segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

126- Teoria da Constituição 36

O FUTURO DO DIREITO
CONSTITUCIONAL: CRISE
E RECONSTRUÇÃO
Jose Luiz Quadros de Magalhães

O Direito Constitucional contemporâneo passou a incorporar a idéia de democracia como essencial a qualquer ordem constitucional. Entretanto, a democracia vem sofrendo ataques, adaptações, tendo seu sentido transformado e seqüestrado pelo capitalismo e mais recentemente pelo projeto neoconservador. O grande desafio é resgatar esse conceito, que deve estar conectado à idéia de justiça social e econômica, sem o que a democracia efetiva não é possível. Outro aspecto a ressaltar é o de que a democracia não é um lugar onde se chega, a democracia é sempre um caminho. No nosso livro Poder Municipal,1 procuramos construir uma proposta de um novo papel a ser desenvolvido pela Constituição não como ordem reacionária, que reage às mudanças fora dos limites constitucionais, mas como mecanismos transformador que atua no sentido de colocar toda a estrutura do Estado a serviço das transformações democraticamente construídas, entendendo-se não só à democracia como processo, mas à Constituição como asseguradora desse processos de transformação.


8.1 A crise contemporânea
da democracia representativa na Europa e EUA.

Vamos retomar uma discussão efetuada quando da análise do controle de constitucionalidade para aprofundá-la e chegar, enfim, a algumas conclusões.
Como já dito, em uma democracia representativa baseada em partidos políticos ideológicos, com programas definidos e coerência, o que implica em fidelidade partidária, poderíamos desejar que o eleitor votasse não em nomes, mas em propostas e em um grupo de pessoas integrantes dos partidos políticos capazes de aprovar essas propostas, transformá-las em leis (se no parlamento) e implementá-las (se no executivo).
Coerentes com as propostas e o programa de seu partido, seus membros filiados ocupando cargos ou funções no Executivo e no Legislativo teriam suas atuações pautadas pela fidelidade às propostas e às diretrizes político-ideológicas de seu partido político. Sabemos, entretanto, da dificuldade contemporânea de serem implementadas políticas, principalmente na área econômica, que sejam dissonantes da vontade e dos interesses de quem efetivamente detêm o grande poder, que é o poder econômico, nas mãos das grandes corporações capitalistas, o grande capital conservador, especialmente no setor financeiro. Portanto, a dificuldade maior para que o Governo e os legisladores tenham coerência com suas propostas reside no leque político-ideológico de esquerda, uma vez que as políticas conservadoras do grande poder econômico encontram respaldo em boa parte da direita mais conservadora.
Hoje há grande insatisfação com os governos (pouco representativos na Europa e EUA) que se mostram impotentes para modificar uma ordem econômica excludente, o que tem levado a um desinteresse pela democracia representativa, com índices de abstenção cada vez maiores nas eleições. Esse fenômeno pode ser conectado a dois aspectos interessantes:
a) as políticas de direita se vinculam aos interesses do capital financeiro conservador, que tem levado à exclusão, desemprego, desigualdade e, logo, à insegurança, à criminalidade crescente e à violência. Interessante que era justamente a direita que baseava as suas campanhas eleitorais em construção de políticas de segurança; ou seja: gera violência com políticas econômicas excludentes e promete mais direito penal e mais polícia para oferecer segurança. Hoje, parte da esquerda européia abandonou (temporariamente) a busca de modelos econômicos alternativos (o que sempre foi sua característica essencial), parte da esquerda também assumiu o discurso policial repressor, ainda com algum pudor em algumas cir¬cunstancias;
b) as políticas de centro-esquerda têm cada vez menor espaço para a construção de modelos alternativos (fenômeno especialmente europeu), especialmente porque, diante das políticas econômicas globais neoconservadoras (chamadas de neoliberais) ditadas pelo grande capital corporativo, a centro-esquerda perde sua razão de ser, oferecendo, no máximo, algum tipo de assistencialismo com um discurso um pouco mais charmoso (por vezes), mas sem poder ou sem querer desafiar o grande poder econômico, modificando o modelo econômico, proposta histórica de todos os partidos de esquerda.
O pano de fundo ideológico que começou a ser construído a partir da década de 1970 foi o da criação da ideologia do fim da história, pelo menos na área econômica, onde se coloca o modelo econômico neoconservador (chamado para efeito de marketing de neoliberal), como o grande modelo vitorioso, o único modelo possível, discurso que veio ser fortalecido com o fim da União Soviética e, simbolicamente, com a queda do muro de Berlim. Este modelo entra em crise radical com a crise econômica de 2008, que aponta para a necessidade de superação do modelo neoliberal. Nos dois anos seguintes, entretanto, embora os EUA tenha tentado resgatar algumas política de bem-estar com o governo Obama, na Europa as formulas liberais continuam sendo empregadas sem sucesso para tentar resolver a grave crise econômica.


8.2 Direito, política e economia na contemporaneidade

A idéia que se constrói a partir da ascensão conservadora e o fim do socialismo real na Europa oriental é a da vitória do liberalismo e o fim da história (o que é uma gigantesca bobagem). Essa estratégia discursiva é seguida de outra construção ideológica da direita conservadora: a idéia de que a economia é uma ciência que mostra respostas técnicas exatas aos problemas diários de produção, consumo, emprego, desenvolvimento, inflação, tecnologia e bem-estar, e, sendo esse discurso técnico-científico quase matemático, não podem os políticos e os juristas se insurgir contra ele. Remetemos o leitor ao iten 7.2.1 que trata este tema, ressaltando a submissão do Poder Judiciário aos imperativos da ordem econômica.
No momento em que aceitamos a mentira de que a economia não pode ser subordinada ao Direito e seus imperativos de justiça social e econômica, e, logo, à política, que produz o Direito na instância parlamentar, desautorizamos a democracia, que agora nada pode diante dos (pseudo) imperativos econômicos; desautorizamos o Direito (que não deve regulamentar a economia) e a política (feita por não técnicos). O pressuposto ideológico falso que sustenta a separação da economia do Direito e da política parte da aceitação de que há apenas um modelo econômico possível e que nesse modelo há decisões tecnicamente acertadas que não podem ser contrariadas pela política (como espaço democrático de criação inicial do Direito) e, logo, pelo Direito. É óbvio que não podemos negar que existem decisões no âmbito econômico que são fundadas em teorias com base científica e tecnicamente recomendadas. O que é falso e que sustenta a ideologia conservadora contemporânea é a afirmativa de que existe apenas um modelo econômico, um único caminho a ser seguido na economia. Existem diversos modelos econômicos, e a escolha desses modelos só pode ser política, pois deve ser democrática. É nesse sentido que a política democrática e o direito devem submeter a economia ao sentido constitucional de justiça econômica e social tão cara ao Estado Social. Não é o Direito que deve se adequar a economia por não existir outro modelo possível. É a economia que deve se adequar ao Direito por existirem outros modelos possíveis. São os economistas que devem adequar a ciência econômica, construir teorias econômicas que tornem viáveis a vontade constitucional. A equação foi invertida e transformada em dogma. Essa é uma questão ideológica central da contemporaneidade. Essa é a grande mentira de nossa época.
Em decorrência dessa mentira, assistimos ao comprometimento da democracia, quando governos eleitos se abstêm de modificar o modelo econômico; a partir dessa mentira assistimos ao comprometimento ou o suicídio de parte da centro-esquerda, que ao chegar ao poder mantém os mesmos modelos econômicos conservadores excludentes. Ora, se a esquerda não mais representa uma alternativa econômica no poder, não há mais esquerda, mas, sim, um grupo de homens que se dizem bons e bem-intencionados, que infelizmente não podem fazer nada para mudar o perverso quadro que nos cerca, decorrente de um modelo econômico não menos perverso, mas complexo e poderoso.
Enfim, como já ressaltamos, assistimos ao comprometimento do Estado de Direito, quando os juízes e os tribunais não aplicam a lei e a Constituição, pois estas podem comprometer a estabilidade econômica, o investimento estrangeiro e o risco país.
Slavoj Zizek, um dos importantes interlocutores sobre o debate do pensamento político da esquerda contemporânea, lembra que não devemos embarcar no convite da direita conservadora, que nos diz que devemos simplesmente escolher um dos dois lados na guerra contra o terrorismo. Existem vários lados, e o mundo é extremamente mais complexo do que o maniqueísmo simplificador do pensamento fundamentalista conservador.