Do nascimento do
constitucionalismo moderno proclamando liberdade e igualdade e outros mitos
modernos.
JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
O constitucionalismo moderno se afirmou com as revoluções burguesas na
Inglaterra em 1688; nos Estados Unidos, em 1776, e na França em 1789. Podemos,
entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de
1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, mas nela já
estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo como
limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa
humana, o que a tornou uma referencia histórica para alguns pesquisadores.
Podemos dizer que, desde o
inicio do processo de afirmação do constitucionalismo moderno no século XVIII
até os dias de hoje, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu
tipo, liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas
estes dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado,
distribuição de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas
que declaram e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da
pessoa humana. O que muda de Constituição para Constituição é a forma de
tratamento constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de
limitação ao poder do Estado, a forma como o poder do Estado está organizado e
os meios existentes de participação popular e de respeito à liberdade de
imprensa, de consciência e de expressão, o respeito às minorias e a diversidade
cultural e étnica (regime e sistema político), a forma de distribuição de
competência e de organização do território do Estado (forma de Estado), a
relação entre os poderes do Estado (sistema de governo) e os direitos
fundamentais declarados e garantidos pela Constituição (tipo de Estado).
Outro aspecto do
constitucionalismo moderno diz respeito à sua essência. O nascimento desse
constitucionalismo coincide com o nascimento do Estado liberal e a adoção do
modelo econômico liberal. Portanto, a essência desse constitucionalismo está na
construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre
dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada.
A idéia de liberdade no
Estado liberal, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e
ao afastamento do Estado do que se convencionou chamar de esfera privada
protegendo as decisões individuais. Em outras palavras, há liberdade à medida
que não há a intervenção do Estado na esfera privada e, em segundo lugar,
podemos dizer, segundo o paradigma liberal, que os homens eram livres, pois
eram proprietários (na primeira fase do liberalismo, as mulheres não tinham
direitos e a democracia majoritária não existia). Esses dois aspectos são
fundamentais para a compreensão do conceito de liberdade no paradigma liberal
do século XVII e XVIII.
Embora este paradigma
tenha sido superado na história do século XX, acompanhado pelas teorias que
surgem de novas práticas e sustentam novas compreensões, ele retorna como
farsa, como mecanismo de encobrimento do real, no final do século XX.
Por este motivo é
importante ressaltar a necessidade da
inserção histórica desse pensamento para a sua adequada compreensão e do papel
que este desempenha em cada momento histórico: revolução ou farsa. Em primeiro
lugar, é importante lembrar contra qual Estado se insurgem os liberais. Não se
pode dizer que os liberais revolucionários são contrários ao Estado social ou
socialista ou qualquer outra formulação histórica posterior, justamente pelo
fato de que o Estado que conheciam e contra o qual lutavam era o Estado
absoluto. Portanto, a primeira constatação importante é de que os liberais se
insurgem contra o Estado absoluto. Quando esses pensadores visualizam o Estado
como o inimigo da liberdade, têm como referencia o Estado absoluto, que
eliminou diversas liberdades para grande parte da população, e transformou os
posteriormente chamados direitos individuais em direitos de poucos privilegiados.
Essa compreensão histórica da teoria liberal nos ajuda a entender por que os
liberais compreendem os direitos individuais como direitos negativos,
construídos contra o Estado, conquistados em face do Estado.
A partir do constitucionalismo
liberal, o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento,
uma vez que o Estado não censura sua palavra; o cidadão é livre para se
locomover, uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é
livre, uma vez que o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma
vez que o Estado não regula ou exerce atividade econômica. Lembramos que o
Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto.
Um aspecto fundamental
para a correta compreensão do constitucionalismo liberal e de qualquer idéia ou
teoria é a necessidade de inserção desta no contexto histórico em que ela
surge. O pesquisador, o leitor interessado em compreender o pensamento de
determinado autor deve conhecer o autor, sua historia e para qual realidade
esse autor escreveu ou escreve. Isso evitará muitos erros de compreensão comuns
e recorrentes na análise e compreensão de textos históricos. Não se pode
compreender o pensamento de Hobbes sem conhecer sua história e o momento
histórico que inspirou seu pensamento. Isso vale para qualquer outro pensador,
e as grandes incompreensões das teorias decorrem justamente da falta de
conhecimento do contexto histórico no qual elas foram pensadas e construídas, e
mais, por quem essas teorias foram pensadas. Não se pode, por exemplo, ler
Nietsche (um dos pensadores mais incompreendidos) sem conhecer sua história; o
risco que se corre é compreendê-lo pelo avesso ou, na verdade, não
compreendê-lo. Portanto, para entender a defesa que os liberais fazem da
propriedade privada, a confusão que fazem entre economia livre e omissão
estatal, desregulamentação e propriedade privada dos meios de produção, é
importante compreender o contexto histórico e a ideia de Estado que esses
liberais tinham no momento da construção de suas teorias. Ao estudarmos a
história da realidade econômica (e não do pensamento econômico) desde então,
perceberemos, com clareza, que esses fatores só trouxeram opressão e exclusão,
portanto, falta de liberdade para grande parte dos cidadãos.
Outro obstáculo que ocorre
com freqüência são as traduções. Sejam as traduções publicadas, sejam as
traduções ou leituras diretas feitas pelo pesquisador e estudioso leitor.
Devemos lembrar que os idiomas são sistemas complexos que relacionam
significados a significantes, assim como as, muitas vezes, estreitas regras
linguísticas, condicionam compreensões, vinculam palavras, limitam o pensar. As
palavras e seus significados são condicionados por contextos históricos os mais
distintos, assim como a gramática. Não se lê uma obra complexa com o dicionário
na mão. É necessário recorrer à discussão e a busca histórica do contexto em
que a obra foi escrita, traduzida, e de que forma as palavras eram
compreendidas e limitadas ou ampliadas nos seus significados no momento em que
foi escrita. Trata-se de um trabalho de inserção cultural. Daí nos parecer
muito estranho quando alguns autores que se dizem interpretes oficiais de
determinados pensadores, se qualificarem como donos da verdade dos autores
estudados. Por mais que se estude um determinado autor, o máximo que teremos é
a nossa compreensão, construída coletivamente ou não, daquele autor. E isto se
mostra com mais intensidade quanto maior a complexidade da obra, da idéia, da
linguagem, da distancia no tempo, da distância cultural e das barreiras
idiomáticas.
Assim podemos pensar que a
defesa do Estado forte defendido por Hobbes ocorre em uma realidade de caos
decorrente da fragmentação de poder não coordenada, que trouxe constantes
guerras e destruição. O Estado absoluto surge com a necessidade de se colocar
ordem no caos, surge da necessidade de segurança, e daí decorre a construção de
uma única vontade estatal encarnada no soberano e no conceito antigo de
soberania una, indivisível, imprescritível e inalienável, já estudado no
volume 2 do nosso Curso de Direito Constitucional. Do poder permanentemente
negociado, da existência de diversos espaços quase soberanos, da negociação de
fidelidade dos exércitos dos senhores feudais, característica final do
feudalismo, surge o Estado absoluto, com um único foco de poder, uma única
vontade soberana e um único exército. Isso é garantia de segurança. O Estado
moderno, na sua versão absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante
os impérios e a igreja (soberania externa) e perante os senhores feudais
(nobres) que fragmentavam o poder do Estado, cada um possuindo seu próprio
exército e poder quase soberano sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre
os impérios e a Igreja, de um lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado,
são a base para o surgimento do Estado moderno, que é um Estado territorial,
nacional, centralizador de todos os poderes e soberano em duas dimensões, a
externa e a interna.[1]
O Estado nacional é uma
construção histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e
desse único exército. A criação dos Estados nacionais, como Espanha e França, é
um exercício de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma
comum, uma religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse
Estado que os faça sentirem-se parte da vontade nacional, parte do Estado
nacional. O sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental
para sua formação e permanência. Este é um passo fundamental para que o poder
do Estado encarnado no Rei fosse reconhecido pelos súditos: criar valores e
ressaltar aspectos comuns de identificação dos súditos entre si para que estes
reconheçam o poder do soberano.
Entretanto esse Estado
absoluto elimina cada vez mais a individualidade (o liberalismo não inventa o
indivíduo, reinventa-o de uma maneira egoísta, monolítica e hoje,
propositalmente descontextualizada), eliminando a vontade pessoal e o espaço de
seu exercício. É nesse contexto que o pensamento liberal surge e as revoluções
liberais ocorrem. Elas representam um resgate de uma liberdade perdida (ou de
algo que certamente se perdeu mas não se sabe mais o que foi) há muito tempo,
uma vez que a opressão do Estado absoluto tornou insuportável a vida pessoal. O
Estado liberal não inventa o individuo, ele sistematiza e ideologiza o
individualismo, mas, acima de tudo, o Estado liberal representa a vitória da
burguesia, e logo a vitória dos interesses desta classe. Quanto ao povo, resta
o discurso de liberdade, em que muitos ainda acreditam hoje. Resta a liberdade
liberal do sonho da riqueza por meio do trabalho ou, melhor dizendo, da “livre
iniciativa” e da “livre concorrência”.
Não nasce neste momento uma sociedade que corresponda ao discurso sempre
interpretado. Não surge neste momento uma sociedade de homens livres e iguais.
A liberdade e igualdade reinventadas permanecem para poucos e ainda hoje é
assim na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem. Não só
para poucos era a liberdade e igualdade mas para poucos também era a
possibilidade de dizer o que era essa liberdade e igualdade e ainda hoje é
assim na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem.
Entretanto alguns contam uma outra história, encoberta, de um Estado liberal
que implantou liberdade e igualdade sobre uma realidade histórica de um Estado
que não foi democrático e de uma sociedade que não foi livre e não foi igual.[2]
A essência do
constitucionalismo liberal no seu momento inicial é a segurança nas relações
jurídicas e a proteção do individuo (proprietário, homem e branco) contra o
Estado. Não há uma conexão entre constitucionalismo e democracia naquele
momento. Se a democracia deve ser hoje elemento essencial para o
constitucionalismo, no inicio do constitucionalismo liberal ela parecia
incompatível com a essência deste. Como combinar a proteção da vontade de um
com a democracia majoritária em que prevalece a vontade da maioria. A junção
entre democracia e constitucionalismo liberal ocorre na segunda fase do Estado
liberal, que estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo I[3].
A idéia de que a vontade da maioria não pode tudo e que um governante não pode
alegar o apoio da maioria para fazer o que bem entender decorre dessa junção
importante para a teoria constitucional. O absolutismo da maioria é tão
perverso quanto o absolutismo de um grupo, e a confusão entre opinião pública e
democracia é sempre muito perigosa. Logo, a democracia constitucional liberal,
construída no século XIX, entende que a vontade da maioria não pode ignorar os
direitos da minoria e os direitos de um só. Os limites à vontade da maioria são
impostos pelo núcleo duro, intocável dos direitos fundamentais, protegidos pela
Constituição, e que na época do liberalismo eram reduzidos apenas aos direitos
individuais, efetivamente de poucos. Isto à época é bastante complicado pois a
maioria pode desde que não afete os interesses e direitos históricos de um
elite proprietária, o que tornava os limites para a democracia representativa
liberal muito largos.
Desde então, o
constitucionalismo evoluiu, transformou-se, regrediu nos últimos tempos e hoje
se encontra em grave crise, quando o discurso econômico, de forma ideológica e
autoritária, submete o Direito a seus pseudo-imperativos matemáticos.
