Desocultamento, modernidade e estado.
por José Luiz Quadros de Magalhães
Vivemos um momento de desocultamento. A modernidade, fundada sobre um
projeto de hegemonia europeia encontra-se em crise radical, e toda a
diversidade ocultada começa a ser revelada e se rebela, em muitos casos, de
forma difusa.
Embora a crise se aprofunde, os
governos do "norte" (colonizador, "desenvolvido") ainda
insistem nos mesmos discursos e práticas excludentes, para solucionar problemas
que são da essência desta modernidade. Estes problemas só serão superados com a
construção de uma outra sociedade, uma outra economia, uma outra forma de fazer
política e democracia, fundadas em outros valores, sustentados pela diversidade
não hegemônica, tanto como direito individual como também direito coletivo.
A modernidade se funda (assim como todo
o aparato criado para viabilizar o projeto moderno) na negação da diferença e
da diversidade, tanto em uma perspectiva individual como coletiva. O estado
moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos, precisa
padronizar as pessoas, para viabilizar o seu projeto de um poder hegemônico,
centralizado, capaz de oferecer segurança e previsibilidade para os que
construíram o estado e o direito modernos: os nobres, os burgueses e o rei.
Esta aliança está em pé até agora. Um bom exemplo podemos encontrar na
cobertura, pela imprensa, da posse do novo Rei da Holanda na Europa em 2013.
Uma Europa em crise, desemprego por toda parte, e famílias reais de vários
lugares do mundo se encontrando em uma festa de casamento enquanto os grandes
proprietários (banqueiros empresários) aumentam seus ganhos, mantendo o povo
distraído com a festa da nacionalidade (bem moderna) simbolizada pela fantasia
do poder "real" e pelo sucesso dos empreendedores burgueses, em meio
a falência de uma sociedade individualista, egoísta e estruturalmente,
radicalmente, desigual.
Alguns ponto nucleares da
modernidade devem ser compreendidos: o projeto moderno é hegemônico (sempre
haverá um grupo hegemônico e diversos grupos excluídos, subalternizados,
ocultados); o projeto moderno é uniformizador, onde os considerados mais
diferentes serão expulsos (mortos, torturados, presos ou jogados na miséria) e
os menos diferentes serão uniformizados; o projeto moderno se funda na lógica
"nós" (superiores, civilizados, europeus) versus "eles"
(selvagens, bárbaros, índios, africanos, muçulmanos, judeus, mulheres,
inferiores, incivilizados, preguiçosos, etc).
A invasão da América (que será
chamada assim pelo invasor, a partir do nome de um invasor), marca o início do
genocídio do mais diferente, que é considerado selvagem, menos gente, meia
gente, sem alma, ou com meia alma, que por isto pode ser morto, escravizado,
torturado. O mecanismo "nós versus eles" se funda em uma lógica
narcisista: "sou melhor porque não sou o outro inferior ou, sou espanhol,
sou europeu, uma vez que não sou selvagem, bárbaro, infiel, índio, negro ou
muçulmano." Importante lembrar que a lógica hegemônica narcisista, ocorre
na formação dos estados modernos, onde um grupo se sobrepõe ao outro: o
castelhano sobre os bascos, catalães, galegos, valencianos na Espanha moderna,
criando o espanhol; ou ingleses sobre celtas galeses, escoceses ou irlandeses,
em um processo de ocultamento interno violento. Esta hegemonia se repete ainda
internamente, fruto da construção da economia moderna capitalista, onde, entre
o grupo étnico hegemônico, ou entre o novo grupo inventado, na nova
nacionalidade (franceses, portugueses ou espanhóis por exemplo), existem
proprietários, empresários, ricos e de sucesso e de outro lado, empregados, trabalhadores,
subordinados (ou na expressão norteamericana: perdedores).
Portanto, a lógica moderna se
reproduz de forma circular autorreferencial indefinidamente e assim será
enquanto não rompermos com a sociedade moderna, europeia, ocidental,
hegemônica: na invasão da América encontramos um grupo de pessoas que se auto denominam
civilizados, que se consideram mais do que o resto do mundo e ocultam a
diversidade (o outro inferior); na formação do estado moderno, um grupo étnico
interno se considera mais do que outro grupo (como nos exemplos citados de
Espanha e Reino Unido acima) e ocultam e proíbem os outros de viverem suas
diferenças em relação ao grupo hegemônico que impõe seus valores; no grupo
hegemônico também existem aqueles que se consideram mais do que outros menos (o
proprietário em relação ao trabalhador no capitalismo moderno); chegando esta
lógica na escola, nas relações sociais até na relação familiar, onde o homem é
considerado no decorrer dos quinhentos anos modernos ocidentais (inclusive pelo
direito moderno, no Brasil formalmente até 1988) como mais do que a mulher.
A compreensão do pensamento binário
presente na lógica "nós" versus "eles" é fundamental para
entendermos e superarmos a modernidade na qual estamos mergulhados até a
cabeça. Este dispositivo moderno sustenta todas as relações sociais e
econômicas e, enquanto não compreendermos isto não sairemos deste circulo
infinito de violência exclusão.
Continuamos matando o outro
selvagem, sem alma, menos gente, bárbaro, considerado inferior pelo grupo
hegemônico. O dispositivo "nós versus eles" está dentro de nossa
cabeça. É preciso romper com a modernidade e desocultar a diversidade, criando
uma sociedade não hegemônica, sem "nós" ou "eles"; sem "civilizados"
ou "incivilizados"; sem proprietários e empregados.
No processo de construