quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

183- Artigo - Violência e Modernidade

VIOLÊNCIA E MODERNIDADE
José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza

Introdução

Uma das causas centrais da violência na contemporaneidade é a negação da diferença. O não reconhecimento do outro como pessoa.
Neste texto procuramos demonstrar como a modernidade, inventada a partir do final do século XV, necessita padronizar, igualar os menos diferentes e excluir os mais diferentes (o outro), no processo de construção da identidade nacional, e como esta rejeição, rebaixamento ou encobrimento do outro está na base de várias formas de violência típicas da modernidade. Mais, queremos demonstrar que este processo narcisista de construção da nacionalidade sobre o outro, sobre a diferenciação e exclusão do outro é um dispositivo mental da cultura moderna ocidental que pode ser acionado diante de situações complexas em momentos distintos da história.
A identidade nacional é fundamental para a centralização do poder e para a construção das instituições modernas, que nos acompanham até hoje, e sem as quais o capitalismo teria sido impossível: o poder central; os exércitos nacionais; a moeda nacional; os bancos nacionais; o direito nacional uniformizador, especialmente o direito de família, de sucessões e de propriedade; a polícia nacional; as policias secretas e a burocracia estatal; as escolas uniformizadas e uniformizadoras.
Não podemos nos esquecer que para a construção destas instituições e para a criação deste nacional, nada teria sido possível sem a religião nacional. A religião é um mecanismo essencial para a uniformização de comportamentos e logo de valores, uma vez que pode estar presente em todos os espaços da vida, públicos e privados. Daí que, mesmo que formalmente, muitos estados tenham se tornado laicos no decorrer deste processo moderno, esta separação da religião é muito mais formal do que efetiva. A religião continua importante nos debates políticos e nas justificativas de decisões no plano das relações internacionais. O discurso religioso tem sido recorrente para justificar ou amparar as intervenções norte-americanas em diversos países.
A construção da identidade nacional (fundamental para o Estado nacional e logo para o capitalismo em todas as suas formas) necessita do estranhamento do outro, da exclusão do não nacional, da exclusão e do rebaixamento do diferente. A construção da nacionalidade é um projeto narcisista.
Este dispositivo de estranhamento, de exclusão, de autoafirmação pelo rebaixamento do outro está presente em todos nós, frutos da modernidade agora naturalizada: existe um “Eichman” dentro de cada um nós. Este “Eichman” está desperto em alguns, controlado ou acorrentado em outros, ou simplesmente adormecido, podendo ser despertado em momentos históricos que reúnam as condições para tal. Os genocídios podem ser explicados pelo despertar deste “Eichman”, deste dispositivo interno moderno de afirmação perante o rebaixamento do outro. Alemanha; Iugoslávia e Ruanda são exemplos de genocídios do século XX onde o dispositivo foi acionado por condições históricas complexas.

1. A modernidade: origens
1.1- 1492: invasão e expulsão
O ano de 1492 é de uma significação especial para o projeto moderno. Neste ano dois fatos marcam o inicio do processo de construção do mundo moderno como conhecemos hoje.
a) A invasão:
Em 1492 Cristovão Colombo começa a invasão das Américas (nome dado pelos invasores europeus). Chegando nestas terras começa o processo de extermínio, assassínio, torturas e o encobrimento que durou mais de quinhentos anos até os movimentos indígenas assumirem o poder na Bolívia e Equador, e se organizarem e conquistarem espaços e direitos em outros estados americanos.
A invasão do mundo, começando pela América é fundamental para o desenvolvimento do sistema econômico criado pelos europeus: o capitalismo. Não haveria capitalismo e o poderoso processo de industrialização da Europa (incluindo EUA mais tarde) sem as riquezas retiradas das Américas (ouro, cobre, prata, madeira, e diversas outras riquezas do subsolo, solo e supersolo) inicialmente, assim como as riquezas da Ásia e África. Não haveria tampouco capitalismo sem as instituições modernas: a moeda nacional; os bancos nacionais; os exércitos nacionais (para invadir e retirar as riquezas dos outros); a polícia nacional (especialmente para vigiar os excluídos do sistema sócio-econômico) ; o direito nacional e a religião nacional como mecanismos de uniformização de valores construindo uma massa uniformizada que se transformará nos consumidores de hoje (que devem gostar das mesmas coisas, especialmente automóveis e marcas de diversos produtos). Neste momento de globalização moderna, o mercado global cria padrões de comportamentos e valores uniformizados em escala global, fundamental para o sucesso do capitalismo global. Parcelas cada vez maiores de pessoas são convertidas ao credo do capitalismo: o individualismo e a competição permanente. Os cidadãos são convertidos em consumidores. Uma nova subjetividade é construída em escala global onde comportamentos e valores construídos por complexas relações sociais e econômicas históricas são naturalizados. O ser humano consumidor, egoísta e competitivo, construído pela modernidade, é naturalizado . Em outras palavras isto significa que as pessoas passam a perceber estes valores e comportamentos como se fossem naturais no ser humano, o que obviamente não é.
A completa invasão e dominação militar do mundo será seguida da dominação ideológica. A Europa será mostrada para todos como o padrão a ser seguido. É posta como a civilização mais avançada, mais bem acabada e, portanto, destino natural de todos que conseguirem evoluir. Está naturalização histórica coloca outras civilizações, com compreensões e graus de complexidade distintas, não como sendo diferentes mas como sendo menos evoluídas. Este mecanismo de compreensão histórica influencia na construção de um conhecimento europeu com pretensão de validade universal. O que é europeu é universal, a única filosofia existente é a européia. As outras formas de compreensão do mundo e da vida são conhecimentos primitivos não complexos ou com menor grau de complexidade, sem posição científica . Uma outra filosofia não existe sendo admitida, no máximo, por alguns, uma filosofia étnica (uma etno-filosofia) em outros espaços do globo que não a Europa. Esta perspectiva é reproduzida até hoje nas Universidades e Faculdades de Filosofia do centro e das periferias do Planeta.
b) A expulsão:
O segundo fato de grande simbolismo para compreender o processo moderno foi a queda de Granada em 1492, a ultima grande cidade em domínio muçulmano. Trata-se da expulsão do outro, do mais diferente abrindo agora espaço para a construção do Estado moderno com a uniformização dos menos diferentes e a invenção do europeu e dos nacionais europeus. Seguindo a expulsão dos muçulmanos vem a expulsão dos judeus e a construção de Estados modernos uniformizados pela imposição de um única religião que ditava comportamentos ao lado do Estado para todas as esferas da vida de todas as pessoas. Quem não se enquadrasse estava fora. Foi criada a polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição.
A uniformização de comportamento e valores é essencial para o reconhecimento de um poder agora unificado e centralizado.

1.2- O Estado moderno na Europa

A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge neste momento e de outro lado se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.
Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.
Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria, identificações comuns com a qual ele claramente se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras identificações, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes. A unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado a dissolução. Como exemplo recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.
Portanto a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.
Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.
A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana européia.
O Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde, no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.
Ao contrário do que alguns apressadamente anunciam, o Estado nacional não acabou, ainda existirá por algum tempo, assim como a modernidade está aí, com todas as suas criações, em crise sim, mas sem podermos ainda visualizar o que será a pós-modernidade anunciada e já proclamada por alguns. Estamos ainda mergulhados nos problemas da modernidade.

1.3- O Estado moderno na América

Na América Latina, os Estados nacionais se formam a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nesses Estados é o fato de que, quase invariavelmente, os entes soberanos foram construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares que a maior parte daquela se sentisse integrante, se sentisse parte do Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos), assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer concepção de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.
De forma diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para todos que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelo poder dos Estados, na América não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados de “Índios” pelo invasor europeu), que não existissem: milhões foram mortos.
A situação começa a mudar com as revoluções democráticas e pacíficas da Bolívia e do Equador, com seus poderes constituintes democráticos, que fundaram um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado Plurinacional, democrático e popular.
Nunca na América tivemos tantos governos democráticos populares como neste surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são apenas democráticos representativos, mas fortemente participativos e dialógicos.

