terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

1092- DEMOCRACIA - Ditadura na Europa - Enio Squeff - As recessões compulsórias na Europa e o que o mundo não perde por esperar

Colunistas| 11/02/2012 | Copyleft

DEBATE ABERTO

As recessões compulsórias de Europa e o que o mundo não perde por esperar

Parece haver mais que uma ilusão na crise européia: a maior delas, que não chega a transparecer claramente na arte, mas muito menos no noticiário da grande imprensa – é a idéia que tudo irá correr como se as populações dos países em crise aceitarão as imposições recessivas do capital financeiro.

O retorno das pressões sobre a Grécia – o salário mínimo terá uma redução de 20%, serão demitidos 15% dos funcionários públicos e já está decidido, entre outros,que os aposentados receberão menos – lembra, em sua singularidade, uma situação que Walter Benjamin relatava a propósito do poeta francês Charles Baudelaire, num ensaio que fez sobre Paris. Dizia o filósofo alemão, citando o próprio poeta, que a situação lhe era tão adversa, que quando o chamavam nas ruas da Paris do século XIX, ele tratava de não se voltar bruscamente. Suas roupas estavam de tal modo esgarçadas , devido ao uso constante de quem não tinha outra vestimenta, que uma calça, ou uma camisa, ainda que limpas, podiam se rasgar em qualquer altura de seu corpo.

As notícias de que as crianças gregas estão desmaiando de fome nas escolas, talvez repitam, a seu modo, o problema das roupas de Baudelaire: a ser verdade que a fome esteja abatendo os gregos, a começar pelas crianças, muitas devem se guardar de só se mexerem em última necessidade; seu frágil organismo bem pode desabar se agirem como crianças; ou seja, se correrem ou se mexerem muito, como é de sua natureza infantil.

Certamente aos financistas internacionais não ocorrem esses antecedentes famélico-poéticos. São homens e mulheres durões, que têm uma fé inabaláveis nos ditames que eles mesmos inventaram. Para não dizer que não ostentam um mínimo de sensibilidade poética, talvez algum deles assaque, numa paráfrase a Fernando Pessoa, que pagar dívidas – mesmo que não contraídas pela população –“ é preciso”; e que, para a povo, comer “não é preciso”. Quem sabe, inclusive, a algum deles, mais atilados sobre a história, sobrevenha a sentença de significativa memória : se os gregos ( e brevemente os portugueses, os irlandeses, os espanhóis...) não têm pão para comer – que comam brioches.

Deve-se reconhecer que há um certo mau gosto em ironias do tipo, mas o diktat do mundo financeiro é tão impositivo que se fica a cogitar que talvez a história tenha realmente acabado, como imaginava o professor americano neoliberal, Francis Fukuyama. Fala-se da Europa revolucionária que projetou para o mundo, não apenas as transformações que, afinal, foram transferidas para a América, o Brasil inclusive – mas daquilo que ficou em nosso imaginário e que nasceu das rupturas sociais européias. Nenhum brasileiro medianamente culto desconhece a imagem quase arquetípica da pintura de Eugêne Delaroix – “A Liberdade Conduzindo o Povo” e que à falta de qualquer outra, parece resumir um dos momentos mais dramáticos da Europa revolucionária, aquela que se seguiu à primeira onda da Revolução Francesa, mas que logo se espalharia durante praticamente todo o século XIX, até o século XX, como uma espécie de ameaça persistente.


Apenas para lembrar o óbvio: nunca pareceu à nobreza européia que a simples queda de uma prisão, como a da Bastilha, pudesse desencadear um terremoto, que logo se espalharia não apenas pelo continente – mas pelo mundo todo. Ninguém nega que o Napoleão pintado por David – a apontar para o algum lugar em Marengo – era apenas um gesto. Dizem que Napoleão em pessoa, ao se ver retratado, numa primeira versão, desse modo, mas com uma espada na mão, teria invectivado o pintor para que alterasse a obra: generais modernos, disse, não comandavam seus homens com uma espada em punho. Valiam-se antes de manobras meticulosamente planejadas no âmbito dos gabinetes, máxime, das barracas dos acampamentos de campanha– jamais com um sabre ou uma espada na mão.

Napoleão tinha plena consciência do que queria. Como uma espécie de campeão redivivo de seu país, ele sabia que a sua missão histórica era de impor os produtos franceses à Europa continental, a despeito e ostensivamente, contra a burguesia inglesa que um século antes tinha iniciado a sua revolução industrial. Como dizia o historiador russo Eugene Tarlé, a Revolução Francesa constituiu bem mais do que os quadros clássicos de David ensaiavam impor: foi um movimento de massas que se seguiu à ordem da revolução – mas que não transparecia nas lutas pela hegemonia de duas nações devidamente comandadas, já à época, por suas respectivas burguesias. Tudo, afinal, seria historicamente explicável; o que nunca ficou muito claro, foi o ímpeto de violência com que as massas atenderam aos apelos das possíveis revoluções. Houve contramarchas, é certo.

Beethoven - republicano de primeira hora – ao se decepcionar com Napoleão, que se fez coroar imperador, poucos anos depois do regicídio na França - dizia desdenhosamente, que os austríacos jamais fariam qualquer revolução. Enquanto tivesse cerveja e salsicha, eles assistiriam impassíveis outros povos marcharem contra seus governantes. Estava enganado: o Império Austro-Húngaro também se engolfaria em sangue nas lutas emancipacionistas que traziam em si, as motivações econômicas que nem o teatro, nem as óperas deixavam entrever de forma clara.

É o que ensaia estar acontecendo na Europa.

Parece haver mais que uma ilusão na crise européia: a maior delas, que não chega a transparecer claramente na arte, mas muito menos no noticiário da grande imprensa – é a idéia que tudo irá correr como se as populações dos países em crise, por terem votado à esquerda ou à direita, aceitarão as imposições recessivas inventadas pelo capital financeiro.

Parece haver uma amnésia cuidadosamente engendrada de que a Europa protagonizou os maiores conflitos mundiais, mercê dos movimentos de massa que se manifestaram ao longo, não apenas do século XIX. Afinal, as duas guerras mundiais – e que foram sobretudo européias – nunca enganaram que se fizeram na esteira das agitações sociais.

Esperar, em suma, de que as crianças gregas apenas se cuidem de não se movimentarem como se precavia Baudelaire – para não rasgar as suas roupas esgarçadas – talvez seja verdadeiro em relação a elas, crianças.

Mas se a fome que sobrevém nos lares gregos ( e portugueses, e irlandeses, e espanhóis ...) não for vista pelos pais como o pior que possa lhes acontecer, parece uma ilusão não esperar por quaisquer resistências sociais. Se essa resistência vai tomar a forma inconcebível (pelo sistema) de se fazerem protestos, no começo, e enfrentamentos de ruas, depois, tais quais as revoluções dos países árabes, não parece apenas uma questão de tempo. É quase uma evidência compulsória para qualquer observador.

Uma coisa é um pai brasileiro ver seu filho a seguir o ramerrão da tradição endêmica da fome de que ele próprio foi vítima. Outra, completa e perigosamente diferente, é pensar que quem tinha o que comer ainda ontem, vai ficar pacientemente conformado a esperar, até que o balanço das grandes corporações financeiras do mundo conclua “Agora vocês podem comer”.

Na época em que escreveu seu ensaio sobre Baudelaire, o filósofo alemão Walter Benjamin, judeu e marxista, tinha o pressentimento de que o seu país marchava para o inferno. Era apenas um pressentimento, pois ele trabalhava normalmente em seus escritos que, bem ou mal, circulavam pelo círculo restrito de intelectuais de seu país e da França onde viveu certa época. Um dia, porém, teve de se decidir que só lhe restava a fuga.. E já no momento seguinte, diante da possibilidade de, na fronteira com da França, com a Espanha, ser entregue à Gestapo, viu-se na contingência quase inescapável de se suicidar com morfina ( há quem avente de que tenha desferido uma bala na cabeça). Ou era a morte rápida, pelo suicídio, ou a agonia abjeta dos campos de concentração. Ou seja, a história não só não tinha acabado, como estava recomeçando.

Os financistas do mundo talvez se iludam de que a história não anda. Infelizmente, porém, não parece que não percam por esperar.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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