A dor da seca e das cercas continua no Nordeste.
Gilvander Luís
Moreira[1]
Início de junho de 2012, no sertão da Bahia, depois de
tantas promessas com o projeto da transposição do Rio São Francisco. Uma
criança de nove anos, com uma irmãzinha menor no colo, carrega um balde de água
na cabeça, servida por um caminhão pipa. A mãe foi para São Paulo para trabalhar
de doméstica e envia, mensalmente, o pouco que ganha para a família. Eis uma cena que nos leva às lágrimas. Mais uma
vez a seca está campeando no semi-árido brasileiro. Quem tem coração chora ao
ver e sentir as agruras dos pobres e animais sem água. Estudos do Instituto de
Atividades Espaciais – IAE -, de São José dos Campos, SP, prevê, através do
“Prognóstico do Tempo a Longo Prazo”, que a cada 26 anos ocorre uma grande seca
em todo o semi-árido brasileiro. Grave é que esta seca instalada agora promete
durar todo o ano de 2012 e também por todo o ano de 2013. Mais grave é o alerta
que nos faz o engenheiro Manoel Bomfim Ribeiro – com a autoridade de uma vida
dedicada à causa dos pobres do semi-árido, ao Projeto de Convivência com o
semiárido -, no artigo “A seca no estado da Bahia”. Diz ele:
“O Semi-Árido dos quatro estados Ceará,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco soma uma área total de 327.000 km² e
o da Bahia sozinho tem 320.000 km², praticamente igual à área dos quatro estados.
Desde o final do século XIX aqueles estados começaram a luta pela geração de
água construindo açudes de maneira obstinada. A seca de 1877/80 foi tirana
ceifando 500.000 vidas, 10% da população nordestina que era na época de
5.000.000 de habitantes. Uma grande calamidade. Morriam de fome, sede, tifo,
bexiga e outras endemias. Os flagelados andrajosos e famintos perambulavam
pelos caminhos à deriva, sem destino, arrastando filhos pelo braço. Houve até
casos de antropofagia. A cidade de Fortaleza superlotou de famintos, foi
organizada a turma de enterros. A cidade estava nauseabunda, sepultavam 400 a
500 pessoas diariamente. Num só dia foram enterrados 1.012 mortos em vala comum.
Uma grande tragédia registrada na história do Nordeste e jamais esquecida.
Juntar água foi, então, o grande
objetivo de todos os nordestinos uma vez que estes reservatórios se tornaram
essenciais para melhorar os terríveis efeitos da seca. O açude é um núcleo de
vida, de atividade social e econômica, sobretudo nos períodos calamitosos de
secas.
A nucleação em torno da açudagem foi de
tal importância que os nossos técnicos se tornaram os maiores barrageiros do
mundo e ao longo do século XX construíram a maior rede de açudes do planeta
Terra, mais de 70.000 açudes armazenando 40 bilhões de m³ de água, volume igual
a 16 baias da Guanabara. O sertão virou mar.
O Semiárido baiano, entretanto, ao longo
do século XX, ficou totalmente esquecido pelos governantes apesar da sua mais
baixa pluviosidade. Não participou da epopéia nordestina gerando e acumulando
água para os períodos inditosos. Não tivemos um programa específico e
determinado de construir uma estrutura hídrica... O Semi-Árido baiano se
constitui, portanto, na maior solidão hidrogeográfica do Brasil... O Semiárido
setentrional está anos-luz à frente do baiano, preparado para a grande seca e
nós aqui no estado da Bahia ainda estamos de calças curtas.”
Nesse árduo contexto, participamos na cidade de Januária,
norte de Minas, de 25 a 27 de maio de 2012, do III Encontro popular da bacia do rio São Francisco, promovido pela Articulação Popular São Francisco Vivo.[2] Participaram
dezenas de representantes das lutas de defesa do Rio, do povo e de todo seu
bioma, lutas que estão em curso na Bacia Sanfranciscana - de Minas, Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Foi um encontro de resistência. Foi
reconfortante (re)encontrar tantas pessoas militantes da mesma causa: a do rio
São Francisco, do seu povo e de toda a biodiversidade existente na grande bacia
do Velho Chico.
Que beleza perceber que os povos tradicionais –
quilombolas, indígenas, geraizeiros, vazanteiros, comunidades de fundo e
fechos de pasto, pescadores, ribeirinhos – estão
firmes resistindo aos projetos capitalistas. Resistem para continuarem
existindo!
Visitamos algumas aldeias do povo indígena Xacriabá,
no município de São João das Missões, MG. Foi emocionante constatar como os
nossos parentes indígenas têm uma mística/espiritualidade que os move a conviver
com a terra, as águas e toda a biodiversidade com uma postura de veneração pelo
divino que está em todos e em tudo. Os Xacriabás estão lutando pela conquista
de seu território integral. Cerca de 50 mil hectares de seu território ainda
continuam grilados.
Visitamos também três comunidades do Rio dos Cochos
que, com o apoio da Cáritas, há mais de dez anos, estão revitalizando o Rio dos
Cochos. Com os frutos do cerrado fazem suco, doces, remédios, renda familiar.
Fizeram barraginhas com lombadas para contenção das enxurradas e aproveitamento
das águas pluviais. Replantaram matas ciliares, tendo, inclusive, matas
ciliares doadas para a universidade fazer pesquisa. Recuperaram nascentes e as
preservam. Cobram políticas públicas de saneamento e de preservação ambiental
em toda a região.
Na análise da conjuntura ficou claro que a
Transposição das águas do rio São Francisco vai de mal a pior. Obras paradas
com rachaduras, um grande número de famílias expulsas de suas casas, povo
desiludido. As promessas estão se revelando falsas, conforme denunciou com
autoridade o bispo dom Luiz Flávio Cappio. “Várias
construtoras largaram a Transposição e foram fazer obras da COPA. Exigem
aditivos contratuais acima de 40%. Quem acreditou na propaganda da transposição
está desiludido. Cadê os empregos? Demissões estão acontecendo aos montes”,
denuncia padre Sebastião Gonçalves, da Diocese de Floresta, PE.
Todos os que estão participando do Projeto de
Convivência com o semi-árido dizem: “O
problema do Nordeste não é a seca, mas são as cercas do latifúndio, do hidro e
agronegócio, da indústria da seca que se compõe de obras faraônicas tal como a
Transposição do Velho Chico, a Transnordestina, as monoculturas, grandes
projetos para exportação.”
Após muitas trocas de experiências, palestras, debates
e planejar a continuidade da luta, o Encontro encerrou-se nas águas do Velho
Chico, onde os indígenas cantaram e todos, em duplas, se “batizaram” nas águas
que clamam por revitalização. Assim, revigorados na esperança e conspirando uma
causa justa e sublime voltaram para suas bases, os de Alagoas e de Sergipe
tendo que pegar 36 horas de viagem.
Voltaram para suas bases com o compromisso com a luta
reafirmado. Lá nas bases, sobretudo os que estão no Nordeste, sabem que a cena
acima apresentada, uma criança de nove anos com a lata de água na cabeça e uma
irmãzinha no colo tem sido as cenas do dia-a-dia, com a falta de chuva e de
políticas públicas que priorizem, de fato, a convivência com o semiárido.
Eis, abaixo, o Documento produzido pelo III Encontro
Popular da Bacia do São Francisco: a Carta de Januária, documento profético e
inspirador.
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CARTA DE JANUÁRIA
III ENCONTRO POPULAR DA BACIA DO SÃO FRANCISCO
“Por uma revitalização popular.”
III ENCONTRO POPULAR DA BACIA DO SÃO FRANCISCO
“Por uma revitalização popular.”
Nós,
indígenas, quilombolas, comunidades de fundo e fechos de pasto, pescadores,
ribeirinhos, geraizeiros, comunicadores populares, pastorais, ONGs,
representantes do povo do rio São Francisco, reunidos entre os dias 25 a 27 de
maio de 2012, em Januária/MG, constatamos a triste e repetitiva situação de
nosso rio e dos povos que lhe pertencem, mas também as resistências, lutas e
esperanças populares.
A
revitalização do governo não anda. Os investimentos em saneamento existem, mas
é impossível ver resultados concretos. Não há controle sobre as obras, não há
transparência. Em termos de ação governamental é a única iniciativa da
propalada revitalização em toda a bacia.
A
degradação continua em nível crescente. O despejo incessante de
agrotóxicos e esgotos sem tratamento; o desmatamento e o assoreamento do leito
dos afluentes e do próprio rio; o uso abusivo de suas águas por empresas ligadas
ao ramo do agro e hidronegócio e da mineração; os grandes projetos de irrigação
para monoculturas de exportação e a exploração do setor elétrico só vêm a agravar
o imenso passivo socioambiental que historicamente se acumulou na bacia.
Há
uma resistência heróica de várias comunidades para “resistir e existir” em seu
lugar, mas continua a expropriação de terras e territórios dos povos que
tradicionalmente ocupam a bacia, contra os quais persistem as ações violentas
de despejo, perseguição, criminalização e assassinatos, bem como o descaso e a
lentidão nas ações de demarcação e titulação dos territórios. Por outro lado,
têm-se a cessão ilegal desses territórios para domínio de grandes empresas e
implantação de atividades que exploram os bens naturais de forma criminosa e
ainda impedem o acesso à terra, às águas e aos peixes do rio. Todas são
práticas que ameaçam a existência físico-cultural de muitas das comunidades do
São Francisco.
