sábado, 16 de novembro de 2013

1373- Ensaios José Luiz Quadros: A maquina judicial processadora de fatos e legitimadora de decisões previamente tomadas.



A maquina judicial processadora de fatos e legitimadora de decisões previamente tomadas.

José Luiz Quadros de Magalhães

            Primeiro precisamos entender a lógica do judiciário: "Roma Locuta, Causa Finita": Roma falou, o "império" disse, acabou a causa, acabou a controvérsia.[1] Esta frase resume a lógica de funcionamento do Judiciário e da democracia representativa majoritária moderna. No Judiciário, a pessoa que tem seu direito violado ou ameaçado (ou entende que isto aconteceu) pode recorrer a este "poder" do "estado", fazendo uma petição (um pedido) onde expõe suas razões e prova o acontecido por meio de documentos, testemunhos, perícias. A outra parte, ré no processo apresenta sua defesa, e pode apresentar documentos, testemunhos ou perícia em sua defesa (embora a responsabilidade de provar a culpa ou dolo de alguém seja sempre de quem acusa). Diante do conflito, o estado, por meio do juiz, interpreta e aplica as leis e a constituição (do estado) ao caso concreto apresentado para ele. A lógica deste processo é a concorrência de argumentos e provas, onde um lado será vencedor. Depois da análise das provas e dos argumentos o Estado se pronuncia e a causa é decidida. Existe a possibilidade do recurso onde a lógica concorrencial que mantém vivo o conflito permanece: recurso (razões do recurso), contrarrazões e finalmente de novo o pronunciamento do estado. Acabando a possibilidade de recurso o estado pronuncia finalmente sua decisão e a causa acaba: "Roma Locuta, Causa Finita".

            Este formato de "solução" de conflitos, nem sempre irá realmente solucionar o conflito, pois incentiva a concorrência de argumentos, mesmo que inicialmente se proponha um acordo, a finalidade não é a busca do consenso, ou do restabelecimento do equilíbrio quebrado pelo conflito, mas é a vitória de uma das partes. A busca da vitória dificulta muito (talvez inviabilize) a possibilidade de consenso e de solução da causa onde as partes se sintam contempladas nas suas expectativas. O perigo deste sistema é que sempre haverá alguém não conformado com a decisão estatal da controvérsia. Na prática, as partes (acusação e defesa) não ficam satisfeitas. O resultado é que o conflito, embora formalmente extinto com o processo, permanece latente. O pior é que o estado (por meio do juiz) não se interessa pela satisfação das partes, mas se contenta em dizer o "direito" para o caso e extinguir o conflito formalmente no processo, sem que se chegue efetivamente a uma solução real que poderia acabar efetivamente com o conflito, o que só ocorrerá com a construção do consenso. Este consenso pode ser obtido por meio da mediação, que obedece outra lógica e estabelece outra prioridade.

            Os problemas, entretanto, não acabam aí. A forma como este judiciário se construiu nos estado modernos, não só incentiva a concorrência (e logo a perpetuação do conflito) como sustenta a hegemonia de um grupo de interesses (uma classe social, um grupo étnico, uma percepção de direito) sobre outros subalternizados e radicalmente excluídos.

            Um filme de Werner Herzog pode nos ajudar a compreender como o poder judiciário moderno, inserido na lógica das democracias majoritárias liberais do estado constitucional moderno, funciona como uma maquina processadora de legitimação de fatos, ou, em outras palavras, como uma situação de opressão e exclusão pode ser "legitimada", formalmente, por uma decisão judicial.

            No filme, "Onde sonham as formigas verdes", um grupo de habitantes originários (aborígenes) pertencente a um grupo ético que habitava a terra que os invasores europeus passaram a chamar de Austrália, tem suas terras ameaçadas por uma companhia que pretende explorar o subsolo para extração de minerais. A formula já foi mencionada: o invasor (que se julga superior) impõe o seu direito, sua economia, sua espiritualidade, a sua percepção da vida e do mundo ao militarmente subordinado, que resiste e insiste na manutenção de sua cultura, de sua diferença (embora conviva com processos de destruição, violência e assimilação).

            Para quem vê o conflito que se instaura, sem a percepção de que ele ocorre em uma situação de hegemonia e logo de imposição de uma cultura sobre outra, a postura da empresa parece legal e ética. Um representante da empresa é escolhido para negociar com os habitantes originários (um grupo originário específico) que habitava aquelas terras. Nestas terras habitavam também formigas verdes, integrantes de um sistema natural que revela o comportamento de toda a natureza como um sistema integral do qual somos parte. A percepção "moderna" hegemônica europeia, se fundamenta na percepção de um "individuo" que não integra a natureza e que percebe esta enquanto recurso natural, que deve ser explorado para a satisfação das necessidades e desejos deste individuo racional e superior a todo o resto. O direito e todo o aparelho estatal da Austrália, onde se passa o filme, é construído a partir  da percepção de mundo do invasor, e, entre os invasores, dos proprietários, e entre os proprietários, dos grandes proprietários. A lógica dual, binária e hegemônica, se reproduz em diversas escalas: o invasor europeu sobre o selvagem aborígene; o proprietário sobre o trabalhador e assim por diante, chegando até a família. O direito moderno reproduz em todas as instâncias a lógica do "nós x eles".

            O representante da empresa acompanhado de um advogado tenta um acordo (fundado no direito do invasor) logicamente sem sucesso, pois ignora a cultura e a espiritualidade do invadido. Com toda a educação, simpatia e correção, a empresa leva a questão ao Judiciário, que obviamente, só poderia decidir a favor da empresa, pois o direito utilizado para "solução" do conflito é o direito de uma parte, e não um direito construído consensualmente por todas as partes envolvidas. Neste filme assistimos este judiciário como uma maquina processadora de legitimidade: quem venceria o processo já estava previamente estabelecido antes deste ser instaurado, mas a existência do processo, dos depoimentos, da provas, do recurso, funcionou como um elemento de "legitimação" para se tomar e explorar as terras dos aborígenes, que tiveram sua oportunidade formal de se defender no processo, fazendo provas e argumentando, e agora devem se subordinar ao estado, que disse o direito. Trata-se de um processo "pseudo legitimador" que extingue "culpas" e destrói o outro sem solução de conflitos mas com a imposição permanente de um direito de um sobre os outros.






[1] ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas, editora Boitempo, São Paulo, 2009, pág. 19.

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