terça-feira, 25 de outubro de 2011

768- Das guerras do ópio às guerras do petróleo - por Domenico Losurdo

Das guerras do ópio às guerras do petróleo
por Domenico Losurdo

O domínio imperialista na sequência das guerras do ópio. "A morte de
Kadafi é uma viragem histórica", proclamam em coro os dirigentes da
NATO e do Ocidente, sem se incomodarem sequer em guardar distâncias em
relação ao bárbaro assassinato do líder líbio e das mentiras
desavergonhadas que proferiram os chefes dos "rebeldes". Sim,
efectivamente trata-se de uma viragem. Mas para entender o significado
da guerra contra a Líbia no âmbito do colonialismo é preciso partir de
longe...

Quando em 1840 os navios de guerra ingleses surgem diante das costas e
das cidades chinesas, os agressores dispõem de um poder de fogo de
milhares de canhões e podem semear destruição e morte em grande escala
sem temer a artilharia inimiga, cujo alcance é muito reduzido. É o
triunfo da política das canhoneiras: o grande país asiático e sua
civilização milenar são obrigados a render-se e começa o que a
historiografia chinesa denomina acertadamente como "o século das
humilhações", que termina em 1949 com a chegada ao poder do Partido
Comunista e de Mao Zedong.

Nos nossos dias, a chamada Revolution in Military Affairs (RMA) criou
em muitos países do Terceiro Mundo uma situação parecida com a que a
China enfrentou no seu tempo. Durante a guerra contra a Líbia de
Kadafi, a NATO pôde consumar tranquilamente milhares de
bombardeamentos e não só não sofreu baixas como sequer correu o risco
de sofre-las. Neste sentido a força militar da NATO, mais do que um
exército tradicional, parece-se a um pelotão de execução. Assim, a
execução final de Kadafi, mais do que um facto causal ou acidental,
revela o sentido profundo da operação em conjunto.

É algo palpável: a renovada desproporção tecnológica e militar
reaviva as ambições e as tentações colonialistas de um Ocidente que, a
julgar pela exaltada auto-consciência e falsa consciência que continua
a ostentar, nega-se a saldar contas com a sua história. E não se trata
só de aviões, navios de guerra e satélites. Ainda é mais clara a
vantagem com que Washington e seus aliados podem contar em capacidade
de bombardeamento mediático. Também nisto a "intervenção humanitária"
contra a Líbia é um exemplo de manual: a guerra civil (desencadeada,
entre outras coisas, graças ao trabalho prolongado de agentes e
unidades militares ocidentais e no decorrer da qual os chamados
"rebeldes" podiam dispor desde o princípio até de aviões)
apresentou-se como uma matança perpetrada pelo poder contra uma
população civil indefesa. Em contrapartida, os bombardeamentos da NATO
que até o fim assolaram a Sirte assediada, faminta, sem água nem
medicamentos, foram apresentados como operações humanitárias a favor
da população civil da Líbia!

Hoje em dia este trabalho de manipulação, além de contar com os meios
de informação tradicionais de informação e desinformação, vale-se de
uma revolução tecnológica que completa a Revolution in Military
Affairs. Como expliquei em intervenções e artigos anteriores, são
autores e órgãos de imprensa ocidentais próximos ao Departamento de
Estado os que celebram que o arsenal dos EUA se enriqueceu com novos e
formidáveis instrumentos de guerra. São jornais ocidentais e de
comprovada fé ocidental que contam, sem nenhum sentido crítico, que no
decorrer das "guerras internet" a manipulação e a mentira, assim como
a instigação à violência de minorias étnicas e religiosas, também
mediante a manipulação e a mentira, estão na ordem do dia. É o que
está a acontecer na Síria contra um grupo dirigente mais acossado do
que nunca por haver resistido às pressões e intimidações ocidentais e
se ter negado a capitular diante de Israel e a trair a resistência
palestina.

