segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

1282- O candidato limpo, ou, "aquele dentre vós que está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


O candidato "limpo" ou 
sobre o perigoso discurso da pureza e outros perigos,

por José Luiz Quadros de Magalhães

          
            Como se não bastasse a aposta no direito penal para tudo resolver e a transformação do STF em um super poder que se apropriou indevidamente da Constituição, ainda assistimos a volta de uma outra assombração: o perigoso discurso da pureza.
            Acredito que posso começar citando a Biblia(1):
            "Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu-se e disse-lhes: aquele dentre vós que está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra."

            O que pode dizer Jesus nesta passagem? Aqueles que apontam o dedo acusando o outro não se vêm no espelho. Pior. Aqueles que apontam o dedo em direção ao outro, acusando-o de corrupção, de impureza, de mentira, não enxergam seus erros, não querem enxergar, fingem não enxergar, e o que pode ser ainda pior: creem firmemente que não têm pecados, que são puros. Estes que creem em sua pureza são os mais perigosos, são os que apedrejam e matam.
            A crença na pureza moral, na pureza racial ou qualquer outra pureza levou milhões, em diversos momentos da história, à morte e à tortura. Não há pior discurso do que o discurso da pureza. Não há pior atitude de uma pessoa do que a de se julgar puro.
            Quando assistimos uma propaganda oficial da Justiça Eleitoral, de uma bela senhora, afirmando que deseja candidatos "limpos", e as pessoas aceitam este discurso com muita tranquilidade, alguma coisa parece mesmo, que está fora de lugar. Entramos em uma estrada que não deveríamos entrar, e estamos indo longe demais nela.
            O pesquisador francês Jacques Sémelin escreveu o livro "Purificar e destruir"[7]. Trata-se de um importante estudo sobre massacres e genocídios. O Autor estuda três passagens trágicas, três genocídios: a "Shoah" judaica na segunda guerra mundial; o conflito e "limpeza" étnica na ex-Iugoslávia; o genocídio da população Tutsi de Ruanda. O livro se refere ainda aos genocídios armênio e cambojano.
            Neste livro, o Autor nos descreve, no decorrer de uma análise minuciosa, os passos dados em direção ao extermínio em massa. Podemos resumi-los nos seguintes:
            a) A política não mais enquanto razão mas como emoção. O espaço político deixa de ser um espaço racional de construção de consensos para ser um competição entre adversários que almejam o reconhecimento do seu melhor argumento;
            b) De adversários a inimigos. A superação da racionalidade dialógica para construção de consensos, superada pela competição de argumentos, tem como etapa seguinte a transformação destes competidores em inimigos. Não se trata mais, nem de busca de consensos racionais, nem de vitória do melhor argumento de competidores que buscam um "bem comum", mas de uma luta entre inimigos: ou está comigo ou está contra mim.
            c) O inimigo  entretanto tem a mesma estatura. Embora inimigos, respeitam-se. Qual o passo seguinte: o inimigo não será mais respeitado, mas rebaixado, inferiorizado. Alguma característica no inimigo impede, definitivamente, qualquer possibilidade de diálogo.
            d) Agora os passos que se seguem visam colocar este "inimigo" político em um esfera não humana. Assim o inimigo será animalizado. Estes passos dados pelo nazismo foram repetidos em outros genocídios e passaram a ser integrantes de "manuais" de propaganda eleitoral. A animalização dos judeus e sua representação com ratos foi a estratégia nazista na década de trinta.
            e) Depois da animalização vem a coisificação. Este é o momento do discurso religioso se infiltrar na política. Com o discurso religioso vem a busca da pureza. Agora não são mais adversários políticos; não apenas inimigos humanos; não mais, nem mesmo uma relação entre o humano o animalizado. O outro é coisificado pelo discurso do bem e do mal. Fulano é do bem, o inimigo é do mal. O discurso da pureza é um passo da catástrofe.
            f) Passo seguinte: disseminar o medo. Este inimigo do mal, coisificado nos ameaça. Ameaça nossa paz; nossa família, nossa propriedade. Estamos contra a parede.
          g) Agora é necessário o fato. Um episódio, em geral forjado (falso), desencadeia a violência. Na Alemanha, o assassinato de um diplomata alemão em Paris por um anarquista "judeu" desencadeia a barbarie. A noite dos cristais.
                h) Por fim o extermínio.
            O que acabo de relatar foram os passos em direção a violência extrema do projeto nazista. O que acabo de relatar pode ser encontrado em campanhas eleitorais em nosso país, hoje, sem que os passos finais sejam dados, mas com uma aproximação irresponsável e perigosa. O que acabo de relatar decorre do discurso na crença em uma pureza que não existe, e é muito bom que jamais exista. Os que se julgam puros (se julgam além da condição humana) são sempre aqueles que apedrejam.

             Conclusão, sempre provisória: Somos seres processuais, singulares, plurais e dinâmicos.           
      
      Uma lembrança: somos seres processuais e complexos, plurais. O que significa isto. Não podemos jamais nos deixar reduzir a um nome coletivo. Lembremos que a nomeação na terceira pessoa: nós x eles, ideia que já desenvolvemos em outros artigos e livros, é o passo para o genocídio, para a violência sem limites. A formula moderna repete-se à exaustão mudando os nomes coletivos: nós os bons x eles os maus; nós os espanhóis x eles os "índios"; nós o fiéis x eles os infiéis; nós os arianos x eles os judeus; nós os tutsis x eles os utus; e assim repetindo.
            Assim como não podemos reduzir um pessoa, ser complexo, em permanente processo de transformação, que é simultaneamente e historicamente uma grande variedade de identificações, a um nome coletivo, não podemos condenar ninguém a repetir, interminavelmente, um momento de sua vida. Não somos um fato, assim como não somos uma religião, uma nacionalidade, um time de futebol, uma profissão ou uma condição social. Ninguém é um "pobre" ou um "rico". Ninguém é só um "cristão" ou um "muçulmano"; ninguém é só um "homem" ou uma "mulher"; ninguém é só um "heterossexual" ou um "gay". Todos somos muitas identificações, muitos sonhos e medos, muitos desejos e crenças ao mesmo tempo. Somo plurais e complexos. A nomeações são simplificações que nos expõe ao pior.
            Assim, como não somos só cristãos, muçulmanos, judeus, homens, mulheres, gays, brasileiros, americanos, africanos, asiáticos, trabalhadores, desempregados, professores, alunos, vermelhos, azuis, liberais, comunistas, socialistas, conservadores, não somos, não podemos ser, de forma nenhuma, reduzidos a um momento, uma ação, ações, erros e acertos. Assim como não somos só isto e tudo isto, não somos também, para sempre honestos ou desonestos, corruptos ou santos, bons ou maus ou tudo isto ao mesmo tempo.
            Temos que ter sempre o direito de mudar, de aprender, de errar e acertar de novo.
            Termino com uma lembrança triste e ridícula: lembram do caso do Juiz que queria que todos no condomínio  em que morava o chamassem de "excelência". Triste redução. Talvez ele fosse juiz com seus filhos e sua mulher e dormisse e acordasse de terno e gravata.
           



[1] Professor da PUC-Minas, UFMG e FDSM. Mestre e Doutor em Direito. www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br
[2] ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
[3] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado - nota sobre aparelhos ideológicos do estado, Biblioteca de Ciências Sociais, editora Graal, 9 edição, Rio de Janeiro, 1985.
[4] BADIOU, Alain. A hipótese comunista, coleção estado de sítio, Editorial Boitempo, São Paulo, 2012.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir - história da violência nas prisões, 20 edição, Editora Vozes, Petrópolis, 1987.
[6] João 8:7.
[7] SEMELIN, Jacques. Purificar e destruir - usos políticos dos massacres e dos genocídios, Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009.

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