Uma sociedade sem "discapacitados"
(sobre o absurdo das olimpíadas e
outros mecanismos ideológicos modernos e as falsas políticas de inclusão em uma
sociedade fundada na exclusão)
José Luiz Quadros de Magalhães[1]
Não,
o título não é uma defesa de qualquer forma de sociedade totalitária,
radicalmente excludente. Não. O título sugere o contrário: uma sociedade onde o
conceito do diverso inferiorizado desapareça. Uma sociedade sem hegemonias. Uma
sociedade onde as pessoas não sejam mais nomeadas por uma parte do que são, mas
sejam reconhecidas pelo seu nome próprio, aquele que represente para o sujeito
toda a sua complexidade de um ser singular, plural, produto de muitos, das
pessoas que convivemos e que nos constroem, junto com cada um de nós. Somos
produtos de muitos e muitas experiências, sonhos, desejos, aprendizados,
crenças, identificações, histórias. Tudo isto nos constitui. Logo, não podemos
ser reduzidos a um nome coletivo que sintetize uma parte de nós. Não somos um
nome de religião ou de uma cor; não somos o nome de uma limitação física ou psíquica;
não somos nem mesmo o nome próprio que outro escolheu para nós, somos tudo isto
junto e muito mais, pois mudamos todo o tempo com o que vivemos e logo, também,
não podemos ser nomeados apenas por um ato, uma passagem ou um período de nossa
vida. Esta compreensão de seres plurais, complexos e processuais pode refundar
a sociedade. Pode fundar uma sociedade sem exclusões coletivas de
simplificações das pessoas. Não, eu não sou discapacitado; não sou negro nem
branco; não sou professor; não sou pai nem filho; não sou magro nem gordo; não
sou criminoso nem santo; sou processo, tudo isto ao mesmo tempo. Por isto somos
nosso nome próprio que renomeamos a cada momento de transformação em nossa
vida.
Não
vamos tratar o tema das pessoas que têm deficiências físicas ou mentais diante
de um determinado paradigma de sociedade, de organização social ou padrão de
normalidade, com a análise de dados ou das políticas públicas que se apresentam
nos estados democráticos e sociais de direito. Estes estados, em nossa América
indo-afro-latina, vem reconhecendo cada vez mais o direito à diferença (como
direito individual e coletivo) e não apenas este, mas também o direito à
diversidade (também como direito individual e coletivo). Em nossas democracias
vemos proliferar políticas públicas pontuais (importantes) para incluir os
considerados diferentes, neste estado historicamente excludente (porque
uniformizador). São muitas as leis e políticas variadas para promover a
inclusão (nesta sociedade padronizadora) das pessoas que não se adequam ou não
estão adequadas, para as quais esta mesma sociedade não foi construída (nem
para estas pessoas e nem por estas pessoas).
O
objetivo desta pequena reflexão que hora apresentamos é tentar entender como as
políticas públicas de inclusão em uma sociedade de exclusão podem não ser
suficientes e por vezes até mesmo não desejáveis. O que queremos demonstrar, ou
no mínimo provocar, é como pode ser incoerente e inútil, ou indesejável,
incluir alguns por meio de adaptações, remendos, cotas e outras políticas
públicas em uma sociedade construída historicamente em um paradigma de
exclusão, e que se sustenta neste paradigma. Em outra palavras: no lugar de
incluir os excluídos por meio de remendos e adaptações neste sociedade fundada
em paradigmas de exclusão (nós x eles) o que precisamos é desconstruir esta
sociedade e construir uma outra que seja fundada por todos de forma não hegemônica
e não uniformizadora. Esta fala é a defesa da ruptura com o paradigma (ou
paradigmas modernos), com a epistemologia (ou epistemologias modernas) para a
construção de uma sociedade pluridiversa do ponto de vista filosófico;
epistemológico; jurídico; e tudo o que pode decorrer desta diversidade, como,
por exemplo, a reconstrução de uma democracia não mais fundada na ideia de
maioria mas no lugar, na ideia de uma democracia que busca a construção
permanente de consensos, onde todos participem da construção do espaço comum, o
que requererá a construção de consensos (em espaços sem hegemonias) entendido
como o dialogo onde todos deverão abrir mão de alguma coisa para que todos
possam ganhar algo, e ainda, onde não existam consensos permanentes, ou, onde
tudo possa ser permanentemente discutido e rediscutido, sem deixar ninguém de
fora.
Vamos
então explicar esta ideia por etapas:
1-Mudanças
e permanências: enxugando o gelo.
Slavoj
Zizek nos explica em seu livro “Sobre la
violencia. Seis reflexiones marginales”[2] a
relação entre violência subjetiva, objetiva e simbólica. A violência subjetiva
é uma quebra de uma aparente normalidade de não violência por um ato de
vontade. Em geral, as políticas de combate às diversas formas de não violência
são direcionadas exclusivamente ao combate a violência subjetiva. Desde o
aumento do aparato de controle (câmeras nas ruas) e repressão (aumento do
efetivo policial) até campanhas de conscientização contra a discriminação
racial, de gênero, ou as adaptações físicas dos prédios e ruas ao "dicapacitado"
e ao idoso.
Entretanto,
as políticas pontuais que atuam sobre estas formas de violência subjetiva não
terão o efeito desejado se não considerarmos e modificarmos as estruturas e os
discursos mudos das violências objetiva e simbólica. Estas formas de violência
são permanentes e desconstroem todo o esforço dispensado nas políticas públicas
pontuais de combate as violências subjetivas.
Um
exemplo que pode deixar claro o que acabo de dizer:
Muitas
escolas para crianças e adolescentes estão criando políticas de combate ao
"bullying", uma palavra nova para descrever a antiga prática moderna
de rejeitar e torturar mentalmente o considerado "diferente"
(diferente do padrão estabelecido pelo poder) chegando muitas vezes a agressão
física. Ora, todo o trabalho de propaganda contra pode ser anulado pelas
praticas, estruturas e simbolismo diário da escola moderna. Vejamos:
A
escola moderna tem a função histórica de padronizar, uniformizar, preparar os
futuros cidadãos de um estado nacional que necessita de pessoas que pensem,
ajam, se comportem como o esperado pelo poder. Afinal, o reconhecimento deste
poder central do estado moderno depende da fabricação de cidadãos que
compartilhem valores, história e sentimentos comuns. Na modernidade, no estado
moderno, não há espaço para o comportamento diverso. A escola se apresenta
portanto como um instrumento fundamental de padronização.
Esta escola que padroniza valores e crenças
(na nação; no estado e na igreja) irá manifestar este seu papel de forma
permanente: os estudantes devem estar uniformizados; devem usar o cabelo de uma
maneira padronizada; devem andar e se sentar de uma forma padrão; devem falar
um idioma padronizado e uniformizado.
Por
fim a violência contra o que não aceita a padronização: se o aluno não estiver
com o uniforme adequado; não estiver com o cabelo adequado e não seguir o
padrão adequado de andar, sentar e falar ele será punido ou excluído da escola.
Será possível que alguma política de combate ao "bullying", de
combate à discriminação ao considerado diferente pode ter algum sucesso nesta
escola, nesta sociedade¿
Como
irá funcionar a cabeça de um criança sujeita a este contexto¿ De um lado a
escola diz, por meio de uma campanha, que ele não pode discriminar o
"diferente", por outro lado a escola lhe mostra permanentemente que
só existe espaço para o uniformizado, o padronizado. No registro mental desta
criança, ou adolescente, a conexão realizada será muito fácil. Aquele que não
se adequa ao padrão (ao seu padrão de normalidade) será por ele punido. É isto
que ele aprende todo o tempo. Não há espaço para o considerado diferente. Logo,
se um colega de colégio lhe parece alto demais ou baixo demais para o padrão;
magro demais ou gordo demais; se sua cor, jeito de falar, de andar, foge do
padrão, a conduta assimilada pela violência permanente da padronização, da
uniformização, levará esta criança à discriminação e exclusão do que para ele é
diferente, do que para ele está fora da ordem.
A
estrutura moderna, essencialmente uniformizadora, anula políticas pontuais que
se diluem em uma estrutura de relações e de símbolos que excluem o considerado
diferente.
Uma
imagem desta violência decorre de uma política de busca de aparente e bastante
equivocada de "inclusão": as paraolimpíadas. Trata-se de uma contradição
essencial. Primeiro aspecto: as Olimpíadas são a comemoração de uma modernidade
fundada no resgate de alguns valores de superioridade da perfeição do homem
grego. O máximo da beleza expressa pelo equilíbrio geométrico das formas do
homem perfeito. A beleza é racional e se expressa no equilíbrio da formas
geométricas. Podemos recordar um médico na Alemanha do século XIX, momento de
desenvolvimentos de teorias eugênicas, que defendia o nudismo pois este
revelava a perfeição e a imperfeição. O nazismo, que veio a seguir, neste
sentido foi muito moderno. A busca da perfeição estabelecida por um padrão
racional geométrico e a vitória da vontade e do corpo perfeito. Se isto é
Grécia antiga, é também muito moderno, na concepção de um mundo de
civilizadores (europeus homens e brancos) e incivilizados (índios, negros,
judeus, muçulmanos, mulheres). O nazismo apenas vestiu o genocídio (já
praticado pelos invasores europeus na América) com uma outra roupagem.
Os
jogos Olímpicos são tudo isto: o homem perfeito; o corpo perfeito; a vitória do
melhor sobre o pior; o nacionalismo narcisista que funda a modernidade
excludente; a comemoração do nós (superiores e civilizados) sobre eles
(incivilizados e inferiores). Em meio a toda esta história, em meio a todo este
simbolismo, da afirmação da nacionalidade (excludente); na comemoração
cuidadosa de cada vitória (excludente); da perfomance perfeita, no corpo
perfeito adequado à perfomance perfeita (mais alto, mais forte, mais rápido), a
hipocrisia moderna cria uma política de inclusão nisto tudo: as paraolimpíadas.
Não é realizada no mesmo momento, trata-se da competição "deles"; não é transmitida pelos mesmos canais de
televisão; não tem o mesmo público e não oferece os mesmo lucros.
Este
exemplo pode demonstrar o absurdo de uma política de inclusão em um mundo (um
paradigma) de exclusão. É mais ou menos assim: as políticas de inclusão dos
excluídos em uma sociedade essencialmente excludente que foi construída por
alguns para estes alguns usufruirem.
O
momento é de ruptura com a modernidade, ruptura com os 500 anos de exclusão
hegemônica europeia. Finamente a modernidade está chegando ao fim. Este é o
momento, esta é a oportunidade de construir uma outra realidade.
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