagem entre as transformações da sociedade democrática e as transformações da constituição democrática. O que decorre desta equação é o fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essência da constituição e da democracia (permanência x transformação; segurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A teoria da constituição apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no que se refere a realidade social, cultural, histórica, econômica).
Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica democrática constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só por meio de um movimento inequivocamente democrático será possível (ou justificável) a ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática justifica a ruptura com a constituição, está ruptura só será legitima se for para, imediatamente, estabelecer uma nova ordem constitucional democrática.
Assim a democracia só poderá legitimamente superar a constituição se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constituição democrática. A democracia acaba com a constituição criando uma nova constituição a qual esta democracia se submete. Esta é a lógica histórica do constitucionalismo democrático moderno. Veremos mais adiante como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais a lógica contra-majoritária.
3- Os problemas da democracia majoritária
O “casamento” entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de proteger a minoria, e cada um, contra maiorias que podem se tornar autoritárias, ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão se transformar em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites, transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição democrática (moderna, democrática representativa e majoritária) são os direitos fundamentais.
Assim, os direitos fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela constituição contra maiorias provisórias que em determinados momentos históricos podem ceder a tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a seguinte: pode a população, majoritariamente e livremente, escolher um regime de governo não democrático? O exemplo não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de democracia é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a democracia. Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas de organização históricas, assim como as formas de participação e construção da vontade comum em uma sociedade também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na maioria das vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos ocidentais.
Mas voltando a discussão realizada dentro do paradigma moderno de democracia constitucional ocidental (européia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir democraticamente contra a democracia. A estes mecanismos de proteção às conquistas históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contra-majoritários. Em momentos de crise podem os cidadãos cederem às tentações autoritárias e reacionárias e a função da constituição é reagir a estas mudanças não permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a proibição do “retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável, e por isto, talvez, muitas vezes, falsa.
Um exemplo claro disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso? Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso?
Outro aspecto é necessário ressaltar a respeito da democracia majoritária. O voto, confundido muitas vezes com a própria idéia de democracia, é na verdade um instrumento de decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso, e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão.
Interessante notar que cada vez mais, o tempo do debate, da exposição das opiniões está cada vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de democracia semi-direta, o espaço dedicado ao debate de idéias e proposta se reduz. Cada vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, idéia. A opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto, idéia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos vitoriosos e derrotados.
Assim, tanto no legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial.
A democracia consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos fundamentais.
Vejamos.
4- Conclusão: A democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano.
Uma vez compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais.
Comecemos pela democracia. Ao contrário da democracia moderna essencialmente representativa, a democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos representativos majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam, mas, sim, que devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados de construção de consensos.
A proposta de uma democracia consensual deve ser compreendida com cuidado no paradigma do estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta democracia deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de dominação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as formas de violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o diálogo a ser construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos prévios, construídos por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração a necessidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações sociais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura.
A partir desta descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro.
Os consensos construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da democracia. Daí posturas novas precisam ser inauguradas. A postura não hegemônica deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos argumentos. Não se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate. Não é possível compreender uma democracia consensual com os instrumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição permanente. Nenhum consenso se pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela necessidade de decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção de maiorias.
Compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais.
Como a democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são construídas por maiorias, mas, sempre, por todos, a constituição não necessita mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de mecanismos contra-majoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria como fator de decisão.
Assim, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos permanentemente. O Estado e a constituição no lugar de reagir a mudanças não previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes.
Trata-se de uma nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de Estado, Constituição e Democracia. Um conceito fundamental para desenvolvermos e aprofundarmos a discussão é o de pluralismo epistemológico. Esta será a nossa próxima análise.
BIBLIOGRAFIA:
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[1] ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[2] LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
[3] OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia, 2009.
[4] SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
[5] BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.
[6] CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
[7] ELLEY, Geoff. Forjando a democracia, ob.cit.
[8] SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
[9] George Burdeau comentando a Constituição burguesa francesa de 1814 comenta que não esteve em questão em nenhum momento a adoção do sufrágio universal pelos liberais. Estes consideravam o sufrágio universal como algo grosseiro. O direito de sufrágio não é considerado um direito inerente a qualidade de homem. O voto depende da capacidade dos indivíduos e a fortuna aparecia como uma forma de demonstrar atitude intelectual e maturidade de espírito, além de garantir uma opinião conservadora típica (é claro) dos ricos. Neste período o direito de voto depende de uma condição de idade (30 anos) e uma condição de riqueza. Para poder votar era necessário pagar 300 francos de contribuição direta, o que para época era uma quantia considerável. Para se candidatar as exigências eram ainda maiores: 40 anos de idade e pagar 1.000 francos de contribuição direta. Em toda França o numero de eleitores não passava de 100.000 (1 eleitor para cada 300 habitantes) e o numero de pessoas que podiam se candidatar não passava de 20.000. (BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316).
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