quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

1072- LIVROS - A maravilhosa revolução haitiana - Emir Sader

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A maravilhosa revolução haitiana

Por Emir Sader.
“Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica de época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.”
“Em agosto de 1791, passados dois anos da Revolução Francesa e dos seus reflexos em São Domingos, os escravos se revoltaram. Em uma luta que se estendeu por 12 anos, eles derrotaram, por sua vez, os brancos locais e os soldados da monarquia francesa. Debelaram também uma invasão espanhola, uma expedição britânica com algo em torno de 60 mil homens e uma expedição francesa de semelhantes dimensões comandada pelo cunhado de Bonaparte. A derrota da expedição de Bonaparte, em 1803, resultou no estabelecimento do Estado negro do Haiti, que permanece até o dia de hoje.”
“Essa foi a única revolta de escravos bem sucedida da História…”
Nem bem chegou por aqui, Cristóvão Colombo louvou rapidamente a Deus e saiu a procurar ouro na ilha de São Salvador. Os nativos, pacíficos e amistosos, lhe indicaram o Haiti, lugar rico do metal amarelo. Os espanhóis tomaram indígenas para sua proteção, introduziram o cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o estupro, os cães de guarda , doenças desconhecidas e a fome forjada (pela destruição dos cultivos para matar os nativos de fome). “Esses e outros atributos das civilizações desenvolvidas reduziram a população nativa de estimadamente meio milhão, ou talvez um milhão, para sessenta mil em quinze anos.”
“Os negros” – dizia um relato de 1789 – “eram injustos, cruéis, bárbaros, semi-humanos, traiçoeiros, pérfidos, ladrões, beberrões, arrogantes, preguiçosos, sujos sem-vergonhas, furiosamente ciumentos e covardes.” Essa visão servia para justificar o tratamento dado aos negros pelos colonizadores.
Porém foram esses negros que lideraram a revolução haitiana de independência contra os franceses. O que eles fizeram foi simplesmente aplicar ao Haiti o que os franceses faziam no seu país. Mas caiu sobre eles a maior das violências – da França, da Espanha e da Inglaterra. Revelando como a liberdade, a igualdade e a fraternidade não valiam para os povos não europeus. A própria escravidão nunca tinha sido incluída nos ideais da revolução francesa. Ela se referia aos franceses, aos servos da gleba. O eurocentrismo que se instalava não olhava para além dos brancos, não incluía a suas vítimas, aquelas sobre quem recaia a exploração e a opressão que tornava possível que os europeus pudessem ser “livres”.
Depois de finalmente derrotados militarmente, os haitianos pagaram caro o preço da sua audácia. Foram vítimas privilegiadas dos colonizadores, espoliados, oprimidos, invadidos, humilhados. Estabeleceram-se dívidas milionárias, pendentes até hoje, com as quais o Haiti pagaria os danos causados aos colonizadores.
Em 1913, um novo capítulo da opressão se abateu sobre o Haiti: alegando a necessidade de saldar as dívidas e reestabelecer a ordem, fuzileiros navais norte-americanos invadiram o país, o povo resistiu e a invasão foi frustrada. Porém, décadas mais tarde, depois de consolidar seu controle sobre a economia haitiana, os EUA colocaram no poder a dinastia Duvalier – primeiro François, o Papa Doc, depois seu filho, Jean-Claude, o Baby Doc, que governaram mediante uma ditadura de quase 30 anos – 1957 a 1986 – consolidando o Haiti como o país mais pobre do continente.
Quando finalmente uma rebelião popular derrubou o regime de Duvalier, depois de alguns anos de instabilidade, o padre Bertrand Aristide, líder popular, ligado à teologia da libertação, foi eleito presidente em 1990. Tinha as melhores condições para conduzir o Haiti para um regime democrático. No entanto, no ano seguinte, foi derrubado por um golpe militar de oficiais ligados ao velho regime duvalierista.
Aristide se refugiou nos EUA e voltou ao país conduzido pelas tropas norte-americanas, para completar seu mandato, em 1994. Em 1996 conseguiu eleger um político vinculado a ele como presidente e voltou a esse cargo em 2001.
Mas o Aristide que retornou dos EUA já era diferente. Colocou em prática políticas neoliberais, usou a repressão contra movimentos populares, o país foi invadido pelo tráfico de drogas e por bandas violentas. Os EUA e a França se aproveitaram da desordem instalada no país e da incapacidade do governo para se impôr (Aristide havia terminado com as FFAA, alegando seu caráter duvalieristas, sem colocar no lugar outras forças militares), para invadir o país e depôr Aristide.
Diante dessa situação, esses dois países apelaram a que forças militares latino-americanas os substituíssem na ocupação do Haiti. Sob a direção do Brasil, tropas de vários países do continente – Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai, a que se somaram tropas de países de outros continentes – passaram a compôr a Missão da ONU no Haiti desde o golpe militar.
Não bastasse tudo isso, o Haiti ainda sofreu um terrível terremoto há dois anos, cujo epicentro era no centro de Porto Príncipe. O resultado desse conjunto de fatores é catastrófico. Devastado em termos naturais, com suas terras sem condições de serem utilizadas pela sua deterioração ambiental, com parte importante da sua população no exílio – principalmente nos EUA e no Canadá -, com o Estado destruído, com países que chegam para dilapidar ainda mais o que resta de empresas estatais, com um Fundo de recursos arrecadados sob a presidência inepta do Príncipe Charles e de Bill Clinton – o Haiti continua vivendo na desesperança.
Um dos livros mais lindos que eu li é Os jacobinos negros, de C.L.R. James, que conta uma das mais extraordinárias epopeias vividas pelos povos latino-americanos – a revolução haitiana.

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas-feiras.




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