segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

1106- MORADIA - Luta pela moradia - Coluna da professora Tatiana Ribeiro de Souza

LUTA PELA MORADIA

Tatiana Ribeiro de Souza

Acabo de ler quatro artigos que fazem parte da matéria “Luta pela moradia”, da Revista Le Monde Diplomatique[1], entitulados: Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil; Dandara e a luta por habitação em Belo Horizonte; A barbárie nossa de cada dia; e A estética da crueldade[2]. Gostaria de dialogar com esses artigos e compartilhar algumas reflexões.
Em entrevista veiculada no artigo “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”, a urbanista Raquel Rolnik faz a seguinte afirmação:
“Um dos maiores êxitos do governo Lula é justamente a inserção no consumo de setores que antes estavam marginalizados. As pessoas conseguem comprar carro, TV de LCD, viajar, entrar no mercado. Esse modelo de inclusão por ampliação de consumo, que é uma pauta cara ao movimento sindical e por isso é muito forte no Partido dos Trabalhadores e no governo, tem limites”
Na sequência, a entrevistada fala de um fenômeno que se vem observando internacionalmente, desde as décadas de 1980 e 1990, a transformação da “moradia como um direito para a moradia como uma mercadoria, um objeto de consumo a ser produzido e adquirido no mercado.”
Ao ler sobre os “êxitos do governo Lula” lembrei de uma discussão recorrente nas aulas de Ciência Política e Teoria do Estado que ministro no Centro Universitário Newton Paiva: ainda existe diferença entre esquerda e direita? Já nos primeiros encontros faço questão de perguntar aos alunos quem se considera de direita e quem se considera de esquerda, e não me surpreendo mais pelo fato de que eles em geral nem sabem fazer a distinção entre uma coisa e outra e nunca se posicionam (com raríssimas exceções). Como a trajetória dos pensamentos da direita e da esquerda fazem parte do conteúdo da disciplina, aproveito esse momento para traçar uma distinção clara entre os traços econômicos e morais que caracterizam uma tradição ideológica e outra.
Os últimos governos brasileiros tem contribuído sobremaneira para minhas ilustrações sobre o tema, pois os dados relativos aos investimentos sociais nos governos PSDB e PT deixam bem claro o que é um governo de direita e um governo de esquerda. O discurso moral conservador, em contraposição a um discurso mais liberal e includente, pode ser explorado desde as campanhas eleitorais até as práticas nas políticas públicas. O fato é que a oposição entre direita e esquerda está mais viva do que nunca.
Agora vem o problema, suscitado por Raquel Rolnik: até que ponto as políticas sociais de caráter esquerdista tem reproduzido as mazelas do modelo econômico liberal? Será que as políticas sociais implementadas pelo governo federal no Brasil não estão reforçando o modelo econômico responsável por toda a desigualdade que se diz combater com tais políticas?
Ao contrário do que vem fazendo o governo federal brasileiro, o governo (mais à esquerda) Hugo Chaves vem investindo na construção de uma nova subjetividade, na construção de novos valores para a sociedade venezuelana. É claro que isso representa mais resistência dos setores econômicos que vem se beneficiando do modelo econômico global vigente. Enfrentar as mudanças sociais de modo tão festivo, como vimos fazendo no Brasil “do Lula”, causa em mim sérias desconfianças que teremos que pagar um alto preço no final da festa. Não se trata aqui de compararmos Lula ao Chaves, nem mesmo de comparar o Brasil com a Venezuela. Menos ainda de exaltar o governo venezuelano. Trata-se simplesmente de desconfiar que o bom momento econômico que o Brasil vem atravessando seja apenas o nosso New Deal, e que isso acabe com uma crise econômica na mesma proporção que os estadunidenses começaram a passar 75 anos depois das medidas milagrosas (no melhor estilo PAC) do Presidente Roosevelt.
Não me espanta que as camadas mais pobres estejam se deliciando com a possibilidade de comprarem automóveis e viajarem de avião, mas me preocupa que isso seja encarado como sinal de desenvolvimento e progresso enquanto assistimos estupefatos os efeitos naturais e sociais dessa economia de consumo que se consolidou no Século XX. Se esse modelo arrastou a Europa e os EUA para a crise que agora enfrentam, por que estamos comemorando tanto?
Em outra matéria da série “Luta por Moradia”, o caso Dandara ganha centralidade, expondo o maior conflito social urbano de que se tem conhecimento hoje, no Estado de Minas Gerais. Trata-se da ocupação de parte de um terreno de 40 hectares, de propriedade da Construtora Modelo, na Zona Norte de Belo Horizonte, desocupado há mais de 40 anos e com uma dívida de IPTU que ultrapassa o montante de R$2 milhões. A despeito de se tratar de movimento social organizado, com a implementação de um modelo urbano e ambientalmente sustentável para o assentamento, com apoio de uma equipe interdisciplinar da UFMG e da PUC-Minas, para garantir condições dignas de moradia e organização social dos moradores, a Prefeitura de Belo Horizonte, protagonizada pelo Prefeito Márcio Lacerda (PSB) vem resistindo bravamente à regularização fundiária da ocupação Dandara.
No final da matéria, que tem por título “Dandara e a luta por habitação em Belo Horizonte”, há o relato da posição mantida pelo prefeito de BH, expressa em oficina pública realizada na Regional de Venda Nova, onde Lacerda teria declarado aos representantes da Dandara que a Prefeitura não pode tolerar “invasões” dessa natureza, pois incentivaria novos casos de invasão. É justamente nesse ponto que eu gostaria de me deter: se os proprietário de imóveis abandonados em BH estão em dívida com o poder público, não seria de interesse público que novas ocupações (e não invasões) fossem feitas? Por que o Prefeito está preocupado em preservar os interesses do proprietário em mora, enquanto poderia aproveitar essa situação para garantir o direito à moradia a mais de 1000 famílias e ainda, de quebra, desestimular a inadimplência com o poder público? Por que o proprietário devedor, que é o único descumpridor do Direito no caso, parece vítima aos olhos do Prefeito?
Outra coisa intrigante no caso Dandara é que o Prefeito é afiliado ao Partido Socialista Brasileiro, mas exerce uma gestão empresarial capitalista no Município de Belo Horizonte. Gostaria, sinceramente, de saber o que o Prefeito Márcio Lacerda entende por devedor, o que entende por socialismo, filiação partidária, função social da propriedade e administração pública.




[1] Edição de fevereiro de 2012 (Ano 5/ Número 55)
[2] “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil” (por Luís Brasilino); “Dandara e a luta por habitação em Belo Horizonte” (por Felipe Magalhães e Douglas Resende); “A barbárie nossa de cada dia” (por Ângela Aparecida da Silva e Cosme Vitor); e “A estética da crueldade” (por Rafael Moreira Serra da Silva).

Um comentário:

  1. Lucas Botelho Carneiro22 de fevereiro de 2012 às 14:07

    Excelente o blog, tanto o Prof.José Luiz quanto os colunista são ótimos! Privilégio o meu ter um blog como este aberto a todos, com assuntos tão importantes.
    Como comecei a ler faz pouco tempo, vi apenas essa sua coluna professora mas achei muuuito boa! Espero muitas outras.

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