quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

957- Artigo de Tarso Genro - Explorando os limites de uma esquerda reformada


Explorando os limites de uma esquerda reformada

TARSO GENRO

A esquerda, agora, precisa derrotar a direita - além das derrotas eleitorais que já lhe infringiu - no terreno das ideias. Isso significa salvar a democracia, dar efetividade às promessas de justiça e igualdade, que estão no âmago das constituições modernas. No atual período histórico, a democracia política, que era a cortesã escondida do socialismo, passa ser sua única companheira. Democracia e socialismo estão fundidos no programa de direitos e nas oportunidades de luta abertas firmemente pelas constituições democráticas. O artigo é de Tarso Genro.

Zygmunt Bauman, na primeira carta do seu livro recentemente publicado no Brasil, "44 cartas do mundo líquido moderno" (Zahar, 2011, 226 pgs.), faz duas perguntas e apresenta uma conclusão provisória: "Como filtrar as notícias que importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia de opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos falta uma máquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de mentiras, ilusões, refugo e lixo."

A pergunta de Bauman tem tudo a ver com a impotência das esquerdas, principalmente nos países capitalistas mais desenvolvidos, para dar respostas a uma crise que vinha sendo prevista por alguns economistas, há mais de dez anos. Vê-se que esta, depois de revelada, apresenta características diferentes, sociais e econômicas, das anteriores. Tanto daquelas do fim do Século XIX, na Europa e na Rússia, como daquelas que ensejaram a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, entremeadas pela crise aguda de 1929.

A compreensão destas diferenças é o que permitirá uma renovação do ideário e da estratégia da esquerda, em escala mundial, que atualmente se encontra em recesso conservador, como é caso da social-democracia. Uma outra parte da esquerda está fragmentada em milhares de pequenos grupos de idealistas, com causas confusas ou não raras vezes meramente corporativas.

Ambos os agrupamentos de esquerda identificam-se por estarem afastados dos cenários políticos onde se travam as batalhas pelos rumos da história: os cenários dos movimentos sociais de massas em defesa dos direitos prometidos pelas constituições modernas (teto, lazer, educação, informação livre, inclusão na sociedade de classes de maneira formal); e os cenários das disputas ideológicas com o projeto neoliberal, no âmbito da luta política democrática. A crise de personalidade da social democracia é, por outro lado, também uma crise da sua relevância na luta para ocupar governos e governar com coerência programática.

Suponho que as diferenças significativas para uma estratégia de esquerda, são aquelas que marcam os cenários, tanto nos países do centro do capitalismo como nos países "emergentes": primeiro, a rapidez com que as crises contaminam o cenário global é a mesma rapidez - com fundamento nas mesmas tecnologias informacionais - que permite a manipulação dos seus efeitos e a criação de hegemonias artificiais, para a universalização dos "remédios" anticrise; segundo, os trabalhadores do setor público e os trabalhadores assalariados de boa renda ou renda razoável, estão separados dos pobres das periferias, dos imigrantes, dos favelados criminalizados, desempregados, intermitentes ou precários. Estes constituem "ameaças", originárias de quem está excluído e cujas demandas, se aceitas pelos governos, podem exigir repartição de benefícios sociais e disputa pelos empregos dos que estão protegidos na formalidade.

Finalmente, uma terceira diferença substancial: as representações parlamentares dos partidos de esquerda livraram-se, em regra, daquela posição clássica de mera denúncia do "parlamento burguês". Substituíram, porém, esta ideologia da destruição do Estado por uma ideologia que faz, em regra, das bancadas de esquerda, mais uma soma de posições corporativas do mundo do trabalho ou mesmo de setores empresariais, do que uma síntese programática em defesa de um padrão desenvolvimento alternativo e de um novo conteúdo democrático para a república. Neste sentido, as delegações parlamentares de esquerda aproximam-se, perigosamente, da prática tradicional dos partidos cujo sentido é perpetuar uma burocracia parlamentar-profissional, alheia a princípios programáticos.

As transformações do capitalismo, que "cindiram" o campo dos assalariados e dos pobres, em geral, unificaram os "de cima, a partir da força coercitiva do capital financeiro e da ciranda especulativa. Ao mesmo tempo, estas transformações e a necessidade de manejo da dívida pública de maneira "responsável" aproximaram do estado, em geral, os grandes grupos empresariais de comunicação e os grandes oligopólios privados.

Os estados, premidos pela dívida, e as corporações de empresas em geral (donas ou reféns dos bancos) constituem hoje (unidos todos pelas algemas da dívida pública) um "estado ampliado". Por isso mesmo é, também, um estado que vem crescentemente renunciando as suas funções públicas originárias, inclusive aquelas de dar sustento, com juros subsidiados e aportes de infraestrutura, aos investimentos do setores produtivos estratégicos para o projeto nacional. Aqui, a lógica da globalização financeira e da dívida fala mais alto do que a ideia de nação, seja do ponto de vista do controle das riquezas naturais no território, seja do ponto da vista da formação de uma comunidade de destino que institui o "ethos" da nação.

O exemplo grego é emblemático. Não só no que se refere à "revogação" do referendo, feita pelo Banco Central Europeu, mas também no que refere às distintas reações políticas do mundo do trabalho, com suas diversas hierarquias públicas e privadas, para contestar o sacrifício das novas reformas.

Os trabalhadores, o povo grego em geral, os seus empresários nacionais, os seus setores médios empobrecidos, os seus agricultores, não apresentaram um programa alternativo de reformas, que implicasse numa nova relação com a União Européia. Não se uniram por uma saída alternativa para crise. Apenas "somaram" reivindicações de diversas categorias, públicas e privadas, de aposentados e pensionistas, de setores da indústria, sem compor um todo coerente em defesa de um novo modo de integração européia e de um novo estatuto de força para a comunidade política de esquerda, no âmbito da democracia, contra as tecnocracias financeiras. Os partidos que poderiam fazer isso, ou foram impotentes e fragmentários, ou foram coniventes ou omissos. Lembremos o que ocorreu na Grécia, na Espanha, na Itália, em Portugal...

Ao contrário do que ocorreu em outros períodos da História, nos quais os debaixo "pagavam" as crises com o desemprego e a recessão (na "destruição criativa" de que nos falava Marx), mas cobravam avanços sociais e, no mínimo, compartilhamento nas decisões de estado, no atual período -em cada crise- a esquerda sai mais enfraquecida. Uma parte dela já adotara os valores de uma desigualdade que seria modernizante e que, presumidamente, traria automaticamente melhorias para todos. A outra parte não construiu um programa de respostas, que instituísse uma nova correlação de forças política no plano interno (senão uma nova hegemonia), e ao mesmo tempo protegesse ou pelos menos sustentasse os direitos sociais já conquistados. A primeira parte da esquerda pulou o muro ou ficou encima dele e a segunda fez bravatas corporativas ou não tinha o que dizer.

Uma esquerda reformada não pode sair da tradição socialista, que, no atual período, significa concretamente opor a defesa dos direitos ao sucateamento dos direitos. Significa defender a globalização dos direitos sociais em conjunto com a globalização do capital. Defender a organização do consumo sustentável, combinada com a regulação social do mercado. Significa defender a solidariedade aos ex-países coloniais e a sua gente imigrada, opondo-se ao racismo e à xenofobia. Significa defender a estabilidade da democracia parlamentar e das instituições republicanas, combinadas com a participação direta e virtual da cidadania. Uma esquerda renovada defenderá políticas de desenvolvimento regional que partam da valorização da bases produtivas locais e da valorização das suas respectivas culturas. A esquerda renovada deve, enfim, repor no discurso político e nas ações de governo, a agenda do combate às desigualdades, tão cara à tradição socialista, social-democrata ou meramente republicano-democrática, que o neoliberalismo conseguiu arquivar.

O grande Giovanni Arrighi, falecido em 2009, chegou a ter esperança num mundo "não-hegemônico", cessados os efeitos da crise, em função da emergência da China e da policentralidade mais expressiva, que fatalmente adquiriria o capitalismo no período pós-crise. Tal mundo não se confirmou, lamentavelmente, mas as diferenças sul-norte, hoje, tem novas características políticas. As experiências latino-americanas de não aceitar passivamente as cartilhas neoliberais, embora as campanhas difamatórias contra todos os governos que se opuseram ao "caminho único", abrem novas perspectivas para o discurso e para as práticas de governo da esquerda.

A esquerda, agora, precisa derrotar a direita - além das derrotas eleitorais que já lhe infringiu - no terreno das ideias, no terreno da cultura política. Isso significa salvar a democracia, com um programa aplicável e realista cujo limite, ao mesmo tempo radical e amplo, é dar efetividade às promessas de justiça e igualdade, que estão no âmago das constituições modernas, tão duramente conquistadas ao longo de duzentos anos de lutas.

A derrota da democracia pela manipulação da informação, pela falta de crença popular na efetividade dos direitos que modernamente lhe caracteriza, pela destruição da esfera da política com a desmoralização de todos os partidos e das práticas de gestão democrática, seria a derrota final da idéia do socialismo. A partir daí só poderá sobrevir a anomia e a barbárie. Quem precisa, hoje, apelar para práticas clandestinas, nos obscuros porões das agências de risco, é a direita neoliberal e os seus servos na tecnocracia dos partidos conservadores.

No atual período histórico, finalmente, a democracia política, que era a cortesã escondida do socialismo, passa ser sua única companheira. Democracia e socialismo estão fundidos no programa de direitos e nas oportunidades de luta abertas firmemente pelas constituições democráticas.

(*) Governador do Rio Grande do Sul

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

955- Uma belíssima mensagem de um futuro novo - Ricardo Rabinovich-Berkman

COM A AUTORIZAÇÃO DO MEU QUERIDO AMIGO RICARDO RABINOVICH-BERKMAN TRANSCREVO A BELÍSSIMA MENSAGEM DE NATAL QUE RECEBI E GOSTARIA DE COMPARTILHAR COM MEUS AMIGOS:


Em 31/12/2011 19:53, Ricardo Rabinovich-Berkman 


Querid@ Amig@:

Termina otra órbita terrestre,

hemos compartido un viaje más,

pasajeros de nuestra nave común,

a través del espacio y del tiempo. Es,

creo, siempre éste un momento adecuado,

quizás el más idóneo de todos, para reflexionar.

El año 2011 termina bastante complicado.

El calentamiento de la Tierra parece imparable.

Vengo de pasar unos días en unos hermosos bosques,

en la Provincia de Buenos Aires, donde se acaba el agua.

Durante décadas, la obtuvieron de las napas subterráneas.

Esas napas se han secado. Es necesario cavar muy profundo,

insólitamente hondo, para poder hallar agua. Y el calor aumenta.

En el Perú, de donde he regresado pocas semanas atrás,

me contaban cómo los glaciares se han reducido, en forma dramática.

Lo mismo está sucediendo en la Patagonia, de ambos lados.

En Colombia,

la intensidad de las lluvias está causando estragos.

Brasil tuvo otro año de catástrofes, con incendios e inundaciones.

Y son apenas ejemplos, de una lista interminable. En mis viajes,

últimamente, la frase que me canso de escuchar es:

“Esto aquí nunca antes había sucedido”.

El Planeta entero se rebela, herido de muerte por la codicia capitalista,

y las corporaciones, con sus lobbies nefastos, vetan toda iniciativa.

Las emisiones no se reducen, aumenta la energía convencional,

los vuelos aéreos son cada vez más, nada se está controlando.

Como una raza de idiotas, la Humanidad marcha al suicidio.

Las enfermedades asociadas con el daño al medio ambiente,

y con la contaminación, aumentan. Sobre todo, el cáncer, ese flagelo,

el mismo que hace diez años me robó a mi querido vástago adolescente.

Es notable cómo las dolencias oncológicas crecen en los países “pobres”.

Simbólicamente, los Presidentes Lugo, Lula, Dilma, Chávez, y ahora,

también Cristina, han padecido o padecen cáncer.

¿No es un clarísimo llamado de advertencia?

Dicen que los mayas habían anunciado que el año próximo,

2012, sería el del fin de nuestra pobre especie (o sea, del Mundo).

Debo aclarar ante todo que no creo en las profecías, ni de los mayas,

ni ninguna otra, incluidas (con perdón y con respeto) las del Apocalipsis.

Pero que los seres humanos estamos haciendo todo lo posible, con ganas,

para destruir la Tierra cuanto antes, en lo que a nosotros,

como conjunto, cabe, no tengo la más mínima duda.

Permítaseme mezclar a los mayas con Marx

(ya alguien lo ha hecho, un cierto Subcomandante Marcos)

y recordar que el barbudo prusiano formuló la “Teoría del Derrumbe”,

al que a su juicio estaba condenado el modo de producción capitalista.

Bien, parece que Marx se quedó corto: lo que se está derrumbando,

no es sólo el propio capitalismo, sino el mundo entero…

Y siguiendo con Marx,

así como él sostuvo, en sus Tesis sobre Feuerbach,

que “los filósofos no han hecho más que interpretar, de diversos modos,

el mundo, pero de lo que se trata es de transformarlo”, pienso que ha llegado,

hoy, la hora de que, en lugar de desear y desearnos un feliz año nuevo,

pongamos toda la energía, toda la fuerza, para hacerlo,

para construirlo nosotros.

Desde las Universidades, desde los Tribunales, desde los Parlamentos.

Desde nuestros trabajos, sean los que fueren. Desde el lugar, en fin,

que nos haya cabido en suerte en la vida. Con desearlo solamente,

aunque es muy lindo, no ganamos nada. Tenemos que trabajar,

derrotar a la cultura del consumo, de las mega-corporaciones,

del ansia de lucro y de poder por sobre todas las cosas,

Y HACER UN FELIZ AÑO Y UN FUTURO NUEVO.

Mi deseo, pues, querid@ amig@,

no es sólo que el destino te traiga toda la felicidad.

Eso te lo auguro, desde ya, y con todo mi corazón, claro.

Pero mi deseo es que cada uno de nosotros, nuestras familias,

la Humanidad entera, CONSTRUYAMOS, juntos,

un magnífico futuro para TODOS,

empezando desde 2012.

¡Que así sea!

Un enorme abrazo,

Ricardo

domingo, 1 de janeiro de 2012

954- PODER MUNICIPAL 14 - Autonomia Universitária

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp. 109-112.

11.1 A autonomia das universidades
O tema é tratado com precisão e clareza no livro da Profes­sora Nina Ranieri, Autonomia Universitária, publicado pela Edusp, ao qual remetemos o leitor para conhecimento do tema de forma aprofundada.[1] O livro faz uma análise histórica da evolução da autonomia das universidades, estuda o conceito de auto­nomia, levanta toda a legislão brasileira sobre o assunto, interpretando a Constituição brasileira de 1988 e conclui pela autoaplicabilidades do art. 207, com o que concordamos.
A proposta de regulamentação da autonomia das universi­dades por lei orgânica das universidades, feita pelo Colégio de Procuradores-Gerais das IFES, parte do pressuposto de que a autonomia das universidades, assim como a autonomia conferida ao Ministério Público, necessariamente desvincula essas institui­ções do governo, assim como de qualquer dos Poderes da União, neste caso específico, ou dos Estados e Municípios, 'se nesta esfera se construir a autonomia universitária.
A desvinculação do governo é obvia, pois, ao considerar­mos as autonomias constitucionais das Universidades e do Minis­tério Público, como de garantia do exercício e de continuidade do processo democrático, tais instituições, cada uma cumprindo a sua função específica, devem ter liberdade de organização e de gestão, principalmente de gestão financeira, para garantir efeti­vamente a democracia contra intervenções indevidas de gover­nos autoritários, que ganham na América Latina, hoje, contornos bem mais sofisticados que anteriormente, porque construídos sobre uma aparente capa democrática de eleições periódicas.
Dessa forma, o Ministério Público deve, com autonomia, fiscalizar o respeito e o cumprimento das leis e da Constituição pelos Estados e seus vários órgãos da administração direta, indi­reta e fundacional, fiscalizando também a atuação e o respeito ao ordenamento jurídico por parte dos Poderes Judiciário e Legisla­tivo. Estas são as atuais funções constitucionais desse importante órgão, que na Constituição de 1988 transformou-se em um guardião da cidadania, deixando de ter definitivamente aquela feição de órgão que advoga pelo governo. Essa função nem mesmo a Advocacia Geral da União pode ter, pois sua função constitucional é defender os interesses do Estado, observando o ordenamento constitucional vigente, não podendo ser utilizada para prejudicar os cidadãos em nome de interesses governamen­tais, pois não são os advogados da União, advogados dos gover­nantes. A utilização do processo como mecanismo de simples retardamento do acesso das pessoas ao seu direito, deve ser ação repelida com veemência pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, com punição dos responsáveis.
Dentro do mesmo conceito de garantia democrática, mas obviamente nas suas funções específicas, as universidades recebe­ram da Constituição de 1988 autonomia financeira, administrativa e didático-científica, sendo este dispositivo vigente e aplicável.
Entretanto, na prática não vem sendo respeitado pelo go­verno, através do seu Ministério da Educação e do Desporto, e o Ministério de Administração e Reforma do Estado, que na gestão do Ministro Bresser Pereira, no ano de 1995, cometeu as mais variadas ilegalidades, utilizando sistemas centralizados de com­putação, o já mencionado SIAPE, para controlar e cortar direitos dos servidores das universidades. Fatos importantes, que aponta­ram para a utilização da máquina estatal de forma autoritária, ocorreram naquele ano como já mencionado, onde o governo, simplesmente, ignorou claro dispositivo constitucional, como o da autonomia universitária.
Esses fatos mostram a grande distância que separa a Cons­tituição escrita do Brasil, da sua Constituição real.
Por momentos podemos visualizar vários textos constitu­cionais no Brasil. Convivendo, lado a lado, temos a Constituição para o governo, que, distante do Texto de 1988, permite ações governamentais constantemente não democráticas, a Constituição para o Poder Judiciário que muitas vezes prorroga uma importante interpretação constitucional para o momento adequado, fazendo uni processo de mutação do Texto, que por vezes atende ao inte­resse público e por vezes ao interesse do governo, e uma dura Constituição real para a maior parte da população que, ao contrário do que prescreve o Texto escrito e interpretado pelos juristas, não tem direito à saúde, à educação, ao trabalho, à justa remuneração e a outros direitos elencados pelo constitucionalismo atual.
Por esse motivo, as universidades federais, além de defen­derem publicamente a autoaplicabilidade do art. 207, diante da impossibilidade fática do exercício de sua autonomia, passaram a trabalhar projeto de autonomia por meio de uma lei complementar, que a exemplo do Ministério Público estabeleceria as bases do funcionamento dessas instituições numa lei orgânica das univer­sidades.
Entendendo serem as universidades brasileiras as pri­meiras instituições atingidas quando da restrição à democra­cia ou à evolução do seu permanente processo, elas querem assegurar o seu importante papel de garantidoras da produção de saber plural.
A proposta de lei orgânica é importante para ilustrar e fundamentar a idéia que ora advogamos, não apenas para as universidades federais, mas para todo o ensino público de pri­meiro, segundo e terceiro graus, na União, nos Estados e nos Municípios, geridos por autonomias constitucionais que os desvinculem do governo.
Isto porque o ensino e a educação pública são básicos e essenciais para a democracia. São direitos que não podem estar vinculados à vontade de governantes e a políticas que os valorize ou desvalorize, e muito menos a promessas de cunho meramente eleitoral. Não se pode prometer que no governo, em certo momen­to, será permitido respirar ou comer, assim como não se pode prometer que no mesmo governo será oferecida educação ou saúde. Educação e saúde não podem mais ser políticas de governos, mas sim políticas estatais autogeridas por autonomias desvinculadas do governo e controladas diretamente pela população, que usufrui dos seus serviços públicos, através da figura de um ombudsman, ou um novo ouvidor, órgão com capacidade de postular a mudança de composição e de gestão das referidas autonomias.
A proposta de regulamentação da autonomia das universidades, sugere a criação de um órgão congregador das Instituições Federais de Ensino Superior, que irá coordenar as políticas educacionais, a repartição do recurso global recebido para o ensino superior entre as IFES, recurso global recebido que deverá estar vinculado à garantia de um valor mínimo estabelecido em relação à receita da União, uma vez que o funcionamento do ensino superior, básico que é para a democracia, não pode estar sujeito às negociações políticas no parlamento sem nenhuma garantia.
Quanto à organização do funcionamento das universida­des, esta será feita por seus próprios regimentos internos e estatu­tos, que independerão de aprovação do MEC para serem aceitos como normas jurídicas válidas. É bom ressaltar que os limites de normatização do regimento e do estatuto das Instituições de Ensino Superior são os dispositivos da Constituição Federal, suas regras e princípios, não podendo nenhuma norma universi­tária conter dispositivos que contrariem os princípios democráti­cos que a instituição representa.
Esse modelo que se constrói na realidade brasileira, sustentado por mandamento constitucional, pode ser o ponto de partida para a construção de toda uma realidade educacional autônoma em todas as esferas da federação, controladas pelo Ministério Público, pela população, por intermédio das ouvidorias, e nas suas contas, pela população com o remédio processual da ação popular e através dos Tribunais de Contas com estrutura que lhes garanta a necessária autonomia em rela­ção os poderes e órgãos que fiscaliza.


[1] 58 RANIERI, Nina. Autonomia universitária. São Paulo: Edusp, 1994; SOU­ZA, Paulo Renato de. Autonomia universitária - Iniciativa e Debate. São Paulo: Campinas, 1989; FERNANDEZ, Tomás Ramon. La autonomia universitária: ambite y limites. Madrid: Civitas, 1982; DURHAM, Eunice Ribeiro. Os desafios da autonomia universitária. São Paulo: Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP, Documento de Trabalho n. 2189; ESCRIBANO, Francisco de Borja Lopez-Jurado. La autonomía de las universidades como derecho fundamental: la construción del Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1991; DURHAM, Eunice Ribeiro. Os desafios da autonomia universitária. São Paulo: Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP, 1989.

952- PODER MUNICIPAL 13 - OS DIREITOS À EDUCAÇÃO E À SAÚDE COMO DIREITOS DEMOCRÁTICOS AUTOGERIDOS POR AUTONOMIAS CONSTITUCIONAIS

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, 1997, Belo Horizonte, pp. 107-108.

11 OS DIREITOS À EDUCAÇÃO E À SAÚDE COMO DIREITOS DEMOCRÁTICOS AUTOGERIDOS POR AUTONOMIAS CONSTITUCIONAIS
A nova teoria que tentamos estabelecer dos direitos funda­mentais, ou dos direitos humanos, na perspectiva constitucional, partindo da teoria da indivisibilidade dos direitos humanos, leva­-nos a propor tratamento diferenciado dos direitos fundamentais à saúde e à educação, direitos que, como vimos, são essenciais à existência e continuidade do processo democrático nas comple­xas sociedades contemporâneas.
Esses direitos são garantias do exercio da democracia e como tal devem estar desvinculados do governo, seja em que nível for, devendo ser geridos por autonomias constitucionais autogestionárias.
A ideia não é totalmente nova, pelo menos no que se refere às universidades, pois remonta às suas origens no século XII e XIII, sendo consagrada na legislação brasileira desde 1917 e garantida no Texto Constitucional no art. 207, que mantém a autonomia das universidades como verdadeira garantia de per­manência e evolução do processo democrático, uma vez que têm a função de produzir e divulgar o conhecimento nas suas mais variadas perspectivas, de forma livre e plural.
Aliás, esse é o sentido originário da autonomia das univer­sidades: desvincular a produção e divulgação dos saberes dos gover­nos e dos “mercados”, que podem utili-los no sentido de manutenção do poder e de limitação de expressão cientifica, restrigindo sua produção a determinados interesses de grupos no poder, interesses esses que podem ser vinculados a interesses econômicos, condicionando a produção cientifica às necessidades criadas por um determinado modelo econômico específico, desprezando, através da ideologia oficial, toda produção que contrarie ou não seja útil a esse mode­lo (ideologia aí empregada enquanto distorção da realidade para sua adequação ao modelo autoritariamente imposto por aqueles que se encontram no poder, público ou privado)[1]. Não é que a Universidade não vá formar pessoas que as relações sociais e econômicas necessitam, o que ressalto é a necessidade de autonomia universitária para que se produza o conhecimento para a realidade e para transformar esta realidade. Não podemos ficar “produzindo” meros reprodutores ou técnicos. Temos que criar espaços para produção de alternativas ao sistema e não simplesmente alimentar o sistema.
Esse é o sentido da garantia democrática prevista no art. 207, que deve receber leitura sistemática com o restante do texto e, obviamente, com o capítulo sobre a educação, que estabelece bases democráticas para a gestão do ensino, adequando as instituições de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus ao princípio democrático de livre expressão e convivência pacífica de idéias filosóficas, religiosas e políticas, sem nenhum tipo de imposição de qualquer forma de pensar, proibindo-se apenas a divulgação e logo o funcionamento de instituições que preguem qualquer tipo de preconceito ou discriminação.
Logo, a autonomia que será construida, no caso do art. 207 da Constituição, já existente, e das outras defendidas neste trabalho, devem necessariamente respeitar os princípios universais de direitos humanos, construindo sempre modelos de gestão que garantam, dentro do espírito da atual Constituição e da Constituição democráti­ca que estudamos, a plena participação no sistema de autogestão de todos os que constroem o sistema educacional e de saúde.
Para construir o modelo de autonomias democráticas para gerir o sistema de educação e saúde em todas as esferas de poder na federação, partimos da idéia da autonomia universitária, enquanto lugar de autoorganização e autogoverno, limitadas aos princí­pios democráticos e constitucionais, pois autonomia não se confun­de com soberania[2].Um aspecto fundamental da autonomia univer­sitária é a idéia de desvinculação do governo, estabelecendo, as universidades, as políticas de educação superior, tendo a capacidade de proposta orçamentária própria feita diretamente ao Congresso Nacional, no caso de universidades federais, e nas respectivas esfe­ras de Poder Legislativo da federação nos outros casos.
Sobre esse assunto, existe importante estudo do Colégio de Procuradores-Gerais das Instituições Federais de Ensino Superior, órgão da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, que detalha propos­ta inovadora de elaboração de uma lei orgânica das universi­dades, estabelecendo a forma de gestão e organização dessa autonomia constitucional de garantia do regime e da evolução do processo democrático.


[1] Os professores da antiga Alemanha Oriental são desprezados e se encon­tram desempregados após a unificão alemã. Ler: MIRAGLIA, Francis­co. O Leste Europeu e a Construção do socialismo. Universidade e Socie­dade, ano lI, n. 4, p. 91-95, dezembro, 1992. BANDEIRA, Moniz. A reunificação da Alemanha - Do ideal socialista ao socialismo real. São Paulo: Ensaio, 1992.  
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 11. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985; KELSEN, Hans. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1938; CAMPOS, German 1. Bidart. Teoria del Estado - Los temas de la ciencia política. Buenos Aires: Editora Comercial, Industrial e Financeira, 1991

951- Para reler o "velho desenvolvimentismo" - José Luis Fiori


DEBATE ABERTO

Para reler o "velho desenvolvimentismo"

Ao longo do século XX, é possível identificar três grandes “matrizes teóricas” que organizaram o debate em torno ao “papel do estado” no desenvolvimento econômico, e contribuíram para a construção e legitimação da ideologia “nacional-desenvolvimentista” na América Latina.

A hegemonia do pensamento desenvolvimentista, na America Latina, deita raízes na década de 30, se consolida nos anos 50, passa por uma auto-crítica nos anos 60, e perde seu vigor intelectual na década de 80. Nesse percurso é possível identificar três grandes “matrizes teóricas” que organizaram o debate em torno ao “papel do estado” no desenvolvimento econômico, e contribuíram para a construção e legitimação da ideologia “nacional-desenvolvimentista” : 

i) a teoria weberiana da “modernização”, contemporânea da teoria das “etapas do desenvolvimento econômico“, de Walter Rostow. Sua proposta de modernização supunha e apontava, ao mesmo tempo, de forma circular, para uma idealização dos estados e dos sistemas políticos europeu e norte-americano; 

ii) a teoria estruturalista do "centro-periferia" e do “intercâmbio desigual”, formulada pela CEPAL. Sua defesa intransigente da industrialização lembra o nacionalismo econômico de Friedrich List e Alexander Hamilton, mas não dá a mesma importância destes autores, aos conceitos de nação, poder e guerra; e, finalmente, 

iii) a teoria marxista da "revolução democrático-burguesa" que via no desenvolvimento e na industrialização o caminho necessário de amadurecimento do modo de produção capitalista e da própria revolução socialista. Sua interpretação e estratégia traduziam de forma quase sempre mecânica experiências de outros países, sem maior consideração pela heterogeneidade interna da América Latina.

Estas três teorias consideravam que o desenvolvimento econômico era um objetivo indiscutível e consensual, capaz de constituir e unificar a nação; se propunham construir economias nacionais autônomas e sociedades modernas e democráticas; consideravam que a industrialização era o caminho necessário da autonomia e da modernidade, ou mesmo da construção socialista; e, finalmente, propunham que o estado cumprisse o papel estratégico de condotieri desta grande transformação. 

Com o passar do tempo, entretanto, duas coisas chamam a atenção, nesta história desenvolvimentista. A primeira, é que apesar desta ampla convergência estratégica, as políticas desenvolvimentistas só tenham sido aplicadas de forma muito pontual, irregular e descoordenada. E em todo este período só se possa falar da existência de dois "estados desenvolvimentistas", na América Latina: o mexicano, com muitas reservas; e o brasileiro, que foi o mais bem sucedido, do ponto de vista do crescimento econômico. 

E a segunda coisa que chama muito a atenção é que exatamente no Brasil, a matriz teórica e estratégica que teve mais importância não foi nenhuma destas três, pelo contrário, foi a teoria da “segurança nacional” formulada pelos militares brasileiros que tiveram um papel central na construção e no controle ou tutela do “estado desenvolvimentista”, entre 1937 e 1985. 

O “desenvolvimentismo militar” deu seus primeiros passos no Brasil, com a Revolução de 30 e com o Estado Novo, mas só nos anos 50, com a criação da ESG, se transformou numa ideologia e numa estratégia específica e diferenciada dentro do universo desenvolvimentista, sendo a única que associava explicitamente a necessidade do desenvolvimento e da industrialização, com o objetivo prioritário da “defesa nacional”. 

Como contribuição ao debate contemporâneo, vale uma rápida anatomia deste projeto militar, que teve grande sucesso econômico, mas foi muito frágil do ponto de vista político e social:

i. Os militares brasileiros propunham um projeto de expansão do poder nacional e uma visão competitiva do sistema mundial. Mas definiam sua estratégia de defesa a partir de um “inimigo externo” estritamente ideológico e longínquo, que nunca ameaçou nem desafiou efetivamente o país, e que foi importado da Guerra Fria. 

ii. A natureza exclusivamente ideológica deste “inimigo externo” permitiu aos militares transportá-lo para dentro do país, transformando todas as reivindicação e mobilizações sociais internas, em manifestações que ameaçavam sua paranóia anti-comunista. Daí veio o caráter conservador, autoritário e anti-popular deste projeto desenvolvimentista. 

iii. Por sua vez, a desmobilização ativa da grande maioria da sociedade explica a composição heterogênea, oligárquica e quase sempre liberal da coalizão de interesses que sustentou política e socialmente, o sucesso econômico do desenvolvimentismo militar brasileiro. Uma coalizão que se manteve unida enquanto duraram as altas taxas de crescimento e se desfez rapidamente na hora da grande crise econômica internacional, do início dos anos 80.

iv. Por último, o projeto desenvolvimentista dos militares brasileiros utilizou a política macro-econômica como uma espécie de “variável de ajuste”. Ela nunca foi consistentemente ortodoxa nem heterodoxa, foi apenas a resultante possível, a cada momento, do grande paradoxo deste projeto: a necessidade de crescer e “fugir para frente, para manter unida uma coalizão de forças predominantemente anti-estatais e anti-desenvolvimentistas.

José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

950- A guerra do ópio e o eurocentrismo

A guerra do ópio e o eurocentrismo

Dois livros saem simultaneamente na Inglaterra. Um de Neil Ferguson, tradicional defensor da “superioridade branca”, com o sintomático título de“Civilização: o Ocidente e o resto”, o outro uma boa reconstrução histórica e politica: “A guerra do ópio: drogas, sonhos e a construção da China”, de Julia Lovell. Juntos, compõem um quadro perfeito do mundo colonizador e a mentalidade eurocentrista que o sustenta.

Neil Ferguson retoma sua visão explicitamente eurocentrista, expressa já no significativo titulo do livro. O tom melancólico, sob o cenário da crise atual, que rebaixa o perfil da Europa a níveis inimagináveis até um tempo atrás, serve para uma visão retrospectiva da ascensão e consolidação da Europa como centro do mundo e herdeira de todas as civilizações, como se representasse um ponto de chegada de todas elas.

Paralelamente se publica um reconstrução sistemática da guerra do ópio, com todos os sentidos que o episódio crucial teve. A Europa tinha interesse em comprar grande quantidade de bens da China: seda, chá, especiarias, entre outros. Mas a China não tinha interesse em comprar nada da Europa, o que levava a um comércio totalmente desequilibrado.

A Inglaterra buscou resolver a questão bem ao seu estilo: pela invasão militar, valendo-se da despreocupação da China de ser uma potência militar. “Uma guerra contra uma nação tão infantil nessa arte, seria melhor ser chamada de assassinato”- disse um oficial britânico. Dezenas de milhões de chineses morreram, mas os britânicos sofreram apens alguns ferimentos.

A guerra nem serviu para que o Imperio britânico se expandisse geograficamente, houve apenas a incorporação de Hong-Kong, O fundamental foi impor o livre comércio e, além disso, induzir o consumo de ópio na China, abastecendo esse vasto mercado com a produção realizada na outra grande colônia inglesa – a India. Essa a contribuição da “civilização” ocidental para a China – o consumo do ópio e o livre comércio. Assim se reequilibrava o comércio entre a Europa e a China. O Ocidente ainda propagou uma imagem da China no mundo vinculada ao ópio, que o próprio Ocidente introduziu naquele país.

A guerra do ópio só terminou recentemente, quando o governo chinês demandou a reintegração de Hong-Kong a seu país. Diante das hesitações de Margareth Thatcher, tentando dilatar a decisão, Deng-Xiao Ping lhe disse que recuperariam pela força o território, o que foi suficiente para que a suposta Dama de Ferro devolvesse docilmente Hong-Kong à China.

O Times já temia, um século atrás, que o gigante despertasse e revertesse aquela situação. A China, por sua vez, tirava a lição da necessidade de armar-se para se proteger da cobiça do Ocidente. Cada um pode constatar hoje como mudaram as relações entre a China e o Ocidente, desde então.
Postado por Emir Sader às 20:34

949- PAUSA PARA BALANÇO

ANO NOVO
TEMPO DE BALANÇO
PARA DEPOIS PODER MERGULHAR EM 2012

948- A lista dos acusados de tortura - Revista de História


A lista dos acusados de tortura

Dos papéis de Luiz Carlos Prestes consta um relatório do Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil, de 1976. O documento traz uma lista de 233 torturadores feita por presos políticos em 1975

Alice Melo e Vivi Fernandes de Lima
29/12/2011
 
  • O acervo pessoal de Luiz Carlos Prestes, que será doado por sua viúva, Maria Prestes, ao Arquivo Nacional, traz entre cartas trocadas com os filhos e a esposa, fotografias e documentos que mostram diferentes momentos da história política do Brasil. Entre eles, o “Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil”, datado de fevereiro de 1976.
    Neste período Prestes vivia exilado na União Soviética e, como o documento não revela quem são os membros deste Comitê, não se pode afirmar que o líder comunista tenha participado da elaboração do relatório. De qualquer forma, é curioso encontrá-lo entre seus papéis pessoais.
    O documento é dividido em seis capítulos, entre eles estão “Mais desaparecidos”, “Novamente a farsa dos suicídios”, “O braço clandestino da repressão” e “Identificação dos torturadores”, que traz uma lista de 233 militares e policiais acusados de cometer tortura durante a ditadura militar. Esta lista foi elaborada em 1975, por 35 presos políticos que cumpriam pena no Presídio da Justiça Militar Federal. Na ocasião, o documento foi enviado ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Caio Mário da Silva Pereira, mas só foi noticiado pela primeira vez em junho de 1978, no semanário alternativo “Em Tempo”. Segundo o periódico, “na época em que foi escrito, o documento não teve grandes repercussões, apenas alguns jornais resumiram a descrição dos métodos de tortura”. O Major de Infantaria do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra é o primeiro da lista de torturadores, segundo o relatório. A Revista de História tentou ouvi-lo, mas segundo sua esposa, Joseita Ustra, ele foi orientado pelo advogado a não dar entrevista. “Tudo que ele tinha pra dizer está no livro dele”, diz ela, referindo-se à publicação “A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça” (Editora Ser, 2010).
    A repercussão da lista em 1978
    A Revista de Históriaconversou com um jornalista que integrava a equipe do “Em Tempo”. Segundo a fonte – que prefere não ser identificada – a redação tinha um documento datilografado por presos políticos. Era uma “xerox” muito ruim do texto, reproduzido em uma página A4. Buscando obter mais informações sobre o documento, os jornalistas chegaram ao livro “Presos políticos brasileiros: acerca da repressão fascista no Brasil” (Edições Maria Da Fonte, 1976, Portugal). Depois desta lista, o “Em Tempo” publicou mais duas relações de militares acusados de cometerem tortura.
    Na época, a tiragem do semanário era de 20 mil exemplares, rapidamente esgotada nas bancas, batendo o recorde do jornal. A publicação fechou o tempo para o jornal, que sofreu naquela semana dois atentados. A sucursal de Curitiba foi invadida e pichada. Na parede, os vândalos deixaram a marca em spray “Os 233”. O outro atentado aconteceu na sucursal de Belo Horizonte: colocaram ácido nas máquinas de escrever. Na capital mineira, a repercussão foi maior porque os militantes de esquerda saíram em protesto a favor do jornal. O próprio “Em Tempo” publicou esses dois casos, com fotos.
    Os autores da lista
    As assinaturas dos 35 que assumem a autoria também foram publicadas no “Em Tempo”. Hamilton Pereira da Silva é um deles. O poeta – conhecido pelo pseudônimo Pedro Tierra e hoje Secretário de Cultura do Distrito Federal – fez questão de conversar com a Revista de História sobre o assunto, afirmando que a lista não foi fechada em conjunto. Os nomes e funções dos torturadores do documento teriam sido informados pelas vítimas da violência militar em momentos distintos de suas vidas durante o cárcere.
    “Essas informações saíam dos presídios por meio de advogados ou familiares. A esquerda brasileira, neste período, não era unida, era formada por vários grupos isolados, que não tinham muito contato entre si por causa da repressão”, conta Tierra. “Quando a lista foi publicada no ‘Em Tempo’, eu já estava em liberdade. Sei que colaborei com dois nomes: o major, hoje reformado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e o capitão Sérgio dos Santos Lima – que torturava os presos enquanto ouvia música clássica”.
    Hamilton lembra ainda que, após a publicação da lista no periódico, a direita reagiu violentamente realizando ataques a bomba em bancas de jornal e até uma bomba na OAB, além de ameaças à sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
    Em 1985, já em tempos de abertura política, a equipe do projeto Brasil: Nunca mais divulgou uma lista de 444 nomes ou codinomes de acusados por presos políticos de serem torturadores. Organizado pela Arquidiocese de São Paulo, o trabalho se baseou em uma pesquisa feita em mais de 600 processos dos arquivos do Superior Tribunal Militar de 1964 a 1979. Os documentos estão digitalizados e disponíveis no site do Grupo Tortura Nunca Mais.
    Entre os autores da lista de acusados de tortura feita em 1975, além de Hamilton Pereira da Silva, estão outros ex-presos políticos que também assumem cargos públicos, como José Genoino Neto, ex-presidente do PT e assessor do Ministério da Defesa, e Paulo Vanucchi, ex-ministro dos Direitos Humanos e criador da comissão da verdade. Os outros autores da lista são: Alberto Henrique Becker, Altino Souza Dantas Júnior, André Ota, Antonio André Camargo Guerra, Antonio Neto Barbosa, Antonio Pinheiro Salles, Artur Machado Scavone, Ariston Oliveira Lucena, Aton Fon Filho, Carlos Victor Alves Delamonica, Celso Antunes Horta, César Augusto Teles, Diógenes Sobrosa, Elio Cabral de Souza, Fabio Oascar Marenco dos Santos, Francisco Carlos de Andrade, Francisco Gomes da Silva, Gilberto Berloque, Gilney Amorim Viana,Gregório Mendonça, Jair Borin, Jesus Paredes Soto, José Carlos Giannini, Luiz Vergatti, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, Manoel Porfírio de Souza, Nei Jansen Ferreira Jr., Osvaldo Rocha, Ozeas Duarte de Oliveira, Paulo Radke, Pedro Rocha Filho, Reinaldo Moreno Filho e Roberto Ribeiro Martins.