2. O dispositivo moderno: nós X eles.

Neste íten vamos ver como que as nomeações de grupos, os nomes coletivos que serviram para a unificação do poder do Estado serviu, históricamente, para desagregar, excluir e justificar genocídios e outras formas de violência.
A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif. Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga comentou para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da cinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.
Badiou menciona que o anti-semitismo de Barre não mais é tolerado pela média da opinião publica francesa. Entretanto um outro tipo de anti-semitismo surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo mas debater a existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.
Assim como ocorre com varias outras palavras mas de forma menos radical (liberdade e igualdade por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Badiou ressalta que o debate que envolve o anti-semitismo e a necessidade de sua erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de descriminação, perseguição, exclusão ou racismo. Existe uma compreensão no que diz respeito à palavra “judeu” e à comunidade que reclama este nome, que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos valores, superior a todos os demais. Não propriamente superior mas em um lugar diferente. Desta forma pode-se discutir qualquer forma de discriminação, mas quando se trata do “judeu” a questão é tratada como universal, indiscutível, seja no sentido de proteção seja no sentido de ataque. Da mesma forma, toda produção cultural, filosófica assim como as políticas de estado tomam esta conotação excepcional. Talvez nenhum outro nome tenha tido tal conotação, ou para Badiou, a força e a excepcionalidade do nome “judeu” só tenha tido semelhança com a sacralização do nome Jesus Cristo. Não há, entretanto, um medidor para esta finalidade. O fato é que o nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de identidade e foi especialmente sacralizado.
O nome “judeu” é um nome em excesso em relação aos nomes ordinários e o fato de ter sido um vitima incomparável se transmite não apenas aos descendentes mas a todos que cabem no predicado concernente, sejam chefes de estado, chefe militares, mesmo que oprimam os palestinos ou qualquer outro. Logo, a palavra “judeu” autoriza uma tolerância especial com a intolerância daqueles que a portam, ou, ao contrário, uma intolerância especial com os mesmos. Depende do lado que se está.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazista ou fascista) seja de sacrifício (como cristãos, judeus e mulçumanos), esta nomeação nos expõe ao pior.
Vários equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do estado judeu aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também comprometidas com um discurso democrático, tolerarem praticas de tortura e assassinatos seletivos por parte do estado de Israel, por ser este estado um estado “judeu”.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados.
O filme “O trem da vida” (Train de Vie dirigido por Radu Mihaileanu divulgado no Brasil pela “Seleções DVD”) é um maravilhoso poema a pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um predicado “judeu” na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro de um outro grupo gera segregação. A introdução do tema identidade e identificação com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, como fator de segregação, sempre irracional. Como anulação do sujeito livre, com a anulação do nome próprio em nome de um nome do grupo.

