segunda-feira, 24 de outubro de 2011

767- A nebulosa fascista - Umberto Ecco

A NEBULOSA FASCISTA

Por Umberto Ecco


Pode-se afirmar que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita a controlar um país europeu, e que todos os movimentos semelhantes que estavam por vir encontravam um arquétipo comum no regime de Mussolini. O fascismo italiano foi o primeiro a estabelecer uma liturgia militar, um folclore e mesmo um modo de vestir – que chegou a ser mais influente no exterior que Armani, Benetton ou Versace.
Foi só nos anos 30 que movimentos fascistas surgiram no Reino Unido (com Mosley), na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu vários líderes liberais europeus de que o novo regime estava implementando reformas sociais interessantes, proporcionando uma alternativa brandamente revolucionária à ameaça comunista.
Não obstante isso, a precedência histórica não me parece razão suficiente para explicar por que o termo fascismo se tornou uma espécie de sinédoque, uma denominação pars pro toto de regimes totalitários distintos. Pouco adianta dizer que o fascismo continha, como que em estado quintessencial, todos os elementos das formas posteriores de totalitarismo. Ao contrário: o fascismo não tem qintessência alguma, ele sequer tem uma essência. O fascismo era um totalitarismo difuso.
O fascismo não era ideologia monolítica, e sim uma colagem de diferentes idéias políticas e filosóficas, um vespeiro de contradições. (...) Assim, o termo fascismo tornou-se universalmente aplicável, porque é possível eliminar um ou dois traços sem que ele deixe de ser fascista.
Apesar de sua natureza difusa, creio ser possível esboçar uma lista de traços típicos daquilo que gostaria de chamar de protofascismo ou Fascismo Eterno.
Esses traços não podem ser acomodados dentro de um sistema; muitos deles são contraditórios entre si, além de ocorrerem em outros tipos de despotismo ou fanatismo. Mas basta que um deles ocorra para que se coagule a nebulosa fascista.
1.      O primeiro traço do protofascismo é o culto à tradição. O tradicionalismo é mais antigo do que o fascismo, e era típico do pensamento católico contra-revolucionário após a Revolução Francesa; mas nascera muito antes, no final da era helenística, como reação ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diferentes (todas admitidas indulgentemente no Panteão romano) começaram a sonhar com uma revelação feita na aurora da história humana. Essa revelação permanecera por muito tempo oculta sob o véu de línguas esquecidas; estava contida nos hieróglifos egípcios, nas ruínas celtas, nos pergaminhos de religiões asiáticas ainda desconhecidas.
Essa nova cultura tinha que ser sincrética. Sincretismo não é apenas, como diz o dicionário, “a combinação de diferentes formas de crença ou prática”; uma tal combinação tem que tolerar contradições. Cada uma das mensagens originais contém uma centelha de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, de fato estarão apenas aludindo, alegoricamente, à mesma verdade primeva. Em conseqüência, não pode haver progresso do saber. A verdade já foi pronunciada de uma vez por todas, e só podemos seguir interpretando sua mensagem obscura.
Basta dar uma olhada aos patronos de qualquer movimento fascista para encontrar os grandes pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincréticos e ocultos. (...) Basta checar as estantes que as livrarias americanas reservam para a “new age” para encontrar até mesmo Santo Agostinho, que, pelo que sei, não era fascista. Mas o próprio fato de pôr no mesmo saco Santo Agostinho e Stonehenge já é sintonia de protofascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto fascistas quanto nazistas cultuavam a tecnologia, ao passo que pensadores tradicionalistas normalmente a rejeitam enquanto negação de valores espirituais tradicionais.
Entretanto, apesar de orgulhoso de suas conquistas industriais, o elogio nazista à modernidade era apenas superfície de uma ideologia baseada em sangue e Solo (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era disfarçada de refutação ao modo de vida capitalista, mas se destinava principalmente à rejeição do Espírito de 1789 (e de 1776, é claro). O Iluminismo, na Era da Razão, é visto como o começo da depravação moderna. Nesse sentido, o protofascismo pode ser definido como irracionalista.
3.                  O irracionalismo também depende do culto à ação pela ação. Sendo a ação bela em si mesma, ela deve ser implementada antes de ou sem qualquer reflexão prévia. Assim sendo, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Os intelectuais fascistas oficiais estão ocupados sobretudo em acusar a cultura moderna e a “intelligentsia” liberal pela perda dos valores tradicionais.
4.                  Nenhum sincretista é capaz de suportar a crítica. O espírito crítico faz distinções, e ser capaz de fazê-lo é signo de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica elogia o desacordo como maneira de aprimorar o conhecimento. Para o protofascismo, desacordo é traição.
5.                  Além disso, o desacordo é sinal de diversidade. O protofascismo desenvolve-se e alcança o consenso explorando o medo natural da diferença. O primeiro apelo de qualquer movimento fascista é contra os intrusos. Por isso o protofascismo é racista.
6.                  O protofascismo germina a partir da frustração social ou individual. É por isso que um dos traços mais típicos dos fascismos históricos foi o apelo a uma classe média frustrada, sofrendo sob alguma crise econômica ou humilhação política, assustada com a pressão dos grupos sociais inferiores.
            Em nossos tempos, quando os velhos “proletários” estão se tornando pequenos burgueses (e os lumpen excluem a si mesmos da cena política), o fascismo de amanhã encontrará aí um público adequado.
7.                  Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o protofascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos, o de terem nascido no mesmo país. É essa a origem do nacionalismo. Ademais, os únicos que podem dar identidade a uma nação são seus inimigos. Daí que na raiz da psicologia protofascista esteja a obsessão da conspiração (possivelmente internacional); os seguidores devem se sentir sitiados.
A maneira mais fácil de evocar a imagem de uma conspiração o apelo à xenofobia. Mas a conspiração deve partir de dentro também: os judeus costumam ser o melhor alvo, já que têm a vantagem de estar dentro e fora.
8.                  Os seguidores do movimento devem sentir-se humilhados com a riqueza e a força ostentatória de seus inimigos. (...) Mas é importante que os seguidores estejam convencidos de que podem superar seus inimigos. Desse modo, através de uma contínua mudança de registro retórico, os inimigos são ao mesmo tempo fortes e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas regras porque são visceralmente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.
9.                  Para o protofascismo não há luta pela vida mas vida pela luta. Por isso, o pacifismo é uma transigênica com o inimigo. O pacifismo é um mal porque a vida é uma guerra permanente. Isso ocasiona um complexo de Armagedon. Uma vez que os inimigos devem e podem ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento controlará o mundo. Mas uma tal solução final implica uma era subseqüente de paz, uma Idade de Ouro, o que contradiz com o princípio da guerra permanente. Nenhum movimento fascista foi capaz de resolver este dilema. 
10.              O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, na medida em que estas são fundamentalmente aristocráticas. Ao longo da história, todo elitismo aristocrático ou militarista implicou desprezo pelos mais fracos.
O protofascismo não poderia deixar de advogar um elitismo popular. Todo cidadão está entre as melhores pessoas do mundo, os membros dos partidos são os melhores entre os cidadãos, todo cidadão pode (ou deveria) tornar-se membro do partido. Mas não pode haver patrícios sem plebeus. De fato, o Líder sabe que sua força baseia-se na fraqueza das massas, tão fracas a ponto de precisar de um Líder. Como o grupo é organizado hierarquicamente (de acordo com o modelo militar), cada líder subordinado despreza seus subalternos e cada um destes despreza seus inferiores. Isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11.              Nessa perspectiva, todos são educados para se tornarem Heróis. Em todas as mitologias, Herói é um ser excepcional, mas na ideologia protofascista o heroísmo é a norma. Esse culto ao heroísmo está estreitamente ligado a um culto da morte. Não é por acaso que uma das palavras de ordem dos falangistas era viva la muerte. (...) O herói protofascista deseja a morte anunciada como a melhor recompensa de uma vida heróica.
