segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

127- Teoria da Constituição 37 Estado de Emergência

8.3 Estado de Emergência e Constitucionalismo
Jose Luiz Quadros de Magalhaes


Com os atentados terroristas que atingiram, entre outros países, com maior repercussão política, os Estados Unidos, Espanha, Turquia e o Reino Unido a partir de 2003, os governos do Estados Unidos e do Reino Unido de forma contundente, adotaram medidas de suspensão e comprometimento da Constituição e mesmo do Estado de Direito, que tem precedentes na história constitucional moderna e que encontra sustentação em uma teoria autoritária da Constituição que busca subsídios muitas vezes na Antigüidade.
A idéia de recorrer a medidas excepcionais em momentos de crise é muito antiga, podendo ser encontrada na Antigüidade, pois, como recurso humano, é o mais primitivo deles. Esse caráter primitivo da violência institucionalizada, autorizada, é uma contaminação do constitucionalismo dada a sua origem não democrática. Já estudamos em outros momentos que constitucionalismo e democracia sempre se estranharam.
O estado de emergência pretende suspender a Constituição para garantir a Constituição. Esse raciocínio primário é comum na contem¬poraneidade, quando admitimos matar os que matam, vingar os que vingam, quando admitimos suspender a liberdade em nome da liberdade, como ocorreu no discurso político de diversas ditaduras latino-americanas das décadas de 1960 e 1970, como no Brasil e no Chile, por exemplo. Para evitar o crime admitimos o crime legal do Estado, para proteger as pessoas, violamos as pessoas. Quando combatemos a violência com violência, o crime com o crime, a intolerância com a intolerância com os intolerantes e muitas outras equações semelhantes, nos tornamos o que queremos combater. Talvez seja esta a grande conseqüência trágica do 11 de setembro. Ao reagir com medidas de suspensão dos direitos civis para garantir sua sociedade livre, o Governo Bush comprometeu fortemente os valores que sustentam aquela sociedade desde sua formação. Essa é a grande vitória do terrorismo. Não se pode acabar com a liberdade para defender a liberdade. A liberdade é a grande defesa da liberdade. Não se pode suspender a democracia para defender a democracia, pois só a democracia garante democracia. Não se pode suspender a Constituição para garantir o Estado constitucional, pois só a Constituição pode garantir liberdade, democracia e segurança, enfim só o respeito integral à Constituição garante o constitucionalismo. Não há constituição em partes, e a Constituição não pode prever sua suspensão, em parte, por ser incompatível com a sua essência como texto integral, coerente e lógico.
A hipocrisia do estado de emergência reside no fato de que num regime político baseado no respeito aos direitos e liberdades fundamentais, o estatuto das situações de necessidade centra-se na salvaguarda desses mesmos direitos e liberdades que autorizam sua suspensão para sua proteção, enquanto, num regime totalitário ou autoritário não se carece de recorrer a providências de suspensão de direitos, isso é feito claramente. Nesse raciocínio, é preferível um regime declaradamente autoritário, mais fácil de combater, do que um regime que se esconde no discurso democrático e constitucional para, quando necessário, suspender direitos para preservar o poder dos poucos. É comum na história política moderna o recurso a medidas de exceção para garantir privilégios do grupo que se encontra no poder. Quando os mecanismos constitucionais não são suficientes, as elites recorrem aos golpes comuns na América. Toda vez que os privilégios econômicos da elite são ameaçados, a democracia e, mesmo o constitucio¬nalismo são ameaçados, comprometidos ou destruídos, para garantir a manutenção dos privilégios do grupo. Basta lembrar o Brasil, em 1964; Chile, em 1973; e Venezuela, em 2002; dentre vários outros exemplos.
Esse exemplo não é novo. Ao recordar a década de 1790, percebemos como o constitucionalismo, e não apenas a democracia, é apenas tolerado e instrumentalizado pela elite no poder. Aí começamos a perceber a utilidade do estado de emergência como instrumento estranho ao constitucionalismo. Somente a liberdade garante a liberdade; somente o constitucionalismo garante o constitucionalismo.
A década de 1790 é um resumo da modernidade revela que a revolução francesa foi vencida pela alta burguesia, e, como à alta burguesia não interessava democracia, o constitucionalismo se transformou em mecanismo de contenção da democracia popular. Assim podemos interpretar em parte a década de 1790.
Os sistemas de contenção de crises surgem com o próprio Estado e são inerentes aos jogos de poder. A história das civilizações tem sido a história desses jogos de poder. Podemos localizar três momentos dos sistemas de defesa:
a) em situações de crise há suspensão de todo ou de parte da ordem constitucional, concentrando nas mãos de uma pessoa a autorização para solucionar as dificuldades segundo sua compreensão. Isso é a ditadura;
b) não há alteração da ordem constitucional, mas admite-se a prática de todo ato necessário à “salvação pública” com acompanhamento judicial. É o sistema britânico e norte-americano de lei marcial;
c) ocorre a substituição da legalidade ordinária dos tempos de paz por uma legalidade especial e transitória adequada para tempos de crise.7


FINAL

Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo o termo aqui como representação política mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.
A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.
Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes . Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.” Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonha-lo. Basta repetir o script previamente posto e repetidos pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste processo de dominação são a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações (?) e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito a recorrente crítica ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.
O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública pois a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “estado de bem estar social”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.
Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) funda-se em ideologias, em mentiras. A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.” Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos são construídos pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?
A revolução necessária ocorrerá na revelação do que está encoberto. A revelação do real, a busca do real é o grande desafio contemporâneo. A este tema retornaremos de maneira aprofundada no próximo livro.