domingo, 28 de novembro de 2010

107- Cinema - Reflexões cinematográficas - inacabado -apenas para reflexão e discussão

Seguem alguns escritos sobre cinema, ideologia e outras questões com sugestões de filmes. É um trabalho não acabado apenas para discussão com os amigos.



A busca do real: a representação cinematográfica como possibilidade de revelação do real.


Jose Luiz Quadros de Magalhães


Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo o termo aqui como representação política mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.
A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta (1) e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.


Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes (2). Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.” (3) Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonha-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito a recorrente crítica ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.
O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “estado de bem estar social”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.
Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida). (4) funda-se em ideologias, em mentiras.(5) A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.(6)
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.”(7) Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?
Neste pequeno ensaio vamos buscar o auxilio da arte, da sétima arte, do cinema, para nos ajudar a enxergar por detrás das representações ideológicas do mundo que encobrem o real jogo de poder, os reais interesses escondidos pelos discursos e quais os mecanismos são utilizados para a dominação. Principalmente entender como legiões de pessoas são levadas a agir contra elas mesmas e como os cães de guarda do sistema agem contra eles mesmo e tudo o que eles dizem proteger.
A lista de filmes com certeza tem ausências importantes que o leitor pode ajudar a lembrar. Digamos que é um passeio inicial. Pessoas importantes não estão nela: Wim Wenders; Herman Herzog; Werner Fassbinder; Píer Paolo Pasolini; Felini; Michelangelo Antonioni; Costa Gravas; Sergei Eisenstein; Andrei Tarkowisk, Godard; Ettore Scola, Luis Bunuel, Carlos Saura, Kristoff Kielowsky entre outros diretores produziram obras que merecem ser conhecidas e que com freqüência abordam o tema. Entretanto, na maioria dos casos, escolhemos obras com uma linguagem cinematográfica contemporânea mais ágil, mais veloz, e que, portanto, pode estabelecer uma comunicação mais fácil com uma época onde nos acostumamos com o paradigma da velocidade, da impaciência com o discurso lento.
Antes de assistirmos filmes excepcionais vamos trabalhar o conceito de sacralização e profanação, construídos por Giorgio Agamben, e que nos será muito útil nas reflexões que se seguirão,



1- Profanação


O pensador Giorgio Agamben(8) faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.
O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.
Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (idéia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano.
A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, idéias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma idéia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.
Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que varias pessoas que freqüentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).
Como resistir a perda da liberdade. Como resistir a sacralização das relações sociais, econômicas e logo a perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras, das idéias? Como se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor a sacralização de parte importante de nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar esta possibilidade de libertação é “negligência” que pode permitir a profanação da coisa sacralizada.
Não é uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isto pode até fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça ao sagrado é uma atitude de negligência. Negligência entendida como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. Não é ignorar a coisa(9) sacralizada mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência neste caso significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo profanar significa liberar a possibilidade de uma forma particular de negligencia que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa.
A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacralização como uma cerimônia de casamento. Os jogos de sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a estória) e o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz esta ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso das pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma estória. Importante lembrar que negligência não significa falta de atenção. Uma criança quando joga tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.
Devemos dessacralizar a economia, o direito, a política devolvendo estas esferas ao livre uso do povo. Construir novos usos livres.
Numa época onde a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo, O jogo como profanação, como uso livre está hoje decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos prontos, sacralizados, com regras herméticas, onde os novos usos são quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos).
A secularização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas permite com que as forças de separação permaneçam intactas sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutraliza a força do que é profanado. Tratam-se de duas operações políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder; separa o rito do mito permitindo o livre uso.
O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé protestante; Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo.
Para Giorgio Agambem o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas:
a) É uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc.
b) É um culto permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça.
c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta pra sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal.

O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo mas sim sua destruição.
Existe no capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as idéias, objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte mas é um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transporta-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.
Na lógica da sociedade de consumo a profanação torna-se quase impossível pois o que se usa não é o uso inicial do objeto mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso o da liberdade exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.
O consumo pode ser visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso uma vez que há a negação do uso que pressupõe que a substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do uso.
A propriedade é uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada que se converte no estado moderno em direito. Entretanto o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa não apenas porque eles consomem objetos que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de apropriação. Está escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consumidor está mergulhado até a cabeça.




2- Matrix (1999): o real existe.


O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritualismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencontros, a idéia de autopoiesis como essencial à vida é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, que após experiências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo.
Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela(10), trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.(11)
Estudando a aparelho ótico de seres vivos(12), os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nos mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado(13). Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do real. O real existe além da matrix. O real é relativo e histórico mas ao mesmo tempo é diferente da mentira que busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construindo pelo outro com o propósito de encobrir algo. Neste sentido a matrix é real enquanto algo que encobre propositalmente a possibilidade de intervir na história, ou provoca intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O que chamamos de real são as relações que se constroem no mundo da vida como possibilidade de dialogo e intervenção na história não manipulada pelo outro. O real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder, o real é a revelação dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade históricamente construída. Se assistirmos um assassinato em uma praça podemos encontrar neste fato o real, as verdades e as mentiras, assim como o encobrimento proposital do real. Assim o real cru está no corpo inerte, na ausência de vida, na morte de uma pessoa. As verdades que se constroem nas cabeças das testemunhas não são únicas uma vez que são interpretações da morte que ocorreu e da pessoa que morreu. As mentiras intencionais distorceram propositalmente os fatos para manipula-los segundo interesses diversos. O encobrimento do real foi feito posteriormente com a noticia não divulgada, a arma do crime adulterada, e provas forjadas. O encobrimento não é uma simples mentira que altera o fato ou exagera o fato. O encobrimento tem uma finalidade estratégica. Com este exemplo podemos dizer de um real, de um encobrimento, de verdades históricas e de mentiras históricas.
Matrix parte desta compreensão e propõe algo assustador. E se nossa auto-referência não pertencer mais a nós mesmo, mas alguém, externo construir nossos limites de compreensão, nossas verdades? A partir deste universo o filme nos incita a outra reflexão: na medida em que outro constrói propositalmente mentiras que se transformam em verdades estamos impossibilitados de perceber o real. Este manipulador externo de nosso mundo usurpa nossa liberdade.
A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da compreensão da autopoiesis pode encontrar um limite real. O real se constitui nas relações de interpretação e de comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de poder. Alguém propositalmente me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades. Nas relações falsamente construídas como sendo reais.
A matrix é real. A manipulação da opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de noticias e de fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente. Assistimos golpes midiáticos como a tentativa de golpe contra o governo constitucional de Hugo Chaves onde a mídia fabricou fatos, notícias, medos. Assistimos ao golpe midiático nos EUA com a eleição de Bush e a sustentação de um estado de exceção mantido pela geração diária do medo pela grande mídia. A matrix está ai, mas seus limites são claros na reação popular ao golpe na Venezuela. A matrix está aí, mas seus limites existem, e a resistência à manipulação do real conseguiu vencer as eleições, é certo que de forma apertada, na Itália em abril de 2006.
O interessante do filme é que as agressões no mundo da matrix são reais. Talvez o único real no mundo da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que a fuga do real na matrix não garante segurança e retira liberdade.
A verdade posta no filme está na conexão do eu com o real. Este eu que interpreta o mundo. Na matrix não há verdade, pois, não há conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A pessoa vive uma representação criada por outro.




3- Vanilla Sky (2001): a fuga do real é para alguns.



O filme retoma o mundo construído artificialmente na mente, mas agora de forma deliberada, como opção individual de viver em um espaço artificialmente construído como forma de negar uma vida real insuportável.
Os recursos tecnológicos a disposição da representação do real também estão presentes neste filme. O filme trabalha com o oposto da busca do real. O filme fala da fuga do real. Quando o real se torna insuportável, intolerável, quando não conseguimos olhar para o real. Quando o real ofende nossos olhos, agride nossa razão, acaba com a estima humana, alguns fogem. Escolhem a fuga. É melhor esquecer o real e viver em uma realidade programada. A escolha do irreal, de viver na representação existe e ocorre. O filme provoca. Mas a escolha de viver na representação programada não é para todos, pois, se fosse não seria mais representação e sim realidade uma vez que não seria mais necessário fugir. A escolha da representação programada existe para se fugir do real e existe para alguns: por isto é representação falsa da vida.
Nas palavras de ZIZEK(14):
“Porque a verdadeira lição da psicanálise não é que os eventos externos que nos fascinam e/ou perturbam sejam apenas projeções de nossos impulsos internos reprimidos. O fato insuportável da vida é que realmente há eventos perturbadores lá fora: há outros seres humanos que vivenciam intenso prazer sexual enquanto somos meio impotentes; há pessoas submetidas a torturas terríveis... Reiterando, a verdade máxima da psicanálise não é descobrir nosso próprio Eu, mas o traumático encontro com um insuportável Real.”
Mas não há segurança no mundo virtual. A felicidade pode ser comprometida pelo subconsciente. Nem tudo está sob controle. A segurança e a felicidade fundada no controle têm limites. A felicidade produzida é perfeita demais. São estereótipos. Clichês. O personagem ao final escolhe o real. Mas será que ele já tinha vivido o real? O real para ele foi talvez a ruptura com a sua vida perfeita, rica. A ruptura traumática com sua aparência perfeita, bela. Mesmo na construção da vida virtual perfeita esta foi construída sobre os valores superficiais que pautavam sua vida antes do trauma. A vida virtual era propositalmente artificial: ela não tentava imitar o real. Era propositalmente uma imitação romântica, artificial, perfeita, do real. Uma representação que não tinha a intenção de representar o real, mas, uma idealização do real.




4- A ilha (The Island - 2005): a possibilidade de realização do desejo. Um horizonte impossível como mecanismo de pacificação social.




A ilha está esperando por você. O que nós esperamos acontecer de diferente, de surpreendente para que suportemos um dia a dia controlado. A promessa de ganhar na loteria, de mudar radicalmente de vida, de realizar o sonho impossível é fundamental para que continuemos vivendo? Uma sociedade fundada no consumo e na competição, sem mobilidade social, só é possível porque existe a promessa de mobilidade social. Uma sociedade fundada no consumo e na competição, no hedonismo e no materialismo, só é possível por meio do exemplo dos que realizam a promessa da ascensão social e econômica. Estes irão dizer na televisão para todos ouvirem: olha como somos felizes! Olhem nossas casas, nossos carros, nossos sorrisos. Vocês também podem ter isto. Vocês podem conquistar a ilha. E todos os jornais e revistas mostrarão seu sucesso. Os programas de televisão irão entrevista-los e dirão: olha como somos livres. Você também pode conquistar esta felicidade.
A espera da mudança pode tornar suportável a exclusão. A espera pode ser pela loteria, pelo paraíso, pelo reconhecimento, pelo arrebatamento, ou por qualquer outra coisa que signifique mudança. Mudar porque? Para que? Não é tanto a mudança o fundamental mas a crença na possibilidade de mudança, mesmo que esta não exista.
O socialismo real foi capaz de socializar os bens materiais, o atendimento médico, o emprego, a moradia, o acesso à educação, mas não soube socializar o sonho, a possibilidade de mudança ou a crença na possibilidade da mudança. O capitalismo por sua vez concentrou e concentra cada vez mais a riqueza mas promete a mudança, cria desejos artificiais, inventa demandas, desperta o desejo pelo consumo e oferece o bem a ser consumido realizando desejos. O capitalismo foi capaz de socializar o desejo, a crença na liberdade como possibilidade de mudança de status social e econômico, a crença na liberdade como satisfação de desejos. O capitalismo aposta no desejo, não como liberdade mas como escravidão dos sentidos. O socialismo apostou na razão, na ética e esqueceu o desejo.
O socialismo real pode ter falhado ao não saber lidar com os desejos. O capitalismo foi capaz de tornar a escravidão do desejo permanente em uma crença generalidade na liberdade. O desejo passou a chamar-se liberdade.
Zizek menciona que na Tchecoslováquia na década de 1970 as pessoas tinham tudo para ser felizes. Todos moravam, comiam, estudavam, tinham saúde. Tinham um responsável externo por todo mau funcionamento do sistema. O partido comunista era responsável por tudo que saía errado. Ainda tinham a promessa de um paraíso do outro lado: a Europa ocidental e os EUA com sua promessa de consumo, paraíso que podiam visitar de vez em quando. A felicidade pode estar no princípio do prazer mas o que nos põem em marcha é ir além do principio do prazer. O mesmo que nos põem em marcha nos traz infelicidade. A insatisfação de sempre querer ir além de onde se está.(15)
Uma multidão se pôs em marcha, em direção ao outro lado. Em direção ao capitalismo. Em direção à ilha. A promessa de algo diferente. De novas realizações. Ao chegar ao outro lado encontraram uma multidão esperando algo diferente. Uma multidão continuava esperando a ilha e esta nova multidão continuou esperando, mas agora, diferente do que tinham no mundo do socialismo real, alguns testemunhavam, alguns na multidão usufruíam a ilha. Se a ilha era proibida no mundo do socialismo real, a ilha é a grande promessa do capitalismo real. O capitalismo real vive por causa da ilha. É a promessa da ilha que faz o sistema funcionar, e é a crença da multidão de que um dia chegarão à ilha que permite fazer esta multidão suportar a pressão.
O filme não fala de socialismo real. O filme se passa em um futuro onde as pessoas se tornaram proprietárias de seus genes. Onde a vida é uma mercadoria para manter outra vida. A vida de alguns sustenta a vida de outros. Uns vivem enquanto outros têm a promessa de vida na loteria. Ganhar na loteria significa possibilidade de liberdade. De vida fora do controle. O filme fala de nosso mundo em um mundo que não existe.
A promessa de ter acesso a uma ilha paradisíaca onde é possível viver longe do controle diário e da monotonia repetitiva do dia a dia é o fator que permite as pessoas suportarem. Interessante lembrar a musica: “a gente não quer só comida...” É obvio que a gente não quer só comida, mas na impossibilidade de oferecer inclusão prometemos muito mais do que comida mesmo que tenhamos que esperar, esperar e esperar, muitas vezes sem comida.
O filme fala de pessoas que existem para que outros possam viver mais. A ilha é para estas pessoas que existem para os outros e para as quais só existe uma promessa da ilha. Como no nosso mundo, uma multidão existe para que outros vivam mais, consumam mais, sonhem mais e até se escravizem mais na promessa do consumo. Como no nosso mundo alguns se tornam desnecessários. Nem a exploração do seu trabalho, do seu corpo é mais necessária. Estes são os excluídos. Uma nova categoria social do século XXI é a dos excluídos. Estes cuja presença se tornou um estorvo. Desnecessários até para serem explorados, escravizados, usados para qualquer outra finalidade.
Uma ficção bem realizada que nos permite pensar no valor da vida. A vida de uns e a vida de outros. Uma vida que vale outra vida e uma vida que não vale sua própria. Vidas são deixadas a sua própria falta de sorte enquanto todo um aparato é criado para manter outra vida que possui recursos para pagar. A vida tem a dimensão do dinheiro que pode comprar respeito, segurança e bem estar. É uma ficção que revela através do estranhamento a condição humana na sociedade capitalista.
O que é um clone senão uma vida. O clone vale menos do que o clonado. O mundo contemporâneo é formado por algumas pessoas e uma multidão de clonados cujas vidas não tem o mesmo valor.
Ao final uma aposta no ser humano: a mulher diz ao homem que a ilha somos nós. A possibilidade de felicidade está na humanidade e a possibilidade de libertação está na curiosidade, na dúvida.


5- A vila (The Village – 2004): o universo da criança na obra de Shiamalan. Não é possível fugir de nós mesmos. A segurança não está nos muros.


A minha alma ta armada
E apontada para a cara do sossego
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz é medo

Às vezes eu falo com a vida
Às vezes ela quem diz
Qual a paz que eu não quero conservar
Pra tentar ser feliz

As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que esta nesta prisão
Me abraça e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar numa poltrona
Num dia de domingo
Procurando novas drogas de aluguel
Nesse vídeo coagido
É pela paz que eu não quero seguir
Admitindo
(minha alma – a paz que eu não quero) – o rappa / Marcelo Yuka)

Segurança e liberdade não são inconciliáveis. São, em certa medida, complementares. Em tempos de criminalidade crescente, terrorismo, desemprego e insatisfação o recurso ao discurso da segurança como perda de liberdade e aumento de controle encontra respaldo em uma sociedade assombrada, amedrontada pela mídia e pelos governos.
A busca da segurança com a criação de mecanismos de controle, de isolamento, pode manter distante o perigo que vem do outro externo a uma comunidade, mas não tem como nos afastar de nós mesmos, não nos isola da condição humana. Se há a crença falsa de que alguns entre nós já nascem criminosos o isolamento entre muros não nos afasta desta possibilidade que estaria na nossa natureza. Se a violência é inerente à condição humana e diante de determinadas circunstâncias todos nós podemos praticar atos violentos, de nada adianta, também, vivermos entre muros, pois o que deve ser evitado é que a paixão, a história, os encontros e desencontros não sigam determinados caminhos. Logo assim será necessário controlar a história de cada pessoa, casal, família, comunidade e sociedade. Como controlar as ações das pessoas? Como controlar as ações e desejos de agir que não podem ser percebidos pelas câmeras de controle? Colocando um mecanismo de controle dentro de cada pessoa, o medo, o sentimento permanente de medo.
O filme “A vila” cuida do controle; do isolamento; da busca de uma sociedade ideal, isolada, controlada e limitada por muros externos e pelo medo interno. Pessoas cansadas e amedrontadas querem controlar o tempo; o espaço e os valores de uma sociedade criada para não viver a violência. Mas a qual violência nos referimos? A violência do medo; do não poder; do não desejar; a violência de não sair dos muros seguros e de esconder sua própria condição de sujeito.
Do controle exercido sobre as crianças, o mais cômodo e eficaz parece ser o medo. A geração artificial do medo. Não o temor sobre o real, mas um temor que ultrapassa o real. O perigo pode estar em cada esquina, em cada pessoa, em cada ação. O desconhecido é, por essência, perigoso mesmo que seja desconhecido. O medo paralisa e quanto maiores os temores do que não existe menos nos expomos ao que existe. A segurança nestes termos não passa pelo conhecimento dos limites, mas pela limitação da ação, do desejo, trancafiando qualquer transgressão nos limites culpados de um sonho que se esconde de si mesmo.
Portanto, a segurança está em gerar um medo além dos limites do real. A partir daí tudo passa a ser idealizado e distanciado do real: os muros; o controle; as câmeras de controle policial; o efetivo policial; a armas que protegem; os presídios de segurança máxima; etc.
O medo torna as pessoas dóceis. Facilita a negociação com os direitos. As pessoas estão dispostas a abrir mão de qualquer coisa até o limite do medo que estas sentem. Quanto maior o medo mais fácil se torna a negociação.
O filme trata de uma comunidade de se afasta do real e projeta uma nova realidade controlada, idealizada e controlada pelo medo. O medo infantil do lobo na floresta, de animais desconhecidos e perigosos, o medo do escuro, o medo de sons na noite. A descoberta da violência dentro dos membros da comunidade apresenta um problema sem solução: como nos proteger de nós mesmos.
O filme foi realizado em uma realidade histórica específica: 2001. Os atentados terroristas e o fortalecimento dos mecanismos de controle com a concordância da população amedrontada. Quanto maior o medo do outro gerado pelo poder mais fácil se torna abrir mão de qualquer coisa. O outro é desconhecido; diferente de nós; meio humano meio selvagem. Os valores do outro não são os nossos valores e esta condição meio humana facilita a compreensão da necessidade de eliminação deste outro.
Este outro estranho aos valores “humanos”, esta invenção deste outro não humano, que não merece direitos humanos por não ser humano é necessária para não enxergamos este outro em nós. A compreensão de nossa condição se torna logo uma ameaça à segurança. Não podemos nos enxergar no outro. Este “outro” estranho passa a ser a razão de toda nossa insegurança e a sua eliminação (impossível) se torna o meio de garantir a nossa segurança.
No século XXI este outro é para alguns o terrorista; para outros o ocidental; para alguns o monstro assassino; para outros a polícia. Lembrando de um trecho da letra da musica “Les uns et les autres” do filme “Retratos da Vida” de Claude Lelouch: “Se cada um é outro para um, raramente ele é um para o outro, apesar de todos os discursos e os pedidos de socorro, dos outros.”
Para refletirmos este século XXI na sua busca impossível por segurança e liberdade; realização de desejos nas demandas criadas pelo mercado e a castração do sonho, vamos buscar algumas reflexões a partir da história do século XIX.
O século XIX (e não só ele) foi o século do encarceramento, o afastamento físico dos não adaptados em estabelecimentos de internação coletiva como os presídios e os manicômios. Um exemplo típico de encobrimento do real.
O liberalismo econômico não saiu como esperado (por muitos). Da promessa de uma sociedade com oportunidade para todos, liberdade e igualdade, livre mercado e economia democratizada, o liberalismo se mostrou na prática o que a teoria não escondia mas o discurso disfarçava: radicalmente excludente. Se o direito liberal era para homens brancos e a democracia para homens brancos e ricos a economia não poderia oferecer oportunidades para todos. Nem igualdade perante a lei, nem oportunidade, nem tampouco liberdade foi o resultado do liberalismo no século XX, e as conquistas do voto igualitário e do voto feminino veio da ação dos partidos e sindicatos socialistas.
Desigualdade, exclusão e miséria, se não são os únicos fatores para a criminalidade são os fatores preponderantes no século XIX assim como nas sociedades e economias neoliberais contemporâneas. Não seria necessário cercar de muros as novas cidades burguesas, os bairros ricos, os condomínios fechados com segurança privada, se a desigualdade não fosse tanta e os valores tão individualistas. Uma sociedade fundada no individualismo, na competição e no egoísmo parece não ter muito futuro.
A equação que se formou no século XIX tem características interessantes que mostram a necessidade de encobrimento do real para aqueles que se encontram no poder. Vigia a época o voto censitário previsto na ordem constitucional liberal de boa parte dos paises ocidentais. Por este mecanismo só votava quem tivesse propriedade e renda anual superior a um determinado patamar e só poderia ser votado quem tivesse renda ainda maior. Ora, a equação é fácil. A economia denominada liberal com total ausência de intervenção estatal permitiu que poucos dominassem os mercados. Estes poucos votavam e podiam ser votados e logo estavam no poder do estado. Para eles, o sistema econômico que excluía a maioria e gerava exclusão trazendo criminalidade, exclusão, desigualdade, não era um problema mas a solução. Logo como fazer com a criminalidade: para reduzir substancialmente o problema era necessário mudar o sistema econômico o que lhes traria um enorme problema pois comprometeria sua crescente riqueza. Mas no poder do Estado estes conservadores, mesmo para manter seu poder deveriam controlar a criminalidade. Logo para resolver o problema sem criar problemas para o sistema que lhes beneficiava nada melhor que desconectar os dois: separar criminalidade do sistema econômico-social. Mesmo que se pudesse estabelecer no mundo real uma relação entre os dois, agora no discurso os dois estão separados. A criminalidade passa ser responsabilidade exclusiva dos criminosos: que conclusão obvia diriam alguns! Mas resta uma pergunta: porque os criminosos cometem crimes? Ora, porque nascem doentes ou maus ou então adoecem ou escolhem o caminho do mal. Afinal vivemos numa sociedade livre diriam os liberais e os conservadores. Logo para resolver o problema construímos presídios e manicômios, aumentamos as penas e os crimes, radicalizamos o tratamento e expandimos as patologias. Então gradualmente todos passam acreditar que solucionarão o problema da insegurança e criminalidade com presídios, muros, códigos, penas, manicômios, drogas legais, médicos e choques elétricos. Um problema semântico é ignorado: o controle passa a ser a solução. Mas como solucionar um problema com controle? O controle controla, logo se ele controla ele não soluciona mas simplesmente mantém a situação como está.
Este resumo de extrema simplicidade que acabo de fazer como um filme mudo em preto e branco se repete em pleno século XXI remasterizado, colorido artificialmente e com falsos diálogos científicos introduzidos com requintes de avanços biotecnológicos, pesquisas genéticas e outros espetáculos pirotécnicos que novamente buscam encobrir o real de uma parcela expressiva da classe média. A classe média existe ou é uma invenção terminológica para se referir aos trabalhadores que se sentem capitalistas, pessoas que dependem de seu trabalho para viver mas que acreditam firmemente pertencer a uma outra categoria social que não se enquadre no termo “trabalhador”. Será que alguns sujeitos de classe média se escondem de si mesmos diante do espelho? Ou, referindo-se a classe média como uma entidade, será que a “classe media” se esconde de si mesma diante do espelho? Antes de prosseguir uma outra frase: para ser de classe média é necessário acreditar ser de classe média antes de qualquer outra coisa. Classe média é um estado mental. Classe média é uma crença.
O que eu quis demonstrar é como a ideologia pode nos desviar a atenção. Desviar nosso olhar. Enquanto a bola esta na área adversária o goleiro de nosso time pode fazer qualquer coisa pois ninguém olha para ele. Logo ele nunca faz nada pois ninguém viu. Isto me faz lembrar o filme “O medo do goleiro diante do pênalti –Die angst des tormanns beim elfmeter”, do cineasta alemão Wim Wenders de 1972.


6- Adeus Lênin (Good Bye, Lênin!): O desejo ocultado é a liberdade representada no discurso do século XX.

7- A experiência (Das Experiment – 2001): Os condicionamentos do grupo. Identidade, identificação com o grupo. A nomeação do grupo como manipulação. A identidade múltipla e a destruição do sujeito.

8- O trem da vida: nomeação como instrumento de encobrimento do real.

A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif. Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga comentou para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da cinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.(16)
Badiou menciona que o anti-semitismo de Barre não mais é tolerado pela média da opinião publica francesa. Entretanto um outro tipo de anti-semitismo surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo mas debater a existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.(17)
Assim como ocorre com varias outras palavras mas de forma menos radical (liberdade e igualdade por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Badiou ressalta que o debate que envolve o anti-semitismo e a necessidade de sua erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de descriminação, perseguição, exclusão ou racismo. Existe uma compreensão no que diz respeito à palavra “judeu” e à comunidade que reclama este nome, que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos valores, superior a todos os demais. Não propriamente superior mas em um lugar diferente. Desta forma pode-se discutir qualquer forma de discriminação, mas quando se trata do “judeu” a questão é tratada como universal, indiscutível, seja no sentido de proteção seja no sentido de ataque. Da mesma forma, toda produção cultural, filosófica assim como as políticas de estado tomam esta conotação excepcional. Talvez nenhum outro nome tenha tido tal conotação, ou para Badiou, a força e a excepcionalidade do nome “judeu” só tenha tido semelhança com a sacralização do nome Jesus Cristo. Não há, entretanto, um medidor para esta finalidade. O fato é que o nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de identidade e foi especialmente sacralizado.
O nome “judeu” é um nome em excesso em relação aos nomes ordinários e o fato de ter sido um vitima incomparável se transmite não apenas aos descendentes mas a todos que cabem no predicado concernente, sejam chefes de estado, chefe militares, mesmo que oprimam os palestinos ou qualquer outro. Logo, a palavra “judeu” autoriza uma tolerância especial com a intolerância daqueles que a portam, ou, ao contrário, uma intolerância especial com os mesmos. Depende do lado que se está.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazista e fascistas) seja de sacrifício (como cristãos e judeus no passado e mulçumanos no presente), esta nomeação nos expões ao pior.
Esta mesma lógica se aplica a nomeação de um estado judeu. Primeiro, um estado democrático não pode ser vinculado a uma religião. Segundo, porque esta nomeação pode gerar privilégios. Uma democracia exige um estado indistinto do ponto de vista identitário.
Vários equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etec. Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do estado judeu aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também comprometidas com um discurso democrático, tolerarem praticas de tortura e assassinatos seletivos por parte do estado de Israel, por ser este estado um estado “judeu”.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados.
O filme “trem da vida” é um maravilhoso poema a pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um predicado “judeu” na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro de um outro grupo gera segregação. A introdução do tema identidade e identificação com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, como fator de segregação, sempre irracional. Como anulação do sujeito livre, com a anulação do nome próprio em nome de um nome do grupo.



9- Crash (2005) – Múltiplas identidades. A cidade cosmopolita perdida em conflitos de micro identidades.



Há uma forte diferença entre bandidos e mocinhos no imaginário social e uma ausência desta diferenciação nas práticas sociais diárias. A repressão policial diária é bandida, é expressamente fora do Direito embora muitas vezes dentro da lei. Ela desrespeita a privacidade, a dignidade, a repressão humilha pelo simples fato da condição social ou da cor do sujeito. O problema da idéia da ordem constitucional que pretende a democracia é que esta ordem não permite a polícia trabalhar e logo esta tem que agir fora do Direito, contra o Direito.
O filme “crash” mostra até onde as nomeações que tratamos anteriormente podem chegar em uma sociedade dita cosmopolita. Se o problema da nomeação de um “estado judeu” que procura unificar todos os grupos sociais, classes sociais, idades e outras diferenças sociais, e todos os nomes próprios, em uma única denominação, pode justificar privilégios e discriminações excepcionais, a fragmentação da sociedade em pequenos grupos de identidades, em pequenas nomeações pode gerar outros tipos de problemas. A sociedade cosmopolita de Los Angeles, Nova York, São Paulo, Londres e Paris não está além das nomeações ou dos predicados radicais. Ela está multi-fragmentada em diversos predicados radicais.
Negros, asiáticos, coreanos, chineses, árabes, turcos, persas, nordestinos, brancos, góticos, cabeças raspadas, nacionalistas, racistas, mexicanos, hispânicos, caucasianos e mais um monte de nomeações convivem no espaço “democrático” da cidade. São obrigados pela lei a se suportarem embora os que aplicam a lei pertençam a um grupo e vejam o mundo limitados pela compreensão do seu grupo. Até mesmo nos nomes próprios carregam a identidade do grupo a que pertencem mesmo sem querer pertencer: Shaniqua é um nome negro; Saddam é um nome iraquiano; Hassan é um nome muçulmano; Ezequiel é um nome evangélico; Pedro é um nome cristão; David é um nome Judeu: o nome próprio é abafado pelo nome do grupo. O nome próprio é condicionado pelo predicado radical. O filme mostra que é possível se libertar do nome grupal e resgatar algo universal, algo humano, além das nomeações de grupos, etnias, cores, países, religiões. Algo humano universal que resgate o nome próprio.
A aposta de Badiou(18) em um estado contemporâneo indistinto em sua configuração identitária pode não ser a superação das nomeações e da sacralização de determinados nomes. Este estado contemporâneo democrático plural que tenha um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse estes; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais talvez ainda não exista. O que o filme mostra é uma realidade fragmentada por nomes grupais sacralizados mas não elimina a esperança de um espaço livre de sacralizações.
Estes nomes grupais sacralizados podem gerar novas guerras tribais, pois a construção de uma identidade nacional é ultrapassada por diversas identidades grupais ou mesmo é construída justamente sobre o reforço destas identidades grupais. Isto se ressalta no caso estadunidense onde a identidade nacional é construída em parte, pelo menos nos espaços cosmopolitas das grandes cidades, sobre a idéia de uma democracia étnico-racial multi-identitária que se opõe a identidades nacionais intolerantes e uniformes. Neste nome comprido faltou a prática democrática. Pior quando se acredita poder fazer cumprir esta pretensa democracia étnica-racial multidentitária por meio da lei e logo do controle policial. A policia também é um grupo corporativo e logo preconceituoso que anula os sujeitos quando estes estão fardados, quando estão no meio do grupo. Este grupo que acredita simbolizar a própria lei se sente no direito muitas vezes de ignorar o Direito para se auto-preservar e preservar a imagem construída no grupo para o próprio grupo.
No filme prevalece a idéia da sobrevivência dos nomes próprios encobertos pelos nomes grupais. O dado humano universal sobrevive ao preconceito, as simplificações.


10- O triunfo da vontade (1934 – Triunph des Willens): a idéia de nação. Identidade ou identificação?

11- Gattaca (1997): a ilusão biológica. A revolução genética e o impossível encobrimento do espírito humano.

12- Cronicamente inviável: a pessoas que analisam a realidade adoecem mais de depressão e raiva.

13- Coisas belas e sujas – revelações

14- O senhor da Guerra (2005) – revelações

15- O jardineiro fiel (2005) – revelações

16- The insider – revelações

17- Tiros em Columbine: a ideologia do medo. O século XIX de novo.

18- Os educadores – edukators (2004): a ruptura é possível?


Diante de todo o processo de exclusão e dominação, alguns destes excluídos começam a enxergar o que estava encoberto. Não só excluídos, entretanto, são capazes de enxergar. Alguns incluídos também têm consciência do processo de dominação. Alguns manipulam este processo outros simplesmente tem consciência e se conformam ao aproveitar das recompensas do sistema. Como mudar tudo isto? Como revelar o que está encoberto aos acomodados? Será que estes acomodados querem deixar sua posição atual?
Alguns sinais importantes têm ocorrido no mundo contemporâneo que apontam uma possível transformação. O principal sinal é a proliferação de espaços reflexivos ou em outras palavras um maior número de organizações da sociedade civil em torno de idéias e interesses diversos. A dinamicidade destes espaços alternativos tem permitido uma maior discussão e reflexão assim como divulgação de novas perspectivas de mundo, de novas compreensões e de novas esperanças de transformação. Hoje existe toda uma estrutura de organização global alternativa que se expressa em fóruns sociais, aparatos de informação e redes de comunicação de movimentos sociais que tem influenciado pessoas e impulsionando movimentos sociais, coletivos e individuais os mais diversos.
O filme trata de um destes movimentos. O movimento de três jovens que acredita poder ser o estopim, a centelha que pode levar a movimentos maiores, a tomada de consciência e a coragem para a ação de outros grupos e pessoas.
A ação dos três desafiadores educadores apela para o estranhamento e a ameaça verbal. Ao invadir casas de pessoas ricas, os educadores mudam os objetos, os moveis de lugar, constroem monumentos à inutilidade do consumo do luxo, do desnecessário, do excessivo e deixam uma mensagem: seus dias de fartura estão acabando. Não roubam nada, apenas mostram o excesso ao fazer esculturas ou monumentos que reportam à acumulação do excesso, do desperdício que agride a falta da maioria.
O filme permite uma reflexão importante. É possível transformar criando um diálogo franco a partir da ameaça? Para criar condições de diálogo, para poderem ser ouvidos, para que possamos se ouvidos sobre o que não pode ser questionado temos que ameaçar? Historicamente nunca houve transformação sem vidros quebrados. Para transformar terminando com formas variadas de exploração, exclusão e dominação os grupos explorados, excluídos e dominados tiveram que se organizar e ameaçar. Tiveram que se fazer incômodos para serem ouvidos. Tiveram que quebrar vidros, afundar barcos, boicotar, gritar, paralisar, para serem respeitados e sua fala ser ouvida, para criar condições de igualdade de negociação. Para haver diálogo é necessário que as partes se considerem iguais em força: esta força pode significar conhecimentos, respeito, força bruta, ameaça real. Ao criar condições de ser ouvido batendo na mesa a continuidade da recusa em negociar por quem oprime, domina e explora pode significar rupturas. Foi assim com a revolução americana; a revolução francesa; a revolução russa, e muitas outras rupturas no decorrer da história.
A busca da construção de um Estado democrático e social de direito no século XX foi para alguns uma tentativa de estabelecimento de espaços dialógicos de igualdade entre as mais variadas formas de pensar; os diversos grupos sociais e de interesses; as diversas pessoas, que compareceriam nos espaços públicos em condição jurídica de igualdade. Entretanto a desigualdade econômica e a apropriação dos mecanismos de poder político e econômico têm comprometido seriamente esta pretensão. O filme também mostra esta colonização do Direito e do poder judiciário pelo sistema econômico.
Por fim o filme nos mostra uma descrença no dialogo social entre pessoas que tem interesses opostos. Há uma descrença na sinceridade deste dialogo uma vez que este não ocorre em nome apenas da razão de um sujeito diante de outro sujeito. Este diálogo vem acompanhado de diversos outros sentidos, emoções e interesses que envolvem as pessoas que se encontram dentro do sistema. O sistema seqüestra a pessoa e a envolve em uma rede de preocupações, prazeres, medos e desejos, rede esta que não pode ser desconsiderada no dialogo entre dois sujeitos que não se revelam em sua inteireza. O sujeito é mais do que o sistema que o aprisiona, mas por diversas razões este não consegue dialogar ignorando as razões do sistema. Medo, desejo, razão, tudo isto vais além da possibilidade concreta de diálogo entre duas pessoas.
As pessoas não estão definitivamente aprisionadas pelo seu entorno, pela sua história, pelos seus desejos, pela ideologia, mas estão fortemente comprometidas por tudo isto.
No final uma aposta maior. Uma ameaça maior, até que para que alguns não percam tudo e aceitem negociar alguma coisa.


19- V de vingança (V – Vendeta – 2005): a ruptura é possível.

20- Clube da luta (Fight Club): que se exploda!!!

21- 11 de setembro: apenas começou a explodir.



CITAÇÕES


1-Carlo Ginsburg menciona o estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isto nos leva a pensar porque exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são os seus como são contra os seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001.

2-Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e a partir do momento que é lido são atribuídos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir sentido, o que por sua vez significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas.

3-GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira, ob.cit. pg. 16. Nesta página Gisnsburg cita Chklovski que diz o seguinte a respeito do estranhamento: “Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, pra fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância.”

4-Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por cada condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com este objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar.

5- “...a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) “Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. “(Crundise, Capítulo sobre o capital) “Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade.” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

6- Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um ele necessário entre formas “invertida” de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. .” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

7- ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.

8- AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages. As reflexões e interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do texto do filósofio Giorgio Agambem.

9- Coisa aqui significa idéias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças, etc.

10- MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.

11- No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5
12- Nas páginas 8 e 9 do livro “El arbol do conoscimiente”os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8
13- Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

14- ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução – escritos de Lênin de 1917, Editora Boitempo, São Paulo, 2005, pag. 178.

15- Nas palavras de Zizek: “Este frágil equilíbrio foi perturbado; por quê? Pelo desejo, exatamente. O desjo era uma força que levava as pessoas a avançar – e chagar a um sistema em que a vasta maioria era definitivamente menos feliz. ... resumindo, felicidade pertence ao princípio do prazer, e o que a solpa é a insistência em um além do principio do prazer.” Os EUA são o exemplo da promessa de felicidade no consumo. Cada vez que se conquista um bem outro já se mostra disponível, A felicidade está sempre no próximo bem a ser consumido. E o apelo ao constante ir além do principio do prazer. ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Estado de Sitio, Boitempo editorial, São Paulo, 2003, Pág 78.

16- Comentamos no inicio do texto que um outro mecanismo de dominação e manipulação do real é a estratégia amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo fato particular. Slavoj Zizek no livro citado anteriormente (Plaidoyer em faveur de l’intolerance) menciona dois exemplos norte-americanos. Cita o caso, por exemplo da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o namorado e engravida e resolve abortar para não atrapalhar a sua carreira. Este é um caso que ocorre entre milhares, talvez milhões de outras situações. Entretanto o poder toma este caso como exemplo permanente para demonstrar o egoísmo que representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral pelo particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de manipulação para a dominação se torna mais fácil.

17- É fundamental ler Giorgio Agambem, especialmente o livro Homo Sacer, publicado pela editora UFMG, Belo Horizonte. Ler também o texto Profanation, do mesmo autor, publicado em Paris, 2005 pela editora Payot e Rivages. Neste ultimo texto o autor explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do livre uso das pessoas determinadas coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Através da profanação, do rompimento do rito com o mito, é possível devolver estas coisas, palavras, ao livre uso.

18- BADIOU, Alain. Circonstances, 3 – portées du mot “juif”.,Editions Lignes e manifeste, Paris, 2005,15.