3. O fascismo entre nós: nós X eles e o triste segundo turno das eleições de 2010.

O primeiro grande problema que vivemos de forma acentuada no segundo turno das eleições presidenciais de 2010 foi gerado pelo sistema de governo adotado pela Constituição Federal. A competição de pessoas para se chegar ao poder em uma democracia concorrencial representativa para um poder unipessoal é uma ficção ideológica. É absolutamente impossível e logo indesejável que uma pessoa governe sozinha uma cidade, quanto mais um país. O processo político democrático em uma democracia de pluralismo partidário deve ocorrer em torno de idéias, projetos, programas e equipes capazes de implementar as políticas amplamente discutidas pela população em uma democracia dialógica e participativa que sustente e influencie os debates e as decisões tomadas no parlamento e no governo.
O fato do debate político ocorrer em torno de uma pessoa, sua história de vida e sua bondade ou maldade distorce a vontade popular, conduzindo a discussão para fora do campo que interessa a democracia representativa: o debate de projetos, idéias e programas de ação política. Conceitos morais simplificados que servem muito bem a manipulação da opinião pública levam a polarização da população que tenderá a se dividir em uma relação amigo-inimigo, primeiro passo para o ódio e suas nefastas conseqüências sociais. Neste sentido, graças aos grandes órgãos de imprensa, especialmente a revista Veja; a Globo e a Folha de São Paulo, o primeiro passo de extremo perigo em direção ao fascismo foi dado.
Pessoas, vítimas da polarização, reagem como esperado pelo projeto fascista: a agressão ao outro, ao considerado inimigo. Uma classe média raivosa esbraveja sua irracionalidade na internet, nos bares e (incrível) nas igrejas. A generalização com fundamento moral superficial. O processo nós X eles foi posto em marcha. Pessoas que não se conhecem se agridem e se odeiam pois são colocadas em lados diferentes. Como estudou o filósofo e psicanalista francês Alain Badiou, a divisão da sociedade entre nós e eles é o primeiro passo para a violência.
O segundo passo vem então com maior facilidade: como afirma o pesquisador francês Jacques Sémelin (Purificar e destruir, Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009), este “outro” inferior é estigmatizado; rebaixado e anulado. Na Alemanha nazista isto precedeu ao assassinato de fato. Primeiro o outro é animalizado em uma operação do espírito. Assim ouvimos expressões como “petralhas”; “terrorista”; “operário sujo” e muitas outras. Está desperto dentro de muitos brasileiros de classe média e alta uma herança conservadora, escravista, racista e preconceituosa. O contato com a realidade começa a desaparecer. Os discursos são recheados de agressões, o sangue circula mais rápido e o ouvido se fecha.
O terceiro passo também foi dado pela grande mídia com o apoio do candidato e seu grupo de sustentação. A aproximação da política com a religião, e o que é pior, a transformação da política em um espaço religioso. Esta formula esteve presente na Alemanha nazista e na Itália fascista e foi utilizada em outros processos eleitorais pela América, inclusive na eleição de W. Bush. O processo que aqui descrevo e que assistimos atônitos no segundo turno da eleição é estudado por diversos teóricos e pode ser melhor compreendido no livro acima citado. Outro autor muito instrutivo para a compreensão da política fascista é o constitucionalista Carl Schmitt, o jurista do nazismo.
O problema da confusão entre religião e política é o fato de que a política deveria ser um espaço de discussão racional enquanto a religião é um espaço de fé. Quando as pessoas torcem para um partido político, um candidato à presidente como se fosse um clube de futebol alguma coisa anda muito errado. O pior é quando argumentos de pureza, religiosos, morais, começam a ser utilizados.
Qual o problema com os argumentos de pureza? O problema é que esta pureza é irreal, ela é idealizada. A pureza é realmente inexistente, mas assumida por um grupo como uma pretensão realizada. Assim foi a pureza racial para os nazistas (argumento insustentável do ponto de vista concreto), assim foi a pureza política stalinista, assim será qualquer argumento de pureza. O problema de acreditar que alguns são puros é que os considerados não puros são animalizados, inferiorizados, estigmatizados, eliminados. O discurso da pureza, a crença de que alguns são puros e outros impuros, a não compreensão (a incompreensão) das pessoas como seres processuais em permanente processo de transformação e que aprendem principalmente com seus erros, será um passo para o extermínio do outro. Este discurso é extremamente perigoso, seja qual for o espaço em que ele seja realizado, especialmente nas Igrejas. A crença na pureza absoluta, a repressão extrema do ser real (impuro, incompleto e complexo em cada um de nós) gera distorções absurdas e afasta ainda mais as pessoas dos seus laços com o real, jogando cada pessoa e o grupo social em uma relação paranóica distante dos fatos e cada vez mais mergulhado no imaginário.
A vivência em um espaço imaginário visto como realidade é reforçada pela experimentação desta paranóia de forma coletiva.
Este processo aumenta o narcisismo. A distinção em relação ao outro é motivo de satisfação, o que reafirma a negação do outro como igual, como portador de argumento que mereça ser ouvido.
O quarto passo também foi dado pela campanha e pela grande mídia: o problema da segurança e a destruição do inimigo. O medo antecede o ódio e os discursos se encarregam de estruturar esta transformação do medo em ódio.
Agora é necessário um fato para os próximos passos. Uma situação trágica que faça surgir o desejo de vingança. Este passo felizmente não foi dado.
Para não sermos inocentemente envolvidos por um poder que representa interesses que não são os nossos precisamos desconfiar, estudar, avaliar, e principalmente pensar sem preconceitos e sem ódio. O fascismo e o nazismo, onde se manifestou, envolveu milhões de pessoas, que inocentemente acreditaram que estavam defendendo seus interesses, que estavam construindo um país melhor, e quando descobriram que eram objeto de manobra ideológica sofisticada, já era tarde demais.


4. Conclusão

Zizek vê três formas de violência . Uma violência subjetiva, e duas formas objetivas. A subjetiva é aquela facilmente visível, praticada por um agente que podemos identificar no instante em que é cometida. Esta violência geralmente é vista como a quebra de um fundo zero de violência. Tudo está sem violência até que o ato violento é praticado. Esta forma subjetiva, entretanto, deve ser compreendida juntamente com as duas outras formas objetivas: a) a violência simbólica presente nos discursos; palavras e representações diárias. A utilização da linguagem, a atribuição de sentidos contém violências, hegemonias, traços visíveis de opressão e exclusão. b) a violência sistêmica representada pelo jogo de relações sociais, econômicas, políticas, religiosas. Em outras palavras, se a violência subjetiva é uma quebra de uma aparente normalidade de ausência de violência, a violência objetiva sistêmica é esta normalidade. Na ausência do ato que quebra a aparente normalidade pacífica, ela atua permanentemente.
A alteração desta normalidade (violenta) pode gerar quebras ou violências subjetivas em escala crescente. Vamos entender o exemplo que ocorre no Brasil em 2010. Durante séculos vivemos uma ordem social e econômica de exclusão, racismo e opressão. Esta era a normalidade objetivamente violenta. Negros e pardos pobres trabalham em posição subalterna permitindo a afirmação do narcisismo de uma classe média e alta que se satisfaz diante da superioridade que julgam ter diante destes servos: empregadas e empregados domésticos, cozinheiras (os); jardineiros (as), lixeiros (as) etc. Muitos destes narcisos exercem extrema bondade caridosa em relação aos outros inferiores afirmando ainda mais sua superioridade. Acontece que nos últimos anos, milhões de pessoas se movimentaram social e economicamente. Um número muito grande de pessoas, que eram completamente excluídas do mercado de consumo passaram a consumir. Em poucos anos, pessoas que nunca viajaram de avião; não freqüentavam o “shopping”; não estudavam em universidades públicas ou privadas; não comiam em restaurantes; não dirigiam automóveis, passaram a freqüentar estes lugares, a dividir espaços com aquela classe média e alta, quase sempre branca, que tinha estes lugares de seu uso exclusivo. Aquela que deveria ser a empregada doméstica agora estava sentada na poltrona do lado no avião. O outro passou a invadir espaços que não eram deles. O “nós” foi obrigado a conviver com o “eles”. Isto é insuportável para alguns. A afirmação decorrente do narcisismo, a afirmação em relação ao outro inferior, rebaixado, é comprometida. Isto é sentido como um golpe a posição ocupada, e mais, um golpe contra o sentimento de identidade de classe superior.
Esta realidade gerou ódios e atos de violência subjetiva proliferam. Crescem as agressões contra os pobres, pardos e negros. O discurso conservador aumenta o tom. Dentro deste contexto ocorreram as eleições. Dentro deste contexto passos perigosos foram dados no sentido de dividir a população como mecanismo de “marketing” eleitoral. É necessário entender estes mecanismos, e compreender o funcionamento deste sistema violento para poder desmontá-lo. Não haverá menos violência subjetiva, quebras de normalidades aparentemente não violentas, enquanto este sistema objetivo e seu aparato simbólico de opressão não forem desmontados.
Em outras palavras, podem “invadir” quantas favelas quiserem que a paz só será obtida com o desmonte da violência objetiva, sistêmica e simbólica. A “guerra contra o tráfico” transmitida pelas TV’s, rádios e noticiadas por revistas e jornais, é o reforço da violência simbólica. Pessoas raivosas destilam seu ódio defendendo a morte dos “bandidos” para acabar com a violência.