Entretanto podemos dizer que em todas as constituições modernas (sejam liberais,
sociais ou socialistas) vamos encontrar sempre os dois tipos de conteúdos
comuns em suas normas: organização e funcionamento do Estado com a sua
conseqüente limitação do poder e a declaração e proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
A evolução do
constitucionalismo moderno coincide com a evolução do Estado moderno, o que foi
estudado no capítulo 1 e 2 do tomo I do livro Direito Constitucional e revisto
com outro enfoque no capítulo 2 do tomo II. Portanto não cabe aqui retomarmos
este tema e remetemos o leitor à leitura daqueles capítulos.
As constituições modernas
que representam o início desse longo processo de construção do
constitucionalismo são a da Inglaterra (a partir simbolicamente da Magna Carta
de 1215 e em constante processo de construção até os dias de hoje), a
Constituição norte-americana de 1787 e as constituições francesas do período
revolucionário de 1791, 1793, 1795, 1799 e 1804. No Brasil, a nossa primeira
Constituição de 1824 (no Império) e a de 1891 (primeira republicana) são
liberais e representam a primeira e segunda fase do constitucionalismo. A fase
de transição para o constitucionalismo liberal no Brasil ocorre na década de
1920 e a nossa primeira Constituição social é a de 1934. A Constituição de 1937
representa a influência do social-fascismo no Brasil. Essa Constituição traz os
elementos característicos dessa ideologia (ultranacionalista, antiliberal,
anti-socialista, anticomunista, antidemocrática, anti-operariado e
autoritária). Em 1946, temos o retorno do Estado social e democrático
(democracia representativa) com nova interrupção autoritária em 1964.
A ditadura do empresariado
e dos generais, apoiada pelo governo dos Estados Unidos sustentado por
interesses econômicos variados, tentou se legitimar com as constituições
autoritárias (e desrespeitadas pelo próprio governo ditatorial) de 1967 e 1969.
Essas constituições têm caráter autoritário e permanecem até a Constituição de
1988, típica Constituição social que introduz, entretanto, o novo conceito de
Estado Social e Democrático de Direito, interpretado de maneira diversa pelos
autores contemporâneos.
Em toda a história do
constitucionalismo moderno, entretanto, a democracia foi uma exceção apenas
tolerada pela elite econômica. A historia da América Latina nos mostrou no
século XX como, quando o povo de forma organizada, e seguindo os mecanismos
legais e constitucionais que estabelecem as regras do jogo da democracia
representativa majoritária, afetam interesses econômicos desta elite,
imediatamente ocorre uma ruptura com a ordem constitucional, numa aliança
comum, entre empresários e militares, no decorrer das décadas de 60. 70 e 80.
No final da década de
noventa e nesta primeira década do século XXI a história se mostrou diferente.
A aliança entre a elite empresarial e os militares de alta patente contra a
democracia popular falhou pela primeira vez na Venezuela, o que abriu espaço
para mudanças populares e democrático-participativas na Bolívia e Equador com
repercussão em diversos outros Estados latino-americanos. Mudanças lentas e
negociadas com muita dificuldade também ocorrem na Argentina, Chile,
Uruguai, Peru, Colombia e Brasil, mudanças estas sempre combatidas pela mídia concentrada
controlada pelas corporações capitalistas. A mudança social tem sido difícil, especialmente
diante de mecanismos ideológicos cada vez mais sofisticados e concentrados,
insistentes em criar um mundo artificial, propositalmente encobridor do real. A
Busca do real, as revelações das reais intenções, dos reais jogos de poder,
torna-se uma tarefa revolucionaria, pois somente quando as pessoas forem
capazes e tiverem a coragem de buscar o real, podemos efetivamente promover uma
mudança permanente, em direção a um outro lugar, a um outro mundo possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário