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11.03.11 - América Latina e Caribe
O desafio do Bolivarianismo para a Teologia da Libertação. (Perguntas e provocações sobre um tema polêmico)
Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital
Nestes dias em que escrevo estas linhas, no norte da África, multidões desarmadas, constituídas principalmente de jovens reunidos através da internet e de sites de contatos virtuais, têm ocupado praças públicas e, mesmo com muitos mártires e muitos sofrimentos, tem conseguido derrubar ditaduras. A onda de manifestações populares que atravessa o norte da África nos recorda os movimentos sociais e políticos que, desde o início deste século, têm surgido em vários países da América Latina. Na Bolívia, fala-se em "protagonismo índio”. No Equador, denomina-se "revolução cidadã”. Na Venezuela, a referência fundamental é Simon Bolívar. As mudanças sociais se situam como um novo movimento bolivariano. Em outros países, embora sem este mesmo nome, algo de novo se move no mesmo sentido. No Uruguai, um ex-guerrilheiro e homem simples do povo é eleito presidente. No Paraguai, um ex-bispo ligado à Teologia da Libertação assume o governo. Também em El Salvador, há um governo popular vindo do processo revolucionário. Na Nicarágua, apesar de todas as fragilidades e ambigüidades do partido sandinista, há mudanças sociais e políticas substanciais. Mesmo em países nos quais o processo político é mais complexo e não se pode ainda falar em bolivarianismo, este fenômeno tem sido importante como proposta ou modelo que traz novas esperanças e mobiliza setores populares.
O professor Boaventura de Souza Santos não hesita em afirmar: "A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política” (1). Neste novo processo, aqui denominado de bolivariano, o professor Boaventura de Sousa Santos distingue três etapas ou dimensões que têm ocorrido no continente:
1º) A transição da ditadura à democracia.
2º) A transição do colonialismo à descolonização.
3º) A transição do capitalismo a um caminho que se constitua como um novo socialismo para o século XXI.
Leonardo Boff afirma: "É um novo projeto de pátria grande, como, no início do século XIX, era o sonho de Simon Bolívar, o libertador. Hoje, este processo revolucionário, mesmo ainda incipiente e frágil, está tomando um caráter original e autóctone, inspirado nas culturas próprias dos antigos povos do continente e mergulhado na comunhão amorosa com o universo que nos rodeia, do qual somos parte pensante e sentida”(2).
Evidentemente, em um caminho ainda incipiente e frágil, há contradições e ambigüidades, muitas delas, inerentes a todos os processos políticos. Sem desconhecer ou ignorar que "todo ponto de vista é sempre vista de um ponto”, peço permissão para brevemente colocar aqui como compreendo este fenômeno. Tento descrevê-los, não tanto a partir de governos e figuras de homens fortes e sim principalmente a partir das comunidades e movimentos de base. Estes novos processos sociais e políticos têm se sustentado não pela força de partidos políticos tradicionais ou por ideologias socialistas. Baseiam-se na mobilização de setores populares e, em vários lugares, têm uma raiz em comunidades que se reuniram a partir da fé e da espiritualidade, procurando ligar a fé com a vida, a espiritualidade com a ação política.
Desde os anos 70, a Teologia da Libertação tem refletido sobre a prática das comunidades cristãs populares e mesmo sobre os movimentos populares, considerados como caminhos e instrumentos para a realização do projeto divino de justiça e paz para este mundo. Por isso, agora que, em vários lugares do continente, se amplia este processo que podemos chamar de "revolução bolivariana”, não podemos nos omitir. É preciso refletirmos sobre o desafio do bolivarianismo para a fé, a espiritualidade e a Teologia da Libertação. Um tema tão vasto e complexo não é tarefa de uma só pessoa. A Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), propõe uma consulta teológica sobre este tema. Nestes tempos de internet, ao menos no primeiro momento, pensamos em mobilizar um grupo de teólogos e teólogas para escrever o que pensam deste processo e como a Teologia da Libertação poderia aprofundar um diálogo sobre isso. Provavelmente, em um segundo momento, tomaremos este tema como assunto de um encontro ou simpósio teológico, talvez a ser realizado em Caracas. Para puxar o assunto, lhes peço permissão para esboçar algumas reflexões no nosso método de sempre: ver, julgar e agir. Faço-o como provocação e para que vocês possam reagir livremente. Toda apreciação será bem recebida e considerada.
1. Algo de novo e positivo
Vamos então chamar aqui de bolivarianismo o conjunto dos processos sociais e políticos novos e de base popular que ocorrem em diversos países da América Latina. Estes processos têm peculiaridades grandes em cada país, mas todos têm em comum a busca de mais justiça social, o caráter de transformação social e política que dá mais protagonismo às classes populares e especialmente aos povos índios, assim como uma maior integração entre os povos do continente e a resistência contra as novas formas de colonialismo, presentes nas intervenções armadas ou disfarçadas do império norte-americano e das agências internacionais do capitalismo neoliberal.
Não é de estranhar que as agências de comunicação ligadas ao poder do Capital insistam em apresentar sempre os aspectos negativos deste processo. Apontam contradições e garantem que nada disso tem futuro. Fazem o mesmo com o Fórum Social Mundial. Na Venezuela ou Bolívia, reduzem tudo a um fenômeno de personalismo ou Chavismo. Aceitar isso é desconhecer um caminho político que eclodiu no México já em janeiro de 1994 com o movimento zapatista, se fortaleceu depois com a articulação da CONAIE no Equador, com a expansão e fortalecimento da Via Campesina e de outras organizações de base. Sem dúvida, nestes processos, co-existem contradições e divisões internas, mas o melhor modo de compreendê-los é procurar captar o seu espírito e sua proposta mais profunda.
2. Bolívar e a libertação latino-americana
Quando falamos em libertadores, para toda a América Latina, a referência simbólica mais importante é Simon Bolívar. Ele nasceu em 1783 de uma família nobre e rica da Venezuela. Desde cedo, envolveu-se em movimentos para democratizar a educação e incluir nas escolas negros e índios. Desde jovem, participou de movimentos rebeldes contra o governo espanhol. Dizia: "Ainda que a guerra seja o resumo de todos os males, a tirania é o resumo de todas as guerras” (3) . De acordo com seus biógrafos, ainda jovem, em Roma, faz um juramento que toma o sentido de uma espécie de consagração espiritual: "Juro diante de vocês e diante do Deus de meus pais, que não permitirei que meu braço descanse, nem que minha alma sossegue, até ter rompido com os grilhões que nos oprimem”.
A Venezuela se tornou independente em 1811. Mas, pouco mais tarde os espanhóis reconquistaram algumas batalhas e Bolívar retomou a luta. Com a bandeira Liberdade ou Morte, lutou na Venezuela, na Colômbia e em outros países. Queria libertar todo o continente, não apenas dos espanhóis, mas de todo tipo de opressão. Elaborou um plano de libertação para os países do continente. Ele chamava de "grande Colômbia” o continente da Colômbia até a Argentina. Viu um dos países ganhar o seu nome: a Bolívia, para a qual, pensou e coordenou a elaboração de uma das constituições mais abertas do mundo. Estipulava liberdades civis, abolição da escravidão, liberdade de expressão e locomoção e a realização de julgamentos populares. Não lutou para governar nenhum dos países que conquistou e, já doente, viu que as elites locais se apoderavam do poder com a mesma ideologia classista e discriminatória que ele tinha visto nos espanhóis. Morreu, aos 47 anos, decepcionado e amargurado. O cientista político Daniel Hellinger considera Bolívar, mesmo com suas contradições, um "santo secular”. Sem dúvida, os ideais de Simon Bolívar e de outros libertadores nunca estiveram totalmente apagados da história do continente. Uma jovem pesquisadora brasileira que fez sua tese de doutorado de História sobre uma guerra civil na Venezuela do século XIX, ficou espantada ao descobrir que todos os governantes e líderes venezuelanos, nos períodos mais diversos da história recente (século XX), de esquerda ou de direita, se referem a Bolívar como herói e ponto de referência. Nos artigos e discursos do poeta e revolucionário José Marti, na Cuba do final do século XIX, encontramos uma verdadeira reverência de admiração por Bolívar e seus companheiros, freqüentemente citados(4). Durante todo o século XX, alguns movimentos populares resgataram esta memória e assumiram esta herança.
3. O ressurgimento do bolivarianismo na Venezuela
Cada pais tem sua história própria e não tenho aqui condições de me referir aos diversos processos históricos. Tomo a história recente da Venezuela onde o bolivarianismo é referência mais explícita, mas gostaria que quem de vocês vive na Bolívia, no Equador e em outros países, possa completar com a história recente do seu povo e dos movimentos populares.
O atual bolivarianismo venezuelano tomou uma nova visibilidade nos anos 70, em ambientes populares, mas principalmente no meio de jovens militares nacionalistas que ansiavam por mais justiça social e um país verdadeiramente independente. Desde os anos 70, na Venezuela, diferentemente da formação dos militares em outros países da América Latina, a Academia Militar de Caracas deu aos cadetes uma visão mais ampla e mais humanista. Em 1971, o jovem Hugo Chávez, aos 17 anos, entrou nesta Academia. Em pouco tempo, conhecia bem a história da Venezuela e da América Latina. Incorporou os ideais de Simon Bolívar, do seu tutor Simón Rodríguez, do comandante Zamora e mesmo do justiceiro popular Maisanta. Este movimento de militares, civis jovens e intelectuais no contato com grupos populares foi o inicio do processo de transformação da sociedade venezuelana, extremamente marcada por desigualdades sociais, na qual uma pequena elite era dona de todo o país e ia gozar seus lucros em Miami e Paris.
Enquanto se sucediam vários presidentes, acusados de corrupção, formava-se o movimento bolivariano com duas bases: uma militar no exército nacional e outra nas favelas e bairros pobres das cidades mais populosas. Na Venezuela dos anos 70 e 80, Hugo Chávez reuniu um grupo de cadetes e oficiais críticos com relação à velha função das Forças Armadas de apoiar os privilégios dos mais ricos e ser caminho de riqueza e corrupção para os oficiais (5). Para mudar o país, os novos bolivarianos privilegiaram a educação popular. Nos bairros e periferias de cidades como Caracas, criaram-se os chamados "círculos bolivarianos”, grupos de discussão e aprofundamento parecidos com os "círculos de cultura”, propostos por Paulo Freire. Estes grupos surgiram, na mesma época, em que, em várias partes do continente, despontaram movimentos populares, camponeses e indígenas. No México (1994), os índios começaram a insurreição zapatista. Por todo o continente se multiplicaram movimentos indígenas e camponeses.
No início do seu primeiro mandato de governo, o presidente Chávez assume o ideal bolivariano, mas não tem ainda clareza quanto à opção socialista. Esta convicção o domina somente após a tentativa de golpe de Estado que sofreu em 2002. Aí ele não foi derrubado porque contou com o apoio do povo simples que foi às ruas para defender o governo. Isso é declarado por Bart Jones, jornalista norte-americano crítico ao bolivarianismo, que foi a Caracas para compreender o que aconteceu (6).
Só a partir daquele momento em que não parece possível nenhum diálogo ou acordo entre um projeto mais popular e os interesses das elites, Hugo Chávez é convencido por seu grupo de companheiros bolivarianos de que não havia alternativa. A partir daí, ele e o grupo todo que está por trás dele proclama: "Socialismo ou Morte!”. Entretanto, este socialismo só poderia vir através de eleições democráticas e do debate aberto e acessível a todos.
4. Natureza do novo bolivarianismo
Há quem rejeita o bolivarianismo por não simpatizar com Hugo Chávez ou ainda por suspeitar que ele pretenda transformar a Venezuela em uma nova Cuba. Entretanto, o bolivarianismo é diferente da proposta soviética e do socialismo cubano. A revolução bolivariana tem outros princípios, descritos na "árvore dos três ramos”:
1º O ramo bolivariano (que vem de Simon Bolívar) e se expressa na luta pela igualdade e reconhecimento da dignidade de todas as pessoas humanas, principalmente das culturas oprimidas. Esta dimensão não pretende atingir apenas a Venezuela, mas vê toda a América Latina como uma única pátria grande, com uma história comum de colonialismo, de sofrimentos e também de culturas e raças irmãs. Por isso, é essencial ao bolivarianismo a solidariedade radical e profunda com todos os povos do continente. Esta dimensão internacionalista e latino-americana do Bolivarianismo tem sido muito importante em todo o continente.
2º O ramo simoniano (de Simon Rodriguez, educador e mestre de Bolívar) insiste na educação como arma para transformação. Não há revolução profunda sem ser centrada na educação aberta a todos. No tempo de Bolívar, índios e negros eram proibidos de estudar. O libertador lutou para que o estudo fosse a eles franqueado e todos tivessem acesso à educação.
3º Finalmente, o ramo zamorrano (de Ezequiel Zamorra, general, companheiro de Bolívar) fala da necessidade de união civil e militar no processo de transformação social e política. Podemos dizer que faz parte deste ramo a intuição aprofundada somente no começo deste século de que, atualmente, na América Latina, a revolução terá de se fazer através dos meios democráticos de eleições e de participação popular. Em países como a Bolívia, a revolução indígena fala em "radicalização da democracia” e na busca do bom viver como meta revolucionária. Assim, podemos ver os movimentos índios e a busca do Sumak Kwasay, Sumak Kamana ou dêem o nome que quiserem dar a esta meta da vida em plenitude, temos de ver isso como fazendo parte deste mesmo processo.
5. Desafios do Bolivarianismo à Teologia da Libertação
Por onde ando e nos meios que freqüento, tenho colocado esta questão. Aqui vou elencar algumas perguntas e provocações que tenho escutado de companheiros/as e de pessoas interessadas tanto na questão política como na Teologia. As questões serão colocadas sem preocupação de hierarquizar as mais ou menos importantes.
Uma primeira questão que muitas pessoas observam é que o Bolivarianismo joga para a Teologia da Libertação o desafio da reinserção concreta em movimentos populares e nas lutas dos povos. Esta teologia nasceu da prática. No final dos anos 60, sem pedir permissão à hierarquia, muitos cristãos e mesmo ministros de várias Igrejas tinham aderido a movimentos revolucionários. Em 1967, na Colômbia, morre nas montanhas o padre Camilo Torres. Em vários países do continente, católicos e evangélicos participam de movimentos considerados subversivos. No começo dos anos 70, para aprofundar a relação entre fé cristã e movimentos revolucionários, vários teólogos da primeira geração da Teologia da Libertação estudaram a teoria marxista. Fazem isso para usar a análise social e econômica como instrumento de melhor compreender a realidade e mais profundamente se comprometer em transformá-la. Mesmo os que tinham consciência das limitações e imperfeições dos modelos concretos do comunismo real, aceitavam partir do que existia concretamente e deixavam claro que o Socialismo, mesmo vivido imperfeitamente era melhor do que os regimes capitalistas.
No começo dos anos 70, no Brasil, bispos católicos do Nordeste e do Centro-oeste publicaram documentos denunciando a situação de opressão do povo. Ali diziam: "Devemos vencer o capitalismo: esse é o grande mal, o pecado acumulado, a raiz podre, a árvore que produz frutos como a pobreza, a fome, as doenças, a morte. Para isso é necessário que a propriedade privada dos meios de produção (as fábricas, a terra, o comércio, os bancos) sejam destronados”(7).
Alguns teólogos aprofundaram o diálogo com governos e partidos de esquerda. Nos anos 80, houve visitas e contatos com os governos cubano, soviético e chinês. Alguns interpretaram estas iniciativas como deslumbramentos ingênuos e pouco sérios. No entanto, quem, hoje, olhar a partir do interesse das organizações de base na América Latina pode perceber que tais iniciativas tiveram influências positivas.
Para amplos setores dos partidos comunistas, estes contatos com cristãos comprometidos com a libertação mostraram a possibilidade de um Cristianismo aberto ao processo revolucionário. Em países como Cuba e China, estes contatos provocaram um diálogo novo e positivo entre governos e alguns setores das Igrejas locais, tanto a Católica como Igrejas evangélicas. Estas visitas de teólogos da libertação a Cuba apoiaram e fortaleceram grupos evangélicos favoráveis à revolução como os batistas que criaram o Centro ecumênico Dr. Martin-Luther King, como alguns professores e alunos do Seminário Evangélico de Matanzas.
Da parte católica, no dia 9 de abril de 1978, em uma Universidade ibero-americana, dom Sérgio Mendes Arceo, bispo de Cuernavaca, México, declarava: "O socialismo é mais relevante para a construção da humanidade do século XXI do que qualquer outra idéia”.Mais tarde, em Cuba, em comum com Fidel Castro, afirma: "Não existem contradições entre os propósitos da fé religiosa e do socialismo. Não existem. Temos de fazer uma aliança estratégica entre religião e a revolução” (8).
O mundo inteiro ficou sabendo que ainda nos anos 60, Dom Helder Camara procurou Roger Garaudy quando este ainda era oficialmente do Partido Comunista Francês e com ele estabeleceu um diálogo que se tornou uma bela amizade entre um cristão e um dito ateu comunista. Em 1968, em uma conferência célebre, Dom Hélder defendia que, assim como, na Idade Média, Tomás de Aquino tinha feito o imenso esforço de ler a fé cristã a partir do pensamento aristotélico, ninguém deveria estranhar o esforço atual de ler a fé cristã a partir da análise marxista. Independentemente da virada histórica que o início dos anos 90 trouxe ao mundo, com a derrubada do muro de Berlim e a queda do comunismo soviético, a preocupação e a proposta metodológica contida na colocação de Dom Hélder não perdeu sua atualidade.
A respeito do que hoje chamamos de "bolivarianismo”, este mesmo profeta latino-americano tem outra afirmação ainda atual. Em 1965, durante a quarta sessão do Concílio Vaticano II, em uma de suas vigílias, escritas como cartas ao grupo de seus/suas colaboradores/as, Dom Hélder escrevia: "O encontro com Monsenhor Dell´Acqua merece um registro especial. (Ele é secretário e conselheiro do papa Paulo VI). Recebeu-me carinhosamente . (...) A problemática da América Latina e do 3º Mundo lhe era familiar. (...) Entende e estimula o novo Bolivarismo, no sentido do esforço conjunto para a independência econômica do Continente, em articulação sempre maior com o 3º Mundo e abertura para o mundo inteiro. Entende e estimula a cobertura da Igreja à idéia de um Mercado Comum Latino-americano...”(9).
Algumas pessoas que se recordam desta longa caminhada e da clareza destes pronunciamentos e da inserção de católicos e evangélicos no processo revolucionário sentem que nestes tempos atuais se tornaram mais raros testemunhos ou posições de teólogos ou teólogas da libertação sobre os problemas sociais e políticos de hoje. Mesmo se hoje não se pensa mais nas mesmas formas de Marxismo e ninguém espera pronunciamentos ou atitudes no estilo dos anos 80, muitas pessoas se perguntam o que seria, na realidade atual, o correspondente aos movimentos revolucionários de outras décadas. Algumas pessoas de base, inclusive coordenadores do MST (Movimento dos Lavradores sem Terra) e da Via Campesina me perguntaram se o Bolivarianismo atual não seria concretamente, sem excluir outros experimentos e modelos, um desafio atual de inserção social e política, como os movimentos revolucionários foram nos anos 70 e 80?
Em uma conversa com José Comblin, meu mestre de Teologia, ele me perguntou: "Na América Latina, hoje, quantos teólogos da libertação, você conhece verdadeiramente inseridos em movimentos de base e organizações populares?” Aí, ele me fazia ver que temos intelectuais que mantêm bons contatos com a base, mas estes contatos não chegariam a ser uma inserção. Ele não queria desvalorizar os companheiros e companheiras que desenvolvem uma teologia positiva e aberta, mas cujo horizonte de experiência e de referência concreta é apenas a Academia e mesmo preponderantemente os teólogos europeus e os documentos eclesiásticos de Roma. Vários fazem isso em uma perspectiva aberta. Sem dúvida, isso é positivo e útil para as comunidades e movimentos populares. Mas, a inserção concreta continua imprescindível. De fato, conheço alguns irmãos e irmãs teólogos inseridos em movimentos de base, mas prefiro jogar esta pergunta a vocês. Talvez alguém me pergunte qual a relação disso com o Bolivarianismo.
É que este modelo (bolivariano) poderia ser entre outros caminhos e modelos um bom desafio para ligarmos as duas dimensões: a da inserção na caminhada concreta de muitas comunidades e, ao mesmo tempo, a possibilidade de nova pesquisa intelectual sobre esta proposta de um socialismo novo e diferente para o século XXI.
Outra questão ou outro enfoque da mesma questão é o seguinte: Mesmo sem estar diretamente inseridos no processo, ou sem participar diretamente dele, os teólogos/as abertos poderiam oferecer às Igrejas uma visão mais aberta e menos sectária que permitisse um novo olhar sobre estes processos sociais e políticos. O que está em jogo é a vida e a libertação dos povos e não apenas partidos políticos ou mesmo adesão a esta ou aquela personalidade de um ou outro governo. O desafio a ser construído seria uma reflexão sobre o reino de Deus como projeto divino para o concreto das sociedades e como este projeto se realiza através de mediações. Estas mediações sociais e políticas são sempre incompletas e imperfeitas, mas, ao mesmo tempo, possibilitam um caminho para a realização mais profunda e maior do projeto. Esta reflexão sobre a utopia e suas mediações, concretizada no nosso continente permitiria estabelecer uma espécie de base mínima sobre a qual, ética e teologicamente, poderíamos fazer uma escala de valoração das propostas de governo e de organização social. Não estou propondo classificar regimes ou governos em uma escala de zero a dez. Isso seria simplista e com risco de parecer que como teólogos estamos julgando a política que, assim, como que, perderia sua autonomia. Não se trata disso. Mas, podemos sim oferecer aos irmãos e irmãs uma base de valores sobre os quais cada cidadão e mesmo um grupo eclesial poderia avaliar e cobrar dos regimes concretos valores ou exigências propostas. Por exemplo, avaliar um regime social e político dando como critério o valor da sustentabilidade da terra e do ambiente. Verificar se tal regime propõe e executa um projeto de reforma agrária a partir dos critérios dos camponeses e índios. Reconhecer se há um projeto de comunicação social a partir da realidade e dos interesses do povo empobrecido e excluído. Assim por diante.
O conflito entre a maioria dos bispos do Equador e a "revolução cidadã” eclodiu quando o povo discutia o projeto da nova Constituição. Muitos bispos e padres condenaram a Constituição Cidadã, sob o pretexto de que ela favoreceria o relativismo moral e daria lugar à aprovação da união gay e da descriminalização do aborto, questões que a Constituição não aborda. Neste contexto, não teria sido possível fazer uma reflexão teológica ecumênica (para as diversas Igrejas) que trouxesse um pouco de luz em meio a esta pobreza de reflexão? Uma associação ecumênica de teólogos poderia se expressar em uma realidade assim e não deixar que a única voz cristã escutada seja a de bispos e pastores simplistamente contrários ao que a maioria do povo almeja.
Afinal, quem está assessorando os bispos católicos e os pastores evangélicos que na Venezuela, Bolívia e Equador, tomam distância não só dos governantes, mas de todo o processo revolucionário que está se construindo?
Finalmente, ainda outra questão:
Se uma das raízes importantes do Bolivarianismo é a raiz cultural e a valorização das culturas indígenas e negras, é fundamental que a teologia negra e indígena possa refletir sobre isso.
Qual a relação entre a proposta do Sumak Kawsay do povo Quéchua ou Sumak Qamaña dos Aymara e que em outros povos toma outras expressões, mas significam sempre o "bom viver” com "a vida em abundância ou em plenitude” proposta por Jesus no evangelho joanino?
