O seqüestro da liberdade pelo desejo no discurso do século XX.
Liberdade e desejo. Qual a liberdade prometida no século XX pela sociedade de consumo norte-americana? O que movimentou milhões de europeus do leste em direção ao capitalismo com o fim do socialismo real? Qual o grande desapontamento do inicio do século XXI?
Liberdade e desejo são palavras que ganham significados diferentes em momentos, culturas e referenciais teóricos diferentes. Significantes aos quais atribuímos significados diferentes. Mas a pergunta que nos fazemos é: no senso comum, quando estes dois conceitos se confundem? O poder de construir os significados das coisas, de atribuir sentido as palavras constitui-se no grande poder. Daí a imposição do idioma do colonizador. Daí a guerra das línguas e a dominação do inglês. Pensar, estudar, filosofar, conversar em um idioma significa estar condicionado a regras linguísticas que conduzem e limitam. Que abre portas enquanto fecha outras. O ver o mundo condiciona-se pelo complexo sistema de regras dos idiomas. Maior o condicionamento quanto mais se ignorar este fato.
Liberdade tem sido uma palavra chave nestes últimos séculos, especialmente a partir da revolução francesa. A vinculação de seu sentido a idéia liberal de propriedade privada é cuidadosamente mantida desde então no mundo capitalista. No pós segunda-guerra, especialmente a partir da hegemonia ideológica neoliberal a partir dos anos oitenta, somou-se ao sentido de liberdade a possibilidade de consumir permanentemente. Ser livre significa poder consumir cada vez mais. Ser livre significa poder escolher o objeto a ser consumido. O objeto desejado que será consumido para então ceder espaço a outro, e outro, indefinidamente.
Escondido por detrás do significante LIBERDADE está este DESEJO de consumo permanente. O desejo de consumir, coisas e pessoas, democratizado pela economia capitalista que promete o paraíso para aquele que tem acesso ao dinheiro. Basta ter dinheiro. Assim o grande paradigma capitalista liberal do pós segunda guerra se tornou aquele do desejo construído, da demanda permanente. Não se trata do desejo libertador, que nos movimenta em direção a uma busca de algo que nos liberte mesmo que saibamos ser provisoriamente, mas um desejo, um impulso em direção a coisas, objetos, experiências que se consomem com extrema rapidez, e logo pede outra. Um desejo construído exclusivamente pelo outro, que escraviza ao mobilizar indefinidamente as pessoas em direção a objetos que não podem ser apropriados, e cuja a experiência efêmera já conduz em direção a um outro desejo. Desejo por coisas: sejam estas coisas pessoas, objetos ou experiências conduzidas pelo outro como, por exemplo, um pacote turístico ou uma prostituta em uma Boate pornô.
“Adeus Lênin” é um filme excepcional e nos fala um pouco de tudo isto: um desejo libertador, a escravidão do consumo, e a grande confusão gerada pela vitória do gozo sobre a razão. A vitória do excesso sobre a solidariedade. Não que o socialismo real na Alemanha oriental representasse um bom desejável contra o consumismo do outro lado. Lá o desejo foi aprisionado e a liberdade seqüestrada. Mas o desejo presente no sonho do filho por um socialismo sem muro, sem polícia, sem medo, representa que a opção simplificada entre as sociedades e economias de socialismo real do leste europeu e social-liberal da Europa ocidental, não é única. Mostra como não estamos condenados a nos conformar entre um e outro mas que é possível construir qualquer outro se assim conseguirmos desejar. O desafio maior é conseguir desejar este desejo libertador em sistemas que aprisionam o desejo, em sistemas que te proíbem desejar (socialismo real) ou que assumem o controle do seu desejo (capitalismo), te fazendo desejar consumir indefinidamente, em uma escravidão alucinante, interminável, sem trégua.
Em uma bela representação, o filho protetor, que protege o sonho da mãe, que protege o seu desejo, com a queda do muro, vai a Berlim ocidental a procura do pai. Nesta primeira viagem entre dois mundos distantes, embora fisicamente tão próximos, o filho é conduzido por um taxista astronauta. Naquela curta viagem entre mundos distantes, o astronauta herói de sua infância o conduz para o encontro com o pai. O mesmo astronauta quando no espaço enxergou um mundo sem muros e representou o socialismo sem muros que impedissem as pessoas de chegarem a uma sociedade sem a prisão do consumo, da competição e do desejo controlado. A ausência de muros permitiria que as pessoas pudessem desejar uma sociedade de solidariedade, amizade e simplicidade. Por fim, o olhar orgulhoso da mãe, ao perceber que, o socialismo enquanto desejo de liberdade, estava muito vivo em seu filho.
O filme é um belo conto contemporâneo de um mundo que se mostra sem opção, incapaz de enxergar as escolhas que se escondem atrás das milhares de escolhas diárias a que somos submetidos: a marca do arroz, do feijão, a companhia telefônica, o modelo do celular, as diversas cores de automóveis e as infindáveis escolhas de consumo que nos esconde, que suprime a possibilidade de escolha. Escolhemos todo o tempo e isto nos retira a capacidade de escolha. Escolhemos o que não tem nenhuma importância para que não possamos escolher sobre nossa vida. Desejamos todo o tempo para que não possamos desejar com liberdade, algo que nos retire deste circulo alucinante de consumo infindável de demandas criadas pelo outro.
Outra reflexão interessante que nos trás o filme é a tentativa de controlar a história por meio de uma estória superposta. A manipulação da história, a invenção de fatos e personagens não é raro no exercício do poder do Estado, e não foi uma prerrogativa do socialismo real, mas de toda forma de exercício de poder, que precisa em medidas diferentes, da mentira, no passado e no presente de nossas sociedades. Todas.
A proteção que o filho oferece a mãe implica na tentativa de encobrir o real. As motivações são de proteção, como um Estado que quer afastar seus súditos do duro peso da realidade para evitar seu sofrimento. As transformações pelas quais passava a Alemanha oriental às vésperas da unificação eram emoções muito fortes para uma mulher que acreditava e lutava pela sociedade socialista em construção em seu país. Um coração que não podia suportar, aparentemente, o duro golpe contra suas crenças. Mas mesmo a descoberta de um socialismo novo e livre na estória criada pelo seu filho não foi capaz de evitar a morte. O socialismo novo pertencia ao seu filho e com ele poderá florescer. Numa bela mensagem carregada de simbolismo, a morte do “socialismo real” pode representar o nascimento de um outro socialismo. Aquela morte não foi um fim, mas um novo começo, uma renovação.
Pensando a sociedade alemã após a unificação são vários os sinais que podemos perceber em direção a algo novo, latente, que vem lentamente tomando as pessoas. Em 1993, 72% dos alemães orientais (da antiga Alemanha socialista chamada RDA – Republica Democrática da Alemanha incorporada pela Alemanha capitalista – RFA – República Federal da Alemanha) afirmavam não se sentirem mais livres depois da incorporação, sendo que uma diferença sensível ocorreu com o novo sistema: agora embora não mais livres, pois novas formas de controle se mostraram diante dos que existiam antes, mais sutis e mais eficientes, os alemães orientais se sentiam supérfluos. Saíram de uma sociedade onde a relações pessoais se constituíam em torno de simpatias e interesses não econômicos para uma sociedade onde as relações ocorrem em grande medida por interesses de carreira, status, poder e dinheiro. O aumento no consumo de antidepressivos e ansiolíticos foi notado após a incorporação.
Recentemente, em início de 2007, foi divulgada uma pesquisa que mostrava o baixo grau de relacionamentos amorosos inter-bairros em Berlim. Diferente do que ocorria nas outras cidades alemãs, onde os relacionamentos chegavam a 30%, em Berlim este numero não chegava a 3%. O fenômeno de relacionamento inter-bairros é mais comum quanto maior a homogeneidade econômica, social e cultural da população. No Brasil, por exemplo, é raro o relacionamento entre pessoas de classe social distinta, o que reflete, é obvio, na distribuição geográfica destes relacionamentos no município.
No caso de Berlim, os jovens de Berlim oriental (ex-socialista) foram criados com valores sociais distintos dos jovens de Berlim ocidental (capitalistas). O consumismo, a valorização de marcas, o gosto por musica e por roupas foram apontados como fatores que afastavam os dois grupos sociais, com poder econômico e valores sociais distintos.
Mas recentemente a Alemanha assistiu ao surgimento de grupos de pessoas que passaram a cultuar uma vida mais simples, resgatando símbolos da Alemanha socialista como o seu automóvel e outros produtos.
No inicio de 2008 o fortalecimento de um novo partido de esquerda levou a social-democracia alemã a retomar discursos históricos de bem-estar social, num momento onde a sociedade apresenta sinais de polarização.
A história não acabou, e grandes mudanças se apresentam para um futuro próximo. As reflexões que este filme nos trás pode ajudar a entender o passado e o presente, e a pensar um futuro diferente.
Efeitos inesperados ocorrem após a unificação política e jurídica e a lenta comunicação entre universos de sentido, de compreensão e de sentimentos de mundo distintos. Com a reunificação da Alemanha surgiu um sentimento ambíguo em relação aos atrasos da Alemanha capitalista em relação ao sistema familiar e educativo do oeste-alemão. A ampliação da construção de creches para permitir que a mulher alemã possa trabalhar é reflexo disto. Embora ocorra uma enorme dificuldade em reconhecer este fenômeno, e mesmo reação da imprensa conservadora (que chamou as creches na Alemanha do oeste de “creches leninistas”) a nova política para a família reflete esta fusão de horizontes que apresentam dia a dia resultados que podem ser inesperados.
O governo alemão de Ângela Merckel optou por dar inicio no ano de 2007, a construção de 500 mil novas vagas nas creches até o ano de 2013 para crianças de 1 a 3 anos, em uma aproximação grande com a política da ex-Alemanha socialista. Enquanto, na ex-Alemanha Oriental, a demanda por creches está mais ou menos atendida, o mesmo está longe de acontecer na parte ocidental. Não mais do que 5% a 9% das necessidades, segundo dados dos Länder (Estados), foram atendidas. Diante disso, 3 bilhões de euros (R$ 7,9 bilhões) deverão ser investidos para permitir a construção das creches e a formação do pessoal. O Partido Social-Democrata propôs garantir o financiamento desta verba limitando as vantagens fiscais concedidas aos casais de maior renda, mas esta idéia foi rejeitada pela democracia-cristã.
Ocorre hoje uma tendência por todos os Bálcãs conhecida como "Iugonostalgia", na qual jovens e velhos anseiam por um passado enquanto lutam com um legado de guerras sangrentas e dificuldades econômicas."Eu sinto saudade da Iugoslávia", diz um empreendedor esloveno de 33 anos, em um depósito lotado com sua coleção de souvenires da Iugoslávia, que incluem retratos de Tito, máquinas de costura antigas, bonecas infantis sérvias e garrafas de 50 anos de Cockta, a Coca-Cola iugoslava.
"Nós não tínhamos nada, mas tínhamos tudo", diz ele. "Vizinhos assavam os bolos uns dos outros; tínhamos um líder em quem confiávamos.”
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