CEBs: nos trilhos da profecia e da justiça.
Gilvander Luís Moreira[1]
No ano dos 50 anos do Concílio Vaticano II, rumo ao 13º Intereclesial das CEBs - Comunidades Eclesiais de Base - no Ceará, em Crato, atual estação central do trem das CEBs, aconteceu de 23 a 26 de janeiro de 2012 mais um Seminário Nacional das CEBs, com o tema: Justiça e Profecia a serviço da vida, e o lema: CEBs, romeiras do reino no campo e na cidade.
Foi uma beleza a convivência fraterna, a reflexão, a visita ao Caldeirão do beato Zé Lourenço e os fachos de luzes acesos para guiar a marcha do trem das CEBs rumo ao 13º Intereclesial de CEBs que acontecerá de 7 a 11 de janeiro de 2014 em Juazeiro do Norte, CE, terra do padre Cícero e do povo resistente como juazeiro e mandacaru.
Do Seminário das CEBs participaram mais de 100 assessores/ras e representantes das CEBs de todos os estados do Brasil. Durante o Seminário, vi e ouvi muitas belezas espirituais e proféticas. Abaixo, farei referências a algumas.
Em 1984, enquanto eu fazia o noviciado dos frades Carmelitas, no Pernambuco, fomos de pau-de-arara, de Camocim de São Félix, PE, ao Juazeiro do Norte, CE, para conviver com o povo devoto do Padre Cícero durante uma semana. Foi um banho de religião popular que mexe nas cordas mais profundas do humano do povo simples. Passaram-se 28 anos e, eis-me, novamente passando por Juazeiro do Norte. A primeira coisa que me chamou a atenção é o quanto a cidade cresceu e está em franco desenvolvimento, “só para uma minoria”, me alertaram. Transito já ficando caótico. Carretas lotadas de automóveis, faculdades, lojas de transnacionais, shopping etc.
Lá na região do Cariri, Dioceses de Crato e Iguatu, além de automovelatria, eu vi motolatria, ou seja, idolatria de motocicletas. Parece que há mais moto circulando do que automóveis. Jumentos e cavalos estão sendo aposentados. Até para tanger o gado no pasto se usa moto. Geralmente duas ou três pessoas em cada moto, às vezes, uma criança prensada entre dois adultos. Nas cidades menores, vi muitos motoqueiros circulando sem capacete. Muitos me disseram que as UTIs dos hospitais de Fortaleza estão ficando lotadas de motoqueiros acidentados. Um jovem me disse: “Uma mãe aposentada, pegou dinheiro emprestado no banco e comprou uma moto. Pagou 400 reais de transportadora para levar a moto até São Paulo. O filho, de 19 anos, 15 dias após receber a moto, na capital de São Paulo, bateu a moto e morreu. A mãe perdeu o filho, ficou com uma dívida de 5 mil reais que será descontada na sua aposentadoria de salário-mínimo durante uns 3 anos. E mais, ficou com sentimento de culpa por ter, segundo ela, contribuído para a morte do filho. Ela queria ajudar o filho a sobreviver na capital, mas ...” Motolatria! Eis uma questão de saúde pública que deve ser abraçada pela Campanha da Fraternidade de 2012.
Na Abertura do Seminário Nacional das CEBs foi reconfortante ver e ouvir o bispo da Diocese do Crato, dom Fernando Panico, em uma alocução de várias páginas, defender com firmeza a grandeza espiritual e profética das CEBs. “Não podemos aceitar que as CEBs sejam reduzidas a um movimento ou a uma pastoral. As CEBs são um jeito de ser igreja que testemunha a luta pela justiça e profecia no campo e na cidade”, afirmou com firmeza dom Fernando.
Na manhã do dia 24, ao refletir sobre Justiça e Profecia no campo, Roberto Malvezzi, o Gogó, com clareza de sol ao meio-dia, fez uma retrospectiva dos problemas e desafios que temos a partir do campo, hoje. “Estamos vivendo uma mudança de época. Compreendemos que o nosso planeta se comporta como um ser vivo, Gaia. A capacidade cientifica nos permite ver o planeta como nunca vimos antes. A terra é dinâmica e não estática, passou por várias etapas, por eras glaciais e atualmente tem os oceanos e atmosfera. Temos que defender os seres vivos e não a vida em abstrato. O aprisionamento da terra é o pecado original brasileiro. Nascemos com as capitanias hereditárias, impostas pelos portugeses. Fomos organizados no tripé: a grande propriedade da terra, as grandes monoculturas e o trabalho escravo. Isso pressupõe ataque aos territórios indígenas, importação de milhões de escravos da África. A CPT tem um carinho especial por padre Cícero, o cearense do século XX (nasceu em 24/03/1844 e morreu em 20/07/1934, aos 90 anos) e por padre Ibiapina (1806-1883). Este nasceu no sertão, o pai foi morto, o irmão preso, foi seminarista, advogado, deputado, delegado, juiz, se ordenou padre, tornou-se missionário, organizador dos pobres - Casas de Caridade, Beatos, Movimentos Sociais – teve as Primeiras Comunidades cristãs como referência. Assim, Ibiapina foi precussor e pioneiro do extenso Projeto de Convivência como Semiárido, em construção há décadas pelo povo pobre das CEBs, das pastorais sociais e por centenas de movimentos populares.”
Exemplo vivo de Convivência com o Semi-árido vimos no Projeto Solari que está sendo implementado pela Cáritas, CEBs e vários outros movimentos populares em cinco comunidades rurais do município de Crato: mandalas, hortas comunitárias, quintais produtivos, rádios comunitárias, energia solar, resgate da cultura camponesa, teatro popular ... Que beleza!
Na tarde do dia 24, ao refletir sobre Justiça e Profecia na cidade, Alba Carvalho, socióloga da UFCE, abordou o desafio de compreender o panorama urbano hoje: a exigência de atualização da questão urbana no Brasil do século XXI. O processo de urbanização aconteceu muito rápido e aprofundou a desigualddade e exclusão nas cidades. Há segregação socioterritorial, “duas cidades”: a) oficial – produzida a partir das imposições do capital fundiário e imobiliário: bairros nobres, shoppings e condomínios de luxo; b) real - imposta e desprotegida; ocupação inadequada. “Vivemos um novo momento de expansão sem limites do sistema do capital, de mercantilização exacerbada, de consumismo sem medidas, nos marcos da chamada “mundialização com dominância financeira, em meio ao furacão de uma crise estrutural do capital”, advertiu Alba.
Ainda no dia 24, diante da crise ética, padre Manfredo Oliveira, refletiu sobre o desafio de articulação de uma nova ética. “O ser humano perdeu a capacidade de agir por si mesmo. A modernidade é firmada por uma trindade: a Ciência, Tecnologia e o Capitalismo. Estamos vivendo uma época de apocalipse ecológico e apocalipse social. Um modelo econômico baseado no lucro é completamente antiético”, disse Manfredo conclamando todos/as para um esforço de tradução das exigências éticas na esfera da vida coletiva. Defendeu, enfim, uma ética da integração universal.
Na manhã do dia 25, padre Marins e Irmã Teolide Maria partilharam conosco um pouco dos 40 anos de trabalho pastoral na Equipe das CEBs “Missão na América Latina e Caribe”. São itinerantes, vão conhecendo as realidades convivendo com as famílias, vivendo os imprevistos, convivendo com os pobres, passando por tudo o que eles passam, compreendendo a mística de cada realidade e cada momento. “Cada pessoa é uma palavra de Deus que não se repete!”
Na parte da tarde do dia 25, Rafael Rodrigues e Irmã Mercedes refletiram conosco sobre Profecia na Bíblia: justiça e profecia a serviço da vida. O que é profecia e ser profeta/isa? O que é justiça e ser justo? Profetas e profetisas, na Bíblia, foram mulheres e homens em um lugar concreto, em um determinado contexto, foram intérpretes da situação socio-política e religiosa do seu tempo; convidam à agir; apresentam um projeto: volta ao modelo tribal, a uma vida de partilha; aparecem como porta-vozes da comunidade.
Após uma belíssima retrospectiva sobre a Profecia na Bíblia, com destaque para Raab (Js 2,1-24), Rafael e Mercedes terminaram alertando: “Vejamos o que está por trás da palavra escrita! Perder a memória é perder a identidade. Não deixemos cair a peteca da profecia.”
Na manhã do dia 26, visitamos o Caldeirão, palco de uma comunidade que resistiu de 1926 a 1936, sob a liderança do beato Zé Lourenço. Tudo em comum, portas abertas aos flagelados da seca e da cerca, orar e trabalhar, fé em Deus e amor ao próximo. Eis alguns dos valores proféticos vivenciados no Caldeirão que chegou a ter uma população de cinco mil pessoas. No Caldeirão, os famintos eram acolhidos, enquanto o governo do Ceará construía campos de concentração para prender os flagelados da seca/cerca. Mas ao despontar-se como um “Novo Canudos”, Caldeirão foi reprimido pelas forças militares, “inclusive com bombardeio aéreo”, muitos denunciam.
Sob as bênçãos de padre Cícero, padre Ibiapina, beato Zé Lourenço e do povo resistente do Cariri, encerramos o Seminário das CEBs. Voltamos para nossas bases com a tarefa de ajudar na caminhada das CEBs e na preparação para o 13º Intereclesial das CEBs, que, como eu disse no início, acontecerá de 7 a 11 de janeiro de 2014, em Juazeiro do Norte, no Ceará. Eis, assim, as CEBs nos trilhos da profecia e da justiça, no campo e na cidade.
Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2012.
Como complemento ao exposto, acima, segue, abaixo, 9 vídeos gravados por Gilvander Moreira e 2 vídeos-documentários assistidos durante o Seminário Nacional das CEBs, em Crato, Ceará, de 23 a 26 de janeiro de 2012.
1) Caldeirão do beato Zé Lourenço - Documentário da TV Assembleia do Ceará - 04/02/2012
2) No Caldeirão, Ceará, Padre Vilecy: memória da luta e da resistência do Caldeirão - 26/01/2012
3) Caldeirão de Zé Lourenço: nova Canudos? Pe. Anastácio, Nininha e Júlio - 26/01/2012
4) Projeto Solari - Cáritas da Diocese de Crato, no Ceará - 04/02/2012
5) Roberto Malvezzi fala sobre Justiça a partir da terra em Seminário Nac das CEBs - 24/01/2012
6) Roberto Malvezzi reflete no Seminário Nac das CEBs rumo ao 13o Intereclesial - 24/01/2012
7) Dom Fernando Panico fala sobre a Importância das CEBs - Rumo ao 13o Intereclesial - 24/01/2012
8) Entrevista com Dom João Costa, bispo de Iguatu, CE - Igreja povo de Deus - 22/01/2012
9) Noite cultural no Seminário Nac das CEBs rumo ao 13o Intereclesial - Crato, CE - 25/01/2012
10) Roberto Malvezzi canta no Seminário Nac das CEBs rumo ao 13o Intereclesial - 24/01/2012
11) Rumo ao 13o Intereclesial de CEBs Crato, CE Música Romeiro de verdade vive na fraternidade 24 01
[1] Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte – e no Seminário da Arquidiocese de Mariana, MG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis - facebook: gilvander.moreira
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