Se o Bolivarianismo mantém sua natureza dialogal, a teologia negra e indígena poderia ajudar concretamente os governos a aprofundarem a escuta das sabedorias indígenas e como aprender delas estes novos caminhos para um socialismo autônomo e diferente. Até agora, dirigentes e presidentes de países bolivarianos têm se defendido das acusações de bispos e pastores jurando serem católicos e até como no Equador alunos da Teologia da Libertação. Isso é lamentável. Um diálogo mais profundo poderia ajudá-los a assumir sua laicidade e o compromisso macro-ecumênico, principalmente com os grupos e tradições autóctones.
O desafio teológico do Bolivarianismo nos faz retomar de outra forma e em outros termos o que na América Latina vivemos nos anos 90, especificamente, em setembro de 1992, com o primeiro encontro inter-continental da Assembléia do Povo de Deus (APD) e sua proposta de uma espiritualidade macro-ecumênica contra o neo-liberalismo. São os movimentos populares bolivarianos e as alternativas concretas que os governos bolivarianos têm suscitado (UNASUL, ALBA, Banco do Sul, etc.) que estão sendo práticas que incidem realmente contra o Capitalismo neo-liberal colonialista que ainda tenta nos dominar. É claro que por trás desta resistência e destas iniciativas novas têm de haver uma mística. Esta mística do Bolivarianismo poderia hoje ser uma atualização concreta desta espiritualidade macro-ecumênica contra o liberalismo atual.
Hoje ainda podemos fazer ressoar a voz de Dom Helder Camara que já em 1965, propunha: "Entender e estimular o novo Bolivarismo, no sentido do esforço conjunto para a independência econômica do Continente, em articulação sempre maior com o 3º Mundo e abertura para o mundo inteiro” (10). Vamos aprofundar e continuar esta profecia.
Notas:
(1) Cf. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros Amigos, março 2010, p. 42.
(2) Cf. LEONARDO BOFF, Para quem se aventura ao sabor da Liberdade, Prefácio do livro de MARCELO BARROS, Espiritualidade Socialista para o século XXI, Editora Nhanduti, São Paulo, 2011 (no prelo).
(3) citado por CARLOS FERNÁNDEZ LIRIA e LUIS ALEGRE ZAHONERO, Comprender Venezuela, pensar la democracia, Caracas, 2006, p. 15.
(4) JOSE MARTI, Obras Completas, vol. 8, Nuestra América, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975.
(5) BART JONES, Hugo Chávez, da origem simples ao ideário da revolução permanente, São Paulo, Novo Conceito, 2008, p. 97. (o autor é um jornalista norte-americano que foi a Venezuela para pesquisar e escrever criticamente sobre a vida de Hugo Chávez e não se pronuncia favoravelmente a ele, mas reconhece que descobriu valores dos quais não suspeitava.
(6) BART JONES, Hugo Chávez, da origem simples ao ideário da revolução permanente, São Paulo, Novo Conceito, 2008, p. 97.
(7) Cf. SEDOC, VOL 6 (1973- 1974) PP. 993- 1021, citado por MICHAEL LOWY, A Dimensão Cultural do Capitalismo, in Cadernos Fé e Política, 11 (19940, p. 36.
(8) Cf. GIULIO CIRARDI, El Movimiento Subversivo de Jesús en la Sociedad Capitalista, Madrid, Nueva Utopía, 2002, p. 89 e 93- 94.
(9) DOM HELDER CÂMARA, Circulares Conciliares, Volume I – Tomo III, 68ª Circular, Roma 16/ 17. 11. 1965, Recife, Editora CEPE, Instituto Dom Helder Câmara, 2009, p. 253.
(10) DOM HELDER CÂMARA, Circulares Conciliares, Volume I – Tomo III, 68ª Circular, Roma 16/ 17. 11. 1965, Recife, Editora CEPE, Instituto Dom Helder Camara, 2009, p. 253.
[Fonte: IHU Unisinos].
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