sábado, 16 de novembro de 2013

1376- Ensaios José Luiz Quadros: Proibir de um lado permitir de outro



Proibir de um lado e permitir de outro.
por José Luiz Quadros de Magalhães
 
           
            Um estudo que necessita ser feito, deve ter como objetivo a compreensão de como o sistema reage à pressão crescente decorrente do aumento da criminalização sobre determinados comportamentos e um aumento sufocante dos mecanismos de controle (ideológico e tecnológico) sobre as pessoas, com o aumento das permissões de gozo. Em outras palavras, precisamos investigar quais são os comportamentos cada vez mais proibidos e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas para diminuir a pressão sobre o aumento de controle e repressão.
            Slavoj Zizek, nos traz Jean-Claude Milner:
            "Jean-Claude Milner sabe muito bem que o establishment   conseguiu desfazer     todas as consequências ameaçadoras de 1968 pela incorporação do chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim,            contra o verdadeiro âmago             da revolta. As exigências de novos   direitos (que causariam uma verdadeira        redistribuição de poder)             foram atendidas, mas apenas à guisa de        'permissões' - a 'sociedade      permissiva' é exatamente aquela que amplia o    alcance do que os       sujeitos têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar   poder             adicional. (...) É o que acontece como direito ao divorcio, ao aborto,         ao casamento gay e assim por diante; são todas permissões mascaradas de             direitos; não mudam em nada a distribuição de poder."
            Zizek cita Jean-Claude Milner[1]:
            "Os que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre      direito e          permissão. Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática             esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, oferece acesso             ao exercício     de um poder em detrimento de outro poder. Uma   permissão não diminui o        poder, em detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder de           quem outorga; não      aumenta o poder daquele que obtém a permissão. Torna a       vida     mais fácil, o que não é pouco coisa"[2]
            A partir destas ideias podemos refletir sobre o "sucesso" (depende para quem) da democracia liberal representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões que esvaziam  e desmobilizam estas lutas por poder, em uma acomodação, decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes).
            O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em bens de consumo. Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A "diversidade" está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal-social representativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda "radical" a direita "democrática", se parecem com a diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente nas "democracias" "ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante.
            Este aparato "democrático" representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder "democrático" representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação.
            As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou em permissões de "jouissance"[3]. Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com "gominhos" e com "carinho", de "verdade".
            O problema da "jouissance" é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade de gozar. Daí tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.
            A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em outras palavras, a democracia representativa pode ser meio (isto é uma exceção à regra) de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela, Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram historicamente alijados deste durante séculos.
            A questão essencial que ocorre nas democracias liberais representativas (e os países acima citados não se enquadram mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos resulta em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em ganho da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquistar este direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a "democracia" representativa, pode cumprir uma outra função não democrática, a de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras, mudar para manter as coisas como estão. Não podemos generalizar mas precisamos observar.
            Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para quem detém o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que está democracia serve como canal de conquista de poder daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras e em 2011 e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012, são alguns exemplos.
            Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras e totalitarismo.
            A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão ideológica, no totalitarismo, onde o poder concede, mesmo não havendo possibilidade do pedido. No totalitarismo o poder, além de criar o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder).
            Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo. Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas e redirecionadas.
            Diferente de submissões (ditaduras e totalitarismos) e de permissões ("democracia" representativa majoritária), um espaço de conquista de direitos não hegemônico significa que o poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum, onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritário (o que acontece na Bolívia, no Estado Plurinacional).


[1] Jean-Claude Milner, L'arrogance du présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[2] Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires, Manantial, 2010.
[3] No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.

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