Mas voltemos à primeira guerra do ópio, que termina em 1842 com o
Tratado de Nanquim. É o primeiro dos "tratados desiguais", ou seja,
imposto com as canhoneiras. No ano seguinte chega a vez dos Estados
Unidos. Também envia canhoneiras para arrancar o mesmo resultado que a
Grã-Bretanha e inclusive algo mais. O tratado de Wahghia (nas
proximidades de Macau) de 1843 sanciona o privilégio da
extraterritorialidade para os cidadãos estado-unidenses residentes na
China: mesmo que cometam delitos comuns, subtraem-se à jurisdição
chinesa. O privilégio da extraterritorialidade, evidentemente, não é
recíproco, não vale para os cidadãos chineses residentes nos Estados
Unidos. Uma coisa são os povos colonizados e outra muito diferente a
raça dos senhores. Nos anos e décadas posteriores, o privilégio da
extraterritorialidade amplia-se aos chineses que "dissidem" da
religião e da cultura do seu país e convertem-se ao cristianismo (com
o que teoricamente passam a ser cidadãos honorários da república
norte-americana e do Ocidente em geral).

Também nos nossos dias o duplo critério da legalidade e da jurisdição
é um elementos essencial do colonialismo: os "dissidentes", ou seja,
os que se convertem à religião dos direitos humanos tal como é
proclamada de Washington a Bruxelas, os Quisling potenciais ao serviço
dos agressores, são galardoados com o prémio Nobel e outros prémios
parecidos depois de o Ocidente ter desencadeado uma campanha
desaforada para subtrair os premiados à jurisdição do seu país de
residência, campanha reforçada com embargos e ameaça de embargo e de
"intervenção humanitária".

O duplo critério da legalidade e da jurisdição alcança suas cotas mais
altas com a intervenção do Tribunal Penal Internacional (TPI). Os
cidadãos estado-unidenses e os soldados e mercenários de faixas e
estrelas espalhados por todo o mundo ficam e devem ficar fora da sua
jurisdição. Recentemente a imprensa internacional revelou que os
Estados Unidos estão dispostos a vetar a admissão da Palestina na ONU,
entre outras coisas, para impedir que a Palestina possa denunciar
Israel perante o TPI: seja como for, na prática quando não na teoria,
deve ficar claro para todo o mundo que só os povos colonizados podem
ser processados e condenados. A sequência temporal é em si mesma
eloquente. 1999: apesar de não haver obtido autorização da ONU, a
NATO começa a bombardear a Jugoslávia; pouco depois, sem perda de
tempo, o TPI tratar de incriminar não os agressores e responsáveis da
ruptura da ordem jurídica internacional estabelecida após a II Guerra
Mundial e sim Milosevic. 2011: violentando o mandato da ONU, longe de
se preocupar com o destino dos civis, a NATO recorre a todos os meios
para impor a mudança de regime e ganhar o controle da Líbia. Seguindo
uma pauta já ensaiada, o TPI trata de incriminar Kadafi. O chamado
Tribunal Penal Internacional é uma espécie de apêndice judicial do
pelotão de execução da NATO. Poder-se-ia dizer inclusive que os
magistrados de Haia são como padres que, sem perder tempo a consolar a
vítima, esmeram-se directamente em legitimar e consagrar o verdugo.

Uma última observação. Com a guerra contra a Líbia, perfilou-se numa
nova divisão do trabalho no âmbito do imperialismo. As grandes
potências coloniais tradicionais, como a Inglaterra e a França,
valendo-se do decisivo apoio político e militar de Washington,
centram-se no Médio Oriente e na África, ao passo que os Estados
Unidos deslocam cada vez mais seu dispositivo militar para a Ásia. E
assim voltamos à China. Depois de haver deixado para trás o século de
humilhações que começou com as guerras do ópio, os dirigentes
comunistas sabem que seria insensato e criminoso faltar pela segunda
vez ao encontro com a revolução tecnológica e militar: enquanto
liberta centenas de milhões de chineses da miséria e da fome a que os
havia condenado o colonialismo, o poderoso desenvolvimento económico
do grande país asiático é também uma medida de defesa contra a
agressividade permanente do imperialismo. Aqueles que, inclusive na
"esquerda", se põem a reboque de Washington e Bruxelas na tarefa de
difamação sistemática dos dirigentes chineses demonstram que não se
preocupam nem com a melhoria das condições de vida das massas
populares nem com a causa da paz e da democracia nas relações
internacionais.

http://resistir.info/losurdo/kadafi_23out11.html

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