terça-feira, 18 de dezembro de 2012

1273- Uma sociedade sem discapacitados (sobre as olimpíadas e outras coisas ridículas) - coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


Uma sociedade sem "discapacitados"

(sobre o absurdo das olimpíadas e outros mecanismos ideológicos modernos e as falsas políticas de inclusão em uma sociedade fundada na exclusão)

José Luiz Quadros de Magalhães[1]
           

            Não, o título não é uma defesa de qualquer forma de sociedade totalitária, radicalmente excludente. Não. O título sugere o contrário: uma sociedade onde o conceito do diverso inferiorizado desapareça. Uma sociedade sem hegemonias. Uma sociedade onde as pessoas não sejam mais nomeadas por uma parte do que são, mas sejam reconhecidas pelo seu nome próprio, aquele que represente para o sujeito toda a sua complexidade de um ser singular, plural, produto de muitos, das pessoas que convivemos e que nos constroem, junto com cada um de nós. Somos produtos de muitos e muitas experiências, sonhos, desejos, aprendizados, crenças, identificações, histórias. Tudo isto nos constitui. Logo, não podemos ser reduzidos a um nome coletivo que sintetize uma parte de nós. Não somos um nome de religião ou de uma cor; não somos o nome de uma limitação física ou psíquica; não somos nem mesmo o nome próprio que outro escolheu para nós, somos tudo isto junto e muito mais, pois mudamos todo o tempo com o que vivemos e logo, também, não podemos ser nomeados apenas por um ato, uma passagem ou um período de nossa vida. Esta compreensão de seres plurais, complexos e processuais pode refundar a sociedade. Pode fundar uma sociedade sem exclusões coletivas de simplificações das pessoas. Não, eu não sou discapacitado; não sou negro nem branco; não sou professor; não sou pai nem filho; não sou magro nem gordo; não sou criminoso nem santo; sou processo, tudo isto ao mesmo tempo. Por isto somos nosso nome próprio que renomeamos a cada momento de transformação em nossa vida.
            Não vamos tratar o tema das pessoas que têm deficiências físicas ou mentais diante de um determinado paradigma de sociedade, de organização social ou padrão de normalidade, com a análise de dados ou das políticas públicas que se apresentam nos estados democráticos e sociais de direito. Estes estados, em nossa América indo-afro-latina, vem reconhecendo cada vez mais o direito à diferença (como direito individual e coletivo) e não apenas este, mas também o direito à diversidade (também como direito individual e coletivo). Em nossas democracias vemos proliferar políticas públicas pontuais (importantes) para incluir os considerados diferentes, neste estado historicamente excludente (porque uniformizador). São muitas as leis e políticas variadas para promover a inclusão (nesta sociedade padronizadora) das pessoas que não se adequam ou não estão adequadas, para as quais esta mesma sociedade não foi construída (nem para estas pessoas e nem por estas pessoas).
            O objetivo desta pequena reflexão que hora apresentamos é tentar entender como as políticas públicas de inclusão em uma sociedade de exclusão podem não ser suficientes e por vezes até mesmo não desejáveis. O que queremos demonstrar, ou no mínimo provocar, é como pode ser incoerente e inútil, ou indesejável, incluir alguns por meio de adaptações, remendos, cotas e outras políticas públicas em uma sociedade construída historicamente em um paradigma de exclusão, e que se sustenta neste paradigma. Em outra palavras: no lugar de incluir os excluídos por meio de remendos e adaptações neste sociedade fundada em paradigmas de exclusão (nós x eles) o que precisamos é desconstruir esta sociedade e construir uma outra que seja fundada por todos de forma não hegemônica e não uniformizadora. Esta fala é a defesa da ruptura com o paradigma (ou paradigmas modernos), com a epistemologia (ou epistemologias modernas) para a construção de uma sociedade pluridiversa do ponto de vista filosófico; epistemológico; jurídico; e tudo o que pode decorrer desta diversidade, como, por exemplo, a reconstrução de uma democracia não mais fundada na ideia de maioria mas no lugar, na ideia de uma democracia que busca a construção permanente de consensos, onde todos participem da construção do espaço comum, o que requererá a construção de consensos (em espaços sem hegemonias) entendido como o dialogo onde todos deverão abrir mão de alguma coisa para que todos possam ganhar algo, e ainda, onde não existam consensos permanentes, ou, onde tudo possa ser permanentemente discutido e rediscutido, sem deixar ninguém de fora.
            Vamos então explicar esta ideia por etapas:
            1-Mudanças e permanências: enxugando o gelo.
            Slavoj Zizek nos explica em seu livro “Sobre la violencia. Seis reflexiones marginales”[2] a relação entre violência subjetiva, objetiva e simbólica. A violência subjetiva é uma quebra de uma aparente normalidade de não violência por um ato de vontade. Em geral, as políticas de combate às diversas formas de não violência são direcionadas exclusivamente ao combate a violência subjetiva. Desde o aumento do aparato de controle (câmeras nas ruas) e repressão (aumento do efetivo policial) até campanhas de conscientização contra a discriminação racial, de gênero, ou as adaptações físicas dos prédios e ruas ao "dicapacitado" e ao idoso.
            Entretanto, as políticas pontuais que atuam sobre estas formas de violência subjetiva não terão o efeito desejado se não considerarmos e modificarmos as estruturas e os discursos mudos das violências objetiva e simbólica. Estas formas de violência são permanentes e desconstroem todo o esforço dispensado nas políticas públicas pontuais de combate as violências subjetivas.
            Um exemplo que pode deixar claro o que acabo de dizer:
            Muitas escolas para crianças e adolescentes estão criando políticas de combate ao "bullying", uma palavra nova para descrever a antiga prática moderna de rejeitar e torturar mentalmente o considerado "diferente" (diferente do padrão estabelecido pelo poder) chegando muitas vezes a agressão física. Ora, todo o trabalho de propaganda contra pode ser anulado pelas praticas, estruturas e simbolismo diário da escola moderna. Vejamos:
            A escola moderna tem a função histórica de padronizar, uniformizar, preparar os futuros cidadãos de um estado nacional que necessita de pessoas que pensem, ajam, se comportem como o esperado pelo poder. Afinal, o reconhecimento deste poder central do estado moderno depende da fabricação de cidadãos que compartilhem valores, história e sentimentos comuns. Na modernidade, no estado moderno, não há espaço para o comportamento diverso. A escola se apresenta portanto como um instrumento fundamental de padronização.
             Esta escola que padroniza valores e crenças (na nação; no estado e na igreja) irá manifestar este seu papel de forma permanente: os estudantes devem estar uniformizados; devem usar o cabelo de uma maneira padronizada; devem andar e se sentar de uma forma padrão; devem falar um idioma padronizado e uniformizado.
            Por fim a violência contra o que não aceita a padronização: se o aluno não estiver com o uniforme adequado; não estiver com o cabelo adequado e não seguir o padrão adequado de andar, sentar e falar ele será punido ou excluído da escola. Será possível que alguma política de combate ao "bullying", de combate à discriminação ao considerado diferente pode ter algum sucesso nesta escola, nesta sociedade¿
            Como irá funcionar a cabeça de um criança sujeita a este contexto¿ De um lado a escola diz, por meio de uma campanha, que ele não pode discriminar o "diferente", por outro lado a escola lhe mostra permanentemente que só existe espaço para o uniformizado, o padronizado. No registro mental desta criança, ou adolescente, a conexão realizada será muito fácil. Aquele que não se adequa ao padrão (ao seu padrão de normalidade) será por ele punido. É isto que ele aprende todo o tempo. Não há espaço para o considerado diferente. Logo, se um colega de colégio lhe parece alto demais ou baixo demais para o padrão; magro demais ou gordo demais; se sua cor, jeito de falar, de andar, foge do padrão, a conduta assimilada pela violência permanente da padronização, da uniformização, levará esta criança à discriminação e exclusão do que para ele é diferente, do que para ele está fora da ordem.
            A estrutura moderna, essencialmente uniformizadora, anula políticas pontuais que se diluem em uma estrutura de relações e de símbolos que excluem o considerado diferente.
            Uma imagem desta violência decorre de uma política de busca de aparente e bastante equivocada de "inclusão": as paraolimpíadas. Trata-se de uma contradição essencial. Primeiro aspecto: as Olimpíadas são a comemoração de uma modernidade fundada no resgate de alguns valores de superioridade da perfeição do homem grego. O máximo da beleza expressa pelo equilíbrio geométrico das formas do homem perfeito. A beleza é racional e se expressa no equilíbrio da formas geométricas. Podemos recordar um médico na Alemanha do século XIX, momento de desenvolvimentos de teorias eugênicas, que defendia o nudismo pois este revelava a perfeição e a imperfeição. O nazismo, que veio a seguir, neste sentido foi muito moderno. A busca da perfeição estabelecida por um padrão racional geométrico e a vitória da vontade e do corpo perfeito. Se isto é Grécia antiga, é também muito moderno, na concepção de um mundo de civilizadores (europeus homens e brancos) e incivilizados (índios, negros, judeus, muçulmanos, mulheres). O nazismo apenas vestiu o genocídio (já praticado pelos invasores europeus na América) com uma outra roupagem.
            Os jogos Olímpicos são tudo isto: o homem perfeito; o corpo perfeito; a vitória do melhor sobre o pior; o nacionalismo narcisista que funda a modernidade excludente; a comemoração do nós (superiores e civilizados) sobre eles (incivilizados e inferiores). Em meio a toda esta história, em meio a todo este simbolismo, da afirmação da nacionalidade (excludente); na comemoração cuidadosa de cada vitória (excludente); da perfomance perfeita, no corpo perfeito adequado à perfomance perfeita (mais alto, mais forte, mais rápido), a hipocrisia moderna cria uma política de inclusão nisto tudo: as paraolimpíadas. Não é realizada no mesmo momento, trata-se da competição "deles";   não é transmitida pelos mesmos canais de televisão; não tem o mesmo público e não oferece os mesmo lucros.
            Este exemplo pode demonstrar o absurdo de uma política de inclusão em um mundo (um paradigma) de exclusão. É mais ou menos assim: as políticas de inclusão dos excluídos em uma sociedade essencialmente excludente que foi construída por alguns para estes alguns usufruirem.
            O momento é de ruptura com a modernidade, ruptura com os 500 anos de exclusão hegemônica europeia. Finamente a modernidade está chegando ao fim. Este é o momento, esta é a oportunidade de construir uma outra realidade.



[1] Palestra realizada no Senado da Nação Argentina em novembro de 2012.
[2] ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia. Seis reflexiones marginales, 1 ed., editora Paidós, Buenos Aires, 2009.

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