12.              Como a guerra permanente e o heroísmo são jogos difíceis, o protofascista transfere sua vontade de potência para assuntos sexuais. É esta a origem do machismo (que implica desprezo pelas mulheres e condenação intolerante a hábitos sexuais não convencionais – da castidade ao homossexualismo).
13.              O protofascismo baseia-se num populismo qualitativo. Numa democracia, os cidadãos têm direitos individuais, mas o conjunto dos cidadãos só tem impacto político de um ponto de vista quantitativo (aceitam-se as decisões da maioria).
Para o protofascismo, os indivíduos enquanto tais não têm direitos, o Povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica expressando a Vontade Comum. Como nenhum grupo de seres humanos algum dia seria capaz de ter uma vontade comum, o Líder finge ser seu intérprete.
Tendo perdido seu poder de delegação, os cidadãos não agem, são apenas convocados, pars pro toto, a interpretar o papel de O Povo – que é portanto uma mera ficção teatral. Tara termos um bom exemplo, não precisamos mais recorrer à Piazza Venezia em Roma ou ao Estádio de Nurembergue. O futuro nos reserva um populismo qualitativo via TV ou Internet, no qual a reação emocional de um grupo seleto de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a Voz do Povo.
Por causa de seu populismo qualitativo, o protofascismo tem que estar contra governos parlamentares “podres”. Cada vez que um político põe em questão a legitimidade de um parlamento por não representar mais a Voz do Povo, pode-se sentir o cheiro do protofascismo.
14.              O protofascismo fala a novilíngua. “Novalíngua foi inventada por Orwell, em “1984”, como a linguagem oficial do Ingsoc, ou “Socialismo Inglês”. Mas elementos de protofascismo são comuns a formas diferentes de ditadura. Todos os textos escolares nazistas, ou fascistas, tinham base num léxico empobrecido e numa sintaxe elementar, de modo a limitar o desenvolvimento dos instrumentos do raciocínio complexo e crítico. Mas devemos estar prontos a identificar novas espécies de “novalíngua”, ainda que na forma inocente de um programa popular de auditório.
             Tendo esboçado os possíveis avatares do protofascismo, deixem-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943, disseram-me que, segundo informações do rádio, o fascismo desmoronara e Mussolini estava preso. Minha mãe mandou-me comprar um jornal. Fui à banca mais próxima e vi que os jornais estavam lá, mas que os títulos eram diferentes. Além disso, depois de um rápido exame das manchetes, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um deles às cegas e li uma mensagem na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos.
            Até então eu pensava que só havia um partido político por país – na Itália, o Partido Nazionale Fascista. Eu estava descobrindo que em meu próprio país partidos diferentes podiam existir ao mesmo tempo. E mais: como eu era um garoto brilhante, percebi imediatamente que eles existiam antes, como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, de associação política. Essas palavras – liberdade e ditadura -, eu as lia pela primeira vez em minha vida. Renasci como homem livre ocidental por força das palavras novas.
Temos que nos manter alertas para que o sentido dessas palavras não seja esquecido outra vez. O protofascismo ainda está à nossa volta, às vezes à paisana. Seria mais fácil para nós se aparecesse alguém no cenário mundial dizendo “quero abrir Auschwitz de novo, quero que os camisas-negras desfilem outra vez nas praças italianas”. É pena!
A vida não é tão simples. O protofascismo pode voltar sob o mais inocente dos disfarces. Nosso dever é pô-lo nu e apontar quaisquer novas ocorrências – todos os dias, em todas as partes do mundo. Mais uma vez dou a palavra a Roosevelt: “Arrisco-me a afirmar que, se a democracia americana deixar de existir como uma força viva, procurando dia e noite melhorar a sorte de seu cidadão por meios pacíficos, o fascismo ganhará força em nosso país (4 de novembro de 1938). Liberdade e liberação são uma tarefa infinita.
Que seja esta nossa senha: não esquecer.
(ECO, Umberto. Folha de São Paulo, 14/05/1995, 5-8 e 9)

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