domingo, 30 de dezembro de 2012

1284- Delírio - o poder se tornou tanto que os seus donos e seguidores deliram - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


DELÍRIO

por José Luiz Quadros de Magalhães

        Temos discutido, em vários textos, o significado diverso da palavra "ideologia", que ganha contornos distintos em diversos autores. Um dos primeiros a tratar o termo com um significado negativo de distorção e encobrimento foi Karl Marx. Marx utilizou inicialmente a palavra "inversão" conceito que o filósofo constrói em contraponto à ideia de "inversão" em Hegel. Para Hegel, "inversão" seria a passagem (ou conversão) do subjetivo para a objetivo e vice-versa: "o estado prussiano surge como autorrealização da Ideia[1], como o 'universal absoluto' que determina a sociedade civil, em lugar de ser por ela determinado."
        Para Marx, a fonte da inversão ideológica é uma inversão da própria realidade. Marx aceita inicialmente o principio básico de Feuerbach de que o ser humano cria a ideia de religião e de deus, e que a ideia de que deus criou o ser humano é uma "inversão". Marx, entretanto, vai muito além. Para Marx isto não é apenas uma ilusão ou uma alienação filosófica, isto é produto de uma "inversão" que está presente na realidade das relações de poder. A única maneira de eliminar este ocultamento, estas inversões, é, para Marx, a mudança da realidade social. Assim Marx afirma no seu texto "Critica da filosofia do direito de Hegel: introdução" que o estado e a sociedade criam, inventam, a religião, "que é uma consciência invertida do mundo porque o próprio estado e sociedade estão invertidos[2]. O mundo está de cabeça para baixo (sensação que se amplia a cada dia) e não basta a filosofia para desvirá-lo, é necessário a transformação da realidade social e econômica.
        Nos seus escritos Marx nos sugere uma ideologia negativa (a partir do conceito marxiano de inversão) enquanto distorção e encobrimento e no texto, "A ideologia alemã", podemos pensar em uma ideologia no sentido positivo, enquanto um sistema de ideias. Neste texto Marx chama a atenção sobre a impossibilidade de uma "ideologia positiva" (Marx não usa esta expressão isto sou eu) acabar com uma "ideologia negativa" (também não usa esta expressão - mas a ideia geral pode ser encontrada nos textos). A única forma de acabar com a ideologia no sentido negativo (inversão) é transformando a realidade invertida, ou melhor, revolucionando a realidade social e econômica. Esta é uma inspiração fundamental em Marx: uma filosofia engajada na transformação social.
        Convido o leitor a ler Marx, assim como ler um livro de Slavoj Zizek "Um mapa da ideologia", publicado no Brasil pela editora Contraponto, em 2010, no Rio de Janeiro. Leiam também os textos e vídeos sobre ideologia publicados no blog (www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspo.com).
        Compreendendo o processo ideológico de encobrimento uma questão se apresenta neste inicio de século. O problema contemporâneo está em uma radicalização do processo de alienação. Os discursos não mais guardam contato com qualquer traço do real. Como cantaria Cazuza, "suas ideias não correspondem aos fatos", e lembrando Zizek, as palavras não mais correspondem aos seus conceitos historicamente construídos e transformados, ou seja, se afastam do caminho histórico conceitual de seus significados. Citando Zizek: "a luta pela hegemonia ideológico-política é por consequência, sempre a luta pela apropriação dos termos 'espontaneamente' experimentados como 'apolíticos', como que transcendendo as clivagens políticas."[3]
        Não há mais uma preocupação mínima com qualquer coerência ou construção lógica do discurso ideológico. A ideologia (a distorção, alienação e encobrimento) se apresenta de forma pura, desavergonhada e brutal. As ações não se sustentam em argumentos. Estes resistem pouco e rapidamente se transformam em raiva, no rebaixamento do outro e na desqualificação do seu argumento.
        Um exemplo interessante se apresenta na Argentina, final de 2012: o jornal "O Clarin" detém mais de 250 licenças de rádio e televisão. Uma nova lei aprovada pela Câmara e Senado argentinos e sancionada pela presidenta da República, limita a propriedade dos meios de comunicação seguindo orientação da Unesco, o que permitirá que a pessoas possam ter acesso a mais meios, que representem interesses diversos, compreensões distintas, e assim possam formar livremente seu pensamento. Entretanto, os proprietários privados do "Clarin" defendem seu monopólio fundamentando seus argumentos na liberdade de expressão e na liberdade de consciência. Como¿ Como é possível alguém defender a liberdade de expressão, de imprensa e de consciência defendendo um monopólio, seja ele governamental ou privado? Como confundir o direito das pessoas, dos jornalistas, dos diversos grupos de interesses presentes em uma sociedade expressarem suas ideias com o fato (posto como direito) do exercício individual do proprietário ou proprietários de uma mídia, expressar suas convicções individuais em um meio monopolizado ou oligopolizado. Como é possível sustentar, que é liberdade de imprensa, o fato de um pequeno grupo de proprietários ocuparem 60% do espaço da mídia para dizer suas convicções, sua visão de mundo e defender seus interesses. Esta impossibilidade lógica se choca com a possibilidade de exercício de poder real, concreto, capaz de desestabilizar um governo democraticamente eleito.
        Este uso radical e brutal da ideologia (enquanto distorção) ultrapassa uma argumentação jurídica, política ou econômica: entramos no espaço das ciências "psi" (psicanálise, psicologia e psiquiatria). As pessoas no poder e mais um grupo de seguidores crentes estão DELIRANDO.
        É o comportamento de torcida de futebol aplicado à política.
        As pessoas que se encontram no poder, acumularam tanto poder que estão delirando. Os seus argumentos são delirantes tal o absurdo do poder que acumularam. E a torcida destes grupos deliram coletivamente, com o agravante que ainda defendem interesses que não são os seus, e mais, são contra os seus.
        No dicionário Aurélio encontramos no verbete para "delírio": "Distúrbio de julgamento devido a alteração global da consciência da realidade e que, em face de um raciocínio correto, não se modifica, ou pouco se modifica." O delírio ainda causa (e é fácil identificar os delirantes) "imoderada excitação do espírito; agitação, desvairamento".
       



[1] BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, pag. 184.
[2] BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, pag. 184.
[3] ZIZEK, Slavoj. Padoyaer en faveur de l'intolerance, Ed. Climats, Castelnau-le-Lez, 2004, pag.19.

Abaixo, artigo de Jonathan Cook

Internacional| 29/12/2012 | Copyleft 

O sistema político dos EUA sob comando de Rupert Murdoch

Uma conversa gravada mostra que, no primeiro semestre de 2011, Murdoch pediu a Roger Ailes, chefe da Fox News, que fosse ao Afeganistão persuadir o general David Petraeus, antigo comandante das forças militares norte-americanas, a concorrer à presidência como candidato do Partido Republicano nas eleições deste ano. Murdoch prometeu financiar a campanha de Petraeus e apoiar o general com o aparato midiático da Fox News. O caso é perturbador para a imprensa porque desmonta a fachada democrática da política norte-americana. O artigo é de Jonathan Cook.

Uma conversa gravada mostra que, no primeiro semestre de 2011, Murdoch pediu a Roger Ailes, chefe da Fox News, que fosse ao Afeganistão persuadir o general David Petraeus, antigo comandante das forças militares norte-americanas, a concorrer à presidência como candidato do Partido Republicano nas eleições deste ano. Murdoch prometeu financiar a campanha de Petraeus e apoiar o general com o aparato midiático da Fox News.


Os esforços de Murdoch não adiantaram porque Petraus não quis concorrer. “Diga a Ailes que se um dia eu concorrer”, diz Petraeus na gravação, “apesar de que não vou, mas se um dia eu concorrer a proposta será aceita”.


O caso de Petraeus é perturbador para a imprensa justamente porque desmonta a fachada democrática da política norte-americana, uma imagem construida cuidadosamente para que o eleitorado estadunidense se convença de que decide sobre o futuro político do país.


Bernstein está corretamente horrorizado não só com o ataque frontal à democracia mas com a atitude do Washington Post na publicação da matéria. O furo jornalístico foi enterrado na seção de Estilo do jornal e a editora do Post disse que a reportagem, apesar de “barulhenta”, não “justificaria uma primeira página”.


Alinhando-se à editora, o resto da grande mídia norte-americana ignorou ou menosprezou a reportagem.


Nós podemos assumir que Bernstein escreveu seu artigo sob pedido de Woodward, que assim demonstraria de forma encoberta o ultraje a que foi sujeito por seu jornal. A reportagem, com efeito, deveria causar um escândalo político. A dupla presumivelmente esperava que a história incitasse audiências no Congresso sobre o abuso de poder cometido por Murdoch, assim como aconteceu na Grã-Bretanha, onde investigações revelaram como o magnata controlava os políticos e a polícia britânicos.


Como observa Bernstein, “a corrupção por Murdoch de instituições democráticas fundamentais em ambos os lados do Atlântico é um dos casos de maior importância e alcance político e cultural dos últimos 30 anos, uma narrativa em curso sem igual.”


Bernstein só é incapaz de compreender porque os manda-chuvas da mídia não vêem as coisas como ele vê. Ele demonstra grande desalento perante “a falta de interesse da imprensa e dos políticos norte-americanos sobre o ocorrido. Não se sabe se o desinteresse é causado por medo do poderio de Murdoch e Ailes ou da pouca surpresa que traz a postura dos magnatas da mídia.”


Na verdade, nenhuma das explicações de Bernstein para tamanha falha é convincente.


Uma razão bastante mais provável para a aversão ao caso Ailes/Petraeus por parte da mídia norte-americana é que o caso oferece perigo à barreira construida pela mesma mídia que, com sucesso, oculta a cômoda relação entre as corporações (possuidoras da mídia) e os políticos do país.


O caso de Petraeus é perturbador para a imprensa justamente porque desmonta a fachada democrática da política norte-americana, uma imagem construida cuidadosamente para que o eleitorado estadunidense se convença de que decide o futuro político do país.


O caso revela a charada da disputa eleitoral. Poderosas elites manipulam o sistema com dinheiro e a mídia que eles comandam reduzem a escolha dos eleitores a dois candidatos quase idênticos. Esses candidatos sustentam as mesmas opiniões em 80% das questões. Mesmo as diferenças são resolvidas por trás dos panos pelas elites, seja por meio de lobistas, da mídia ou de Wall Street.


A reportagem de Woodward não prova que Murdoch ameaça a democracia. Ela revela a absoluta dominação do sistema político norte-americano pelas grandes corporações. Essas corporações controlam o que vemos e ouvimos e incluem, obviamente, os donos do Washington Post.


Triste é notar que os jornalistas da mídia corporativa são incapazes de enxergar além dos parâmetros que os donos da mídia impõem. E isso inclui mesmo os mais talentosos da categoria: Woodward e Bernstein.


(*) Jonathan Cook venceu o prêmio de jornalismo Martha Gellhorn em 2011. Seus dois últimos livros são sobre a Palestina. Seu novo website éhttp://www.jonathan-cook.net.


Tradução de André Cristi




quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

1283- Taxar os ricos: um conto de fadas animado


Economia| 22/12/2012 | Copyleft 

Taxar os ricos: Um conto de fadas animado

Escrito e dirigido por Fred Glass para a Federação de Professores da Califórnia, "Taxar os ricos: um conto de fadas animado" é um vídeo de 8 minutos sobre como chegamos a este momento de serviços públicos mal financiados e ampliando a desigualdade econômica. As coisas vão para baixo numa terra feliz e próspera após os ricos decidirem que não querem pagar mais impostos e dizerem às pessoas que não há alternativas.



Taxar os ricos: Um conto de fadas animado, é narrado por Ed Asner, com animação de Mike Konopacki. Escrito e dirigido por Fred Glass para a Federação de Professores da Califórnia. Um vídeo de 8 minutos sobre como chegamos a este momento de serviços públicos mal financiados e ampliando a desigualdade econômica. As coisas vão para baixo numa terra feliz e próspera após os ricos decidirem que não querem pagar mais impostos. Dizem às pessoas que não há alternativa, mas as pessoas não têm assim tanta certeza. Esta terra tem uma semelhança surpreendente com a nossa terra. Para mais informações, www.cft.org.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

1282- O candidato limpo, ou, "aquele dentre vós que está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


O candidato "limpo" ou 
sobre o perigoso discurso da pureza e outros perigos,

por José Luiz Quadros de Magalhães

          
            Como se não bastasse a aposta no direito penal para tudo resolver e a transformação do STF em um super poder que se apropriou indevidamente da Constituição, ainda assistimos a volta de uma outra assombração: o perigoso discurso da pureza.
            Acredito que posso começar citando a Biblia(1):
            "Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu-se e disse-lhes: aquele dentre vós que está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra."

            O que pode dizer Jesus nesta passagem? Aqueles que apontam o dedo acusando o outro não se vêm no espelho. Pior. Aqueles que apontam o dedo em direção ao outro, acusando-o de corrupção, de impureza, de mentira, não enxergam seus erros, não querem enxergar, fingem não enxergar, e o que pode ser ainda pior: creem firmemente que não têm pecados, que são puros. Estes que creem em sua pureza são os mais perigosos, são os que apedrejam e matam.
            A crença na pureza moral, na pureza racial ou qualquer outra pureza levou milhões, em diversos momentos da história, à morte e à tortura. Não há pior discurso do que o discurso da pureza. Não há pior atitude de uma pessoa do que a de se julgar puro.
            Quando assistimos uma propaganda oficial da Justiça Eleitoral, de uma bela senhora, afirmando que deseja candidatos "limpos", e as pessoas aceitam este discurso com muita tranquilidade, alguma coisa parece mesmo, que está fora de lugar. Entramos em uma estrada que não deveríamos entrar, e estamos indo longe demais nela.
            O pesquisador francês Jacques Sémelin escreveu o livro "Purificar e destruir"[7]. Trata-se de um importante estudo sobre massacres e genocídios. O Autor estuda três passagens trágicas, três genocídios: a "Shoah" judaica na segunda guerra mundial; o conflito e "limpeza" étnica na ex-Iugoslávia; o genocídio da população Tutsi de Ruanda. O livro se refere ainda aos genocídios armênio e cambojano.
            Neste livro, o Autor nos descreve, no decorrer de uma análise minuciosa, os passos dados em direção ao extermínio em massa. Podemos resumi-los nos seguintes:
            a) A política não mais enquanto razão mas como emoção. O espaço político deixa de ser um espaço racional de construção de consensos para ser um competição entre adversários que almejam o reconhecimento do seu melhor argumento;
            b) De adversários a inimigos. A superação da racionalidade dialógica para construção de consensos, superada pela competição de argumentos, tem como etapa seguinte a transformação destes competidores em inimigos. Não se trata mais, nem de busca de consensos racionais, nem de vitória do melhor argumento de competidores que buscam um "bem comum", mas de uma luta entre inimigos: ou está comigo ou está contra mim.
            c) O inimigo  entretanto tem a mesma estatura. Embora inimigos, respeitam-se. Qual o passo seguinte: o inimigo não será mais respeitado, mas rebaixado, inferiorizado. Alguma característica no inimigo impede, definitivamente, qualquer possibilidade de diálogo.
            d) Agora os passos que se seguem visam colocar este "inimigo" político em um esfera não humana. Assim o inimigo será animalizado. Estes passos dados pelo nazismo foram repetidos em outros genocídios e passaram a ser integrantes de "manuais" de propaganda eleitoral. A animalização dos judeus e sua representação com ratos foi a estratégia nazista na década de trinta.
            e) Depois da animalização vem a coisificação. Este é o momento do discurso religioso se infiltrar na política. Com o discurso religioso vem a busca da pureza. Agora não são mais adversários políticos; não apenas inimigos humanos; não mais, nem mesmo uma relação entre o humano o animalizado. O outro é coisificado pelo discurso do bem e do mal. Fulano é do bem, o inimigo é do mal. O discurso da pureza é um passo da catástrofe.
            f) Passo seguinte: disseminar o medo. Este inimigo do mal, coisificado nos ameaça. Ameaça nossa paz; nossa família, nossa propriedade. Estamos contra a parede.
          g) Agora é necessário o fato. Um episódio, em geral forjado (falso), desencadeia a violência. Na Alemanha, o assassinato de um diplomata alemão em Paris por um anarquista "judeu" desencadeia a barbarie. A noite dos cristais.
                h) Por fim o extermínio.
            O que acabo de relatar foram os passos em direção a violência extrema do projeto nazista. O que acabo de relatar pode ser encontrado em campanhas eleitorais em nosso país, hoje, sem que os passos finais sejam dados, mas com uma aproximação irresponsável e perigosa. O que acabo de relatar decorre do discurso na crença em uma pureza que não existe, e é muito bom que jamais exista. Os que se julgam puros (se julgam além da condição humana) são sempre aqueles que apedrejam.

             Conclusão, sempre provisória: Somos seres processuais, singulares, plurais e dinâmicos.           
      
      Uma lembrança: somos seres processuais e complexos, plurais. O que significa isto. Não podemos jamais nos deixar reduzir a um nome coletivo. Lembremos que a nomeação na terceira pessoa: nós x eles, ideia que já desenvolvemos em outros artigos e livros, é o passo para o genocídio, para a violência sem limites. A formula moderna repete-se à exaustão mudando os nomes coletivos: nós os bons x eles os maus; nós os espanhóis x eles os "índios"; nós o fiéis x eles os infiéis; nós os arianos x eles os judeus; nós os tutsis x eles os utus; e assim repetindo.
            Assim como não podemos reduzir um pessoa, ser complexo, em permanente processo de transformação, que é simultaneamente e historicamente uma grande variedade de identificações, a um nome coletivo, não podemos condenar ninguém a repetir, interminavelmente, um momento de sua vida. Não somos um fato, assim como não somos uma religião, uma nacionalidade, um time de futebol, uma profissão ou uma condição social. Ninguém é um "pobre" ou um "rico". Ninguém é só um "cristão" ou um "muçulmano"; ninguém é só um "homem" ou uma "mulher"; ninguém é só um "heterossexual" ou um "gay". Todos somos muitas identificações, muitos sonhos e medos, muitos desejos e crenças ao mesmo tempo. Somo plurais e complexos. A nomeações são simplificações que nos expõe ao pior.
            Assim, como não somos só cristãos, muçulmanos, judeus, homens, mulheres, gays, brasileiros, americanos, africanos, asiáticos, trabalhadores, desempregados, professores, alunos, vermelhos, azuis, liberais, comunistas, socialistas, conservadores, não somos, não podemos ser, de forma nenhuma, reduzidos a um momento, uma ação, ações, erros e acertos. Assim como não somos só isto e tudo isto, não somos também, para sempre honestos ou desonestos, corruptos ou santos, bons ou maus ou tudo isto ao mesmo tempo.
            Temos que ter sempre o direito de mudar, de aprender, de errar e acertar de novo.
            Termino com uma lembrança triste e ridícula: lembram do caso do Juiz que queria que todos no condomínio  em que morava o chamassem de "excelência". Triste redução. Talvez ele fosse juiz com seus filhos e sua mulher e dormisse e acordasse de terno e gravata.
           



[1] Professor da PUC-Minas, UFMG e FDSM. Mestre e Doutor em Direito. www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br
[2] ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
[3] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado - nota sobre aparelhos ideológicos do estado, Biblioteca de Ciências Sociais, editora Graal, 9 edição, Rio de Janeiro, 1985.
[4] BADIOU, Alain. A hipótese comunista, coleção estado de sítio, Editorial Boitempo, São Paulo, 2012.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir - história da violência nas prisões, 20 edição, Editora Vozes, Petrópolis, 1987.
[6] João 8:7.
[7] SEMELIN, Jacques. Purificar e destruir - usos políticos dos massacres e dos genocídios, Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009.

domingo, 23 de dezembro de 2012

1281- O direito invadir o espaço da ética é muito perigoso - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


 Ética X Direito.
por José Luiz Quadros de Magalhães


            O direito está ocupando o espaço da ética. Grande perigo. Esta é mais uma pontuação necessária para abordagem do tema "ética, cotidiano e corrupção". Vivemos em nosso país um fenômeno que se reproduz também em outros estados: a expansão do direito e a construção ideológica da crença no direito (especialmente o direito penal) para a solução de problemas recorrentes (já discutidos) de corrupção e violências. A leis se reproduzem como coelhos. Lei para punir penalmente as pessoas que dirigem após beberem álcool; lei para proibir a palmada; lei da ficha limpa para proibir candidatos "sujos" de se candidatarem; lei para proibir o tabaco; leis, leis e mais leis. O problema não é apenas o fato de que estas leis não funcionarão, é obvio, pelo que já discutimos anteriormente. O problema, também, não é o fato de que estas leis desviam a atenção dos reais problemas e fatos geradores da violência, exclusão e corrupção. Talvez, o maior problema seja a substituição da ética pelo direito. Vejamos.
            A busca por uma sociedade ética não é um desafio novo. Na modernidade, a grande pretensão de construção de um sociedade ética, que prescindisse do direito (direito penal incluído, óbvio), foi defendida por (alguns) anarquistas e por comunistas. A pretensão da construção de uma sociedade sem estado, sem direito, sem polícia, exército, governos, parlamentos, propriedade privada e qualquer outra forma de poder, de opressão e exclusão foi defendida pelas lutas de comunistas e anarquistas, que por caminhos distintos, acreditavam na possibilidade de construção de uma sociedade de mulheres e homens livres de qualquer forma de opressão. Esta liberdade seria conquistada após a construção pelo estado socialista (na perspectiva comunista), de um ser humano eticamente, moralmente e intelectualmente evoluído. Sem pretender discutir neste momento a "hipótese comunista"[4] ressaltamos a aposta na ética. Para viabilizar a hipótese comunista seria necessário construir seres humanos éticos. Nesta sociedade, as pessoas respeitariam o outro, seriam solidários, honestos, íntegros, não roubariam ou agrediriam, não por medo do Estado e do direito penal, não por medo da polícia e do sistema penitenciário (pois nada disto existiria mais), mas pelo fato de estarem convencidos de que respeitar o "outro", ser solidário e honesto, seria a única conduta correta e logo, possível, de ser adotada.
             Não é o objeto deste texto, como disse anteriormente, debater a hipótese comunista: será esta sociedade de pessoas éticas e conscientes possível¿ O que ressalto aqui é o fato da aposta na possibilidade e na busca e na luta de uma sociedade ética que não mais necessite do direito.
            Hoje ocorre o contrário! Hoje ocorre o oposto! Nossas sociedades contemporâneas apostam no direito como a solução de tudo, o que significa a falência da ética e da moral.
            Expliquemos.
            O direito, ainda necessário, e todo o seu aparato ideológico, punitivo e repressor pode ser necessário nas sociedades que conhecemos. Se no estado moderno, o direito serviu (e ainda serve em boa medida) para proteger a propriedade e os privilégios (direitos para alguns) de uma minoria de homens, brancos e proprietários (substituídos por proprietários diversos hoje), o direito, mais recentemente, também passou a cumprir um outro papel: proteger e garantir direitos para aqueles que foram sistematicamente excluídos do sistema social e econômico e estruturar formas e sistemas de participação política democrática, o que resultou no reconhecimento do direito à diferença, e mais recentemente, o direito à diversidade. Bem, o direito pode ser necessário, ainda, durante um tempo razoável (entendam o tempo razoável como quiserem).
            Portanto, os direitos fundamentais, especialmente o direito a diversidade, é uma importante conquista na luta pela superação de uma modernidade padronizadora e excludente.
            O problema reside no fato do ressuscitamento do direito penal como encobrimento e distração. E não só isto, o maior problema está na ampliação do direito penal: tudo passa a ser criminalizado. Todas as condutas não aceitas (não aceitas por quem¿) são agora objeto de punição, de criminalização. Presenciamos uma invasão radical do direito sobre o espaço que deveria permanecer com a ética (qual deve ser o espaço da ética). O resultado disto é a troca de condutas decorrentes do convencimento por condutas decorrentes do medo. Explico. Nos espaços éticos, as pessoas são levadas a agir de determinada maneira por estarem convencidas de que esta conduta é a conduta moralmente sustentável e eticamente correta. No campo do direito, as pessoas são levada a agir, não apenas (e talvez principalmente) por estarem convencidas, mas pela existência de uma sanção estatal, penal, que ameaça a paz, a liberdade e a integridade do infrator.
            Assim, quanto mais direito penal, mais se exige do estado a capacidade de vigiar e punir[5]. Uma pergunta salta diante de nossa percepção: e se o estado não conseguir vigiar e punir o suficiente para intimidar as pessoas a agirem como o estado (quem tem poder) deseja que estas pessoas ajam.
            Vejam então o resultante desta equação: o estado, por meio do direito chamou tudo para si. "Posso resolver tudo por meio do direito penal, do controle, da polícia e do sistema penitenciário" dizem os donos do poder. Diz ainda o "estado": "posso acabar com a corrupção punindo e controlando os corruptos". Entretanto, alguém, timidamente, no fundo da sala levanta a mão e faz a seguinte pergunta: se o estado absorveu toda a ética, se tudo passou a depender de um estado que tudo controla, tudo vê e a todos pune, se algum dia este estado não conseguir mais controlar, ver e punir, o que restará, se toda a ética foi reduzida ao direito penal¿
            Não restará nada. Se as pessoas não mais agem por convencimento racional (ético) mas sim por coação, quando a coação nos anular ou não mais funcionar, não sobrará muita coisa além do caos.
            Não, o direito penal não solucionará a corrupção, e o triste espetáculo que assistimos no STF ainda comprometerá o que o direito nos ofereceu de muito bom: respeito aos direitos fundamentais conquistados por meio de muita luta.

1280- O que é uma sociedade ética? Não é a sociedade do STF. Coluna do professor Jose Luiz Quadros de Magalhães


Quem diz o que é ético?
por José Luiz Quadros de Magalhães


                O que é uma sociedade ética? Uma sociedade ética é uma sociedade que acredita que os valores que sustentam suas relações podem ser incorporados por todos: as pessoas agirão eticamente por que acreditam que a conduta ética é o melhor caminho e não por que têm medo do direito penal, do Joaquim Barbosa, do aparato estatal. Respeito o outro por que estou convencido que este é o melhor caminho e não porque tenho medo da repressão.
            Um pergunta necessária: Quem diz o que é direito, o que é justo, o que é legal, o que é normal, o que é crime¿ O que é crime em uma sociedade pode não ser crime em outra sociedade, o que é crime em um momento histórico pode não ser crime em outro momento. Crime é um conceito histórico, como são conceitos históricos "justiça"; "direito"; "normalidade" e "anormalidade".
            Quem diz o que é normal. Ora, a resposta é fácil de ser encontrada: quem tem poder para dizer. E quem tem poder para dizer¿ Ainda hoje, tem poder para dizer, quem detém o controle do poder econômico, do poder do estado, quem controla os aparelhos ideológicos e repressivos do Estado moderno. Será que existe alguma conexão, em alguns países, o fato do crime de usura (cobrar juros altos) não ser mais crime com o fato dos recursos para financiamento da campanha eleitoral vir em grande medida dos Bancos¿ Será que podemos relacionar o fato dos parlamentares de algum país, descriminalizarem a usura, com o fato das campanhas eleitorais serem financiadas por banqueiros¿ Esta afirmação não se relaciona com nenhum fato específico. Convém entretanto pesquisar a respeito. Isto é somente uma hipótese para reflexão.
            Uma reforma estrutural no sistema político; a adoção do financiamento público de campanha; a proibição de reeleição; estas e outras medidas poderiam ajudar no combate à corrupção. Poderíamos dizer que seria um passo importante, mas ainda não chegaríamos ao núcleo do problema. Trata-se do inicio de um reforma estrutural do sistema político mas que ainda necessita de transformações nas estruturas sociais, culturais e econômicas que geram a corrupção. Lembremos o conceito inicialmente trabalhado. Impossível resolver a violência subjetiva sem eliminar a violência objetiva e simbólica. O mesmo vale para a corrupção: impossível resolver a corrupção subjetiva sem a eliminação da corrupção objetiva (estrutural) e simbólica, permanentemente presentes em uma sociedade fundada sobre valores egoístas, materialistas e competitivos. Impossível eliminar a corrupção quando esta é incorporada como valor social e legalizada em diversos aspectos.
            Uma pergunta: e se o parlamento fosse integrado por pessoas corruptas que transformassem em lei práticas corruptas. Em outras palavras: e se legalizassem a corrupção como legalizaram a usura¿
            O conceito de ética e de corrupção deve ser uma construção conjunta, livre, dialógica, consensual em uma sociedade livre das engrenagens corruptas presentes nas estruturas sociais, econômicas e políticas modernas e fortemente impregnadas nos elementos simbólicos das representações de mundo presentes em nossos cotidianos. Em outras palavras: acabar com a corrupção exige compreender as estruturas objetivas e simbólicas da sociedade capitalista construída na modernidade e eliminá-las. Sem isto ficaremos permanentemente repetindo políticas públicas pontuais reapresentadas periodicamente com nova embalagem, políticas estas que não funcionaram no passado e não funcionarão no futuro.