A Ditadura Heterossexual
A luta pela inclusão social de homens e mulheres homossexuais tem gerado grande oposição, o que requer uma análise crítica dos argumentos contrários a esse movimento liberatório. Argumenta-se frequentemente que esse grupo estaria tentando impor um estilo de vida moralmente condenável a todos os brasileiros. Mais do que uma luta legitimamente democrática, homossexuais estariam limitando a liberdade dos heterossexuais, parcela da população agora submetida às demandas inconsequentes de um grupo social particular. Eu acredito que este argumento pode ser classificado como mais um exemplo da grande resistência à democratização das relações sociais, um dado característico da sociedade brasileira desde a sua fundação. Se os ideais democráticos da igualdade e liberdade, fundamentos centrais da nossa ordem constitucional, não são suficientes para justificar a defesa da plena cidadania desse grupo de pessoas, nós precisamos saber que tipo de moralidade está sendo realmente defendida por esses opositores.
Eu penso que a condenação moral da homossexualidade tem dois objetivos principais: manter homossexuais em uma situação de invisibilidade social e preservar a subordinação feminina. Procura-se confinar os membros desse grupo a um estado de completa marginalização pela criação de mecanismos que impedem o tratamento igualitário dos mesmos na esfera pública e na esfera privada. Mas esse interesse espúrio não é defendido abertamente. Para garantir alguma forma de legitimidade, ele precisa ser visto como um dado natural da ordem social. Um fator de gramde importância motiva a defesa dessa posição que viola o conceito de democracia: a suposta superioridade moral da heterossexualidade em relação à homossexualidade. Essa premissa serve de fundamento para o que muitos autores classificam como uma ditadura heterossexual: a construção da heterossexualidade como única forma legítima de expressão da sexualidade humana, razão pela qual ela deve servir como um princípio fundamental da nossa organização social. A ditadura heterossexual classifica as relações entre pessoas de sexos opostos como algo inscrito na ordem natural, pois apenas homens e mulheres heterossexuais podem contribuir para a reprodução da sociedade, o que é visto como um interesse estatal protegido pelas normas jurídicas. Essa possibilidade biológica é tida como evidência do caráter altruísta da heterossexualidade porque o produto das relações sexuais entre homens e mulheres alcança um objetivo que transcende o mero prazer sexual. Procurando construir um argumento moral compatível com valores políticos compartilhados por todos, os opositores da inclusão social de homossexuais desconsideram todas as formas brutais de exploração e violência em torno das relações sexuais heterossexuais.
Mas a ditadura heterossexual não procura apenas manter homossexuais no limbo social, desprovidos de qualquer tipo de proteção jurídica. Como tem sido amplamente demonstrado por inúmeros estudos sociológicos, homossexuais não são vítimas de preconceito apenas porque praticam atos sexuais com pessoas do mesmo sexo. O tratamento discriminatório contra eles também decorre da alegação de que as uniões homoafetivas desestabilizam os papéis sexuais que homens e mulheres ocupam dentro do casamento. Os relacionamentos homossexuais criam uma enorme ansiedade cultural porque abalam os parâmetros a partir dos quais a identidade heterossexual é construída. Um dos elementos centrais dessa forma de identidade social é a clara distinção de papéis entre os sexos, diferenciação que tem como fundamento relações assimétricas de poder. Uma retórica cultural que constroi os lugares sociais de homens e mulheres como um elemento básico da organização social permite a defesa do tratamento desigual das mulheres a partir de ideais democráticos. A ditadura heterossexual reproduz a opressão feminina por meio da circulação da ideia segundo a qual a sociedade só pode funcionar a partir da permanência de papéis sexuais distintos entre homens e mulheres. A perspectiva de relacionamentos matrimonais igualitários, possibilidade vislumbrada nas uniões homossexuais, contraria as expectitivas de que o casamento só pode funcionar se existir uma separação clara de funções entre entre os sexos. Vemos então que as uniões homoafetivas questionam práticas culturais baseadas na divisão de trabalho entre os sexos, um dado social que tradicionalmente confere maiores benefícios aos homens e mais sacrifícios às mulheres.
Observamos então que a condenação social da homossexualidade não procura apenas reproduzir uma ordem social baseada em valores morais tradicionais. Como toda forma de ideologia que pretende manter o poder hegemônico de certos grupos sociais, a ditadura heterossexual busca preservar as bases de uma ordenação social que tem como objetivo a manutenção do poder masculino. O processo de democratização das relações sociais dificulta a reprodução das bases materiais que sustentam certas ideologias responsáveis pela manutenção do poder nas mãos de certos seguimentos. A defesa da moralidade social presente no discurso homofóbico de políticos e religiosos esconde algo muito mais complexo do que a simples condenação da homossexualidade. Esse discurso deve ser interpretado principalmente como uma estratégia que tem como objetivo a preservação de uma ordem social fundada no privilégio masculino e heterossexual. Um objetivo dessa natureza não pode guiar o processo democrático, uma vez que ele está comprometido com a expansão de direitos.
Adilson José Moreira é bacharel em Direito pela UFMG, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Autor do livro: União Homoafetiva. A Construção da Igualdade na Jurisprudência Brasileira.
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