Persistem
a ausência de políticas públicas apropriadas ao semiárido e ao cerrado
brasileiros e a recorrência de fenômenos naturais como a seca, onde o governo
ainda se vale de ações emergenciais e assistencialistas que acabam por sustentar
os interesses político-econômicos da “indústria da seca”, sobretudo em anos
eleitorais como esse. No mesmo sentido, a opção equivocada pelas grandes obras
hídricas, como a transposição de águas do rio São Francisco, cujo atual estado
das obras e superfaturamento dos contratos só vêm a comprovar as denúncias
realizadas por tantos que se contrapuseram ao projeto. O que temos de positivo
no semi-árido são as iniciativas da sociedade civil na lógica da convivência
com o semi-árido.
O
São Francisco é um rio dos cerrados mineiro e baiano, responsáveis pela quase
totalidade de suas águas. A expansão do agronegócio, das hidrelétricas e das
mineradoras nestas regiões tem acelerado violentamente a depredação dos bens
naturais e culturais destes cerrados. Passa da hora a aprovação das Propostas
de Emenda à Constituição - PECs - que tornam patrimônios nacionais o cerrado e
outros biomas e criam fundos públicos para sua preservação. Não há saída sem
restringir e submeter a ação do capital sobre a natureza e os povos.
Repudiamos
as políticas de intervenção no Rio São Francisco previstas em planos atuais e
futuros do governo federal, como a proposta de implementação de usinas
nucleares - a exemplo da usina no município de Itacuruba, PE -, a implementação
de parques eólicos por meios que agridem as comunidades e o ambiente, a
expansão das atividades de mineração e dos grandes projetos de irrigação; a
proposta de emenda constitucional 215 e a ameaça de revogação do Decreto
4887/03, objeto de manobras da bancada ruralista e que ameaçam a efetivação dos
direitos territoriais das comunidades tradicionais, significando imenso
retrocesso democrático no nosso país.
Vimos
aqui mesmo em Januária e na vizinha São João das Missões experiências
significativas de revitalização popular do Rio dos Cochos e do território
reconquistado pelo Xacriabás, respectivamente. Nossos povos têm iniciativas que
precisam ser consideradas e valorizadas na revitalização do rio São Francisco.
Basta que aqueles que governam tenham olhos para ver. São estas experiências as
estrelas que guiam nossos passos. Continuamos a fluir com as águas do nosso
rio. Parar, jamais. Nosso destino é o oceano da justiça, da solidariedade e da
paz.
São Francisco Vivo, terra, água, rio e povo!
Januária,
27 de maio de 2012.
Colônia
de Pescadores Z-026, Pescadores do Baixio de Irecê, Rizicultores de Sergipe,
Comissão Pastoral da Terra BA/MG/Nacional,Conselho Indigenista Missionário
PE/MG, Conselho Pastoral dos Pescadores Nacional/ BA, Associação de Fundo e
Fecho de Pasto, Povo Pankará, Povo Xacriabá, IRPAA (Instituto Regional da
Pequena Agropecuária Apropriada), AATR (Associação de Advogados de
Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia), CETA/BA, SINDSERV/SE, SINTAGRO/BA,
STR Porteirinha, STR B. Jesus da Lapa,EFA Guimarães Rosa, Cáritas Diocesana de
Januária, Movimento pelas Serras e Águas de Minas, Diocese de Floresta, Diocese
de Bom Jesus da Lapa, Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Salitre, Associação
Quilombola de Brejo dos Crioulos (MG), Associação Quilombola de Brejões dos
Negros (SE), Associação Quilombola de Barra do Parateca (BA), CADAESF, Assent.
17 de abril,MPA/SE, Escola de Fé e Política, ACOMA.
Eis, abaixo, algumas
entrevistas, em vídeo, que eu, Gilvander Moreira, gravei durante o III Encontro
Popular da bacia do São Francisco.
1)
Transposição do rio São Francisco: bem disse dom Cappio. Padre
Sebastião e Ruben. 02/06/2012.
2)
Povo indígena Xacriabás, no Norte de Minas, luta pelo seu território.
Juvenal Seixas. 31/05/2012.
3)
Quilombo Brejo dos Crioulos, no Norte de Minas: José Carlos (o Veio) e
Alvimar (CPT). 31/05/2012.
4)
Soraya Fanini no III Encontro da Articulação Popular da bacia do rio
São Francisco. 30/05/2012.
5)
Roberto Malvezzi (Gogó): Por uma revitalização popular do rio São
Francisco. 30/05/2012.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 04 de junho de 2012.
[1]
Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor do Evangelho de
Lucas e Atos dos Apóstolos, no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em
Belo Horizonte – e no Seminário da Arquidiocese de Mariana, MG; assessor da
CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
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