domingo, 3 de março de 2013

1306- Permissões - coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães


SUBMISSÕES, PERMISSÕES E PACTOS: DAS "DEMOCRACIAS" LIBERAIS, DITADURAS E TOTALITARISMOS À POSSIBILIDADE DE PACTOS DEMOCRÁTICOS NÃO HEGEMÔNICOS.
por José Luiz Quadros de Magalhães

            Começamos nossas reflexões com Zizek, que por sua vez nos traz Jean-Claude Milner:
            "Jean-Claude Milner sabe muito bem que o establishment        conseguiu desfazer todas as consequências ameaçadoras de 1968           pela incorporação do chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim,            contra o verdadeiro âmago da revolta. As exigências de novos             direitos (que causariam uma verdadeira redistribuição de poder)       foram atendidas, mas apenas à guisa de 'permissões' - a 'sociedade          permissiva' é exatamente aquela que amplia o alcance do que os sujeitos têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar poder       adicional. (...) É o que acontece como direito ao divorcio, ao aborto,        ao casamento gay e assim por diante; são todos permissões    mascaradas de direitos; não mudam em nada a distribuição de             poder."
            Zizek cita Jean-Claude Milner[1]:
            "Os que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre         direito e permissão. Talvez não saibam articular em conceitos, mas a   prática esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, da acesso   ao exercício de um poder em detrimento de outro poder. Uma           permissão não diminui o poder, em detrimento de outro poder.     Uma permissão não diminui o poder de quem outorga; não          aumenta o poder daquele que obtém a permissão. Torna a vida         mais fácil, o que não é pouco coisa"[2]
            A partir destas ideias podemos refletir sobre o "sucesso" (depende para quem) da democracia liberal representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões que esvaziam  e desmobilizam estas lutas por poder, em uma acomodação, decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes).
            O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em consumo. Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A "diversidade" está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal social representativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda "radical" a direita "democrática", se parecem com a diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente nas "democracias" "ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante.
            Este aparato "democrático" representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder "democrático" representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação.
            As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou em permissões de "jouissance"[3]. Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com gominhos e com carinho, de "verdade".
            O problema da "jouissance" é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade. Daí tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.
            A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em outras palavras, a democracia representativa pode ser meio de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela, Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram historicamente alijados deste durante séculos.
            A questão essencial que ocorre nas democracias liberais representativas (e os países acima citados não se enquadram mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos resulta em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em ganho do direito de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquista este direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a recente e precária "democracia" representativa, pode ser precária enquanto instrumento efetivamente de democracia, mas cumpre muito bem, com efetividade e competência a sua função de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras, mudar para manter as coisas como estão.
            Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para quem detém o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que está democracia serve como canal de conquista de poder daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras e em 2012 o golpe parlamentar no Paraguai são exemplos.
            Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras e totalitarismo.
            A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão ideológica no totalitarismo onde o poder concede, mesmo não havendo possibilidade do pedido. No totalitarismo o poder, além de criar o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder).
            Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo. Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas.
            Diferente de submissões (ditaduras e totalitarismos) e de permissões ("democracia" representativa majoritária), um espaço de conquista de direitos não hegemônico significa que o poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum, onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritário (o que acontece na Bolívia, no Estado Plurinacional).


[1] Jean-Claude Milner, L'arrogance du présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[2] Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires, Manantial, 2010.
[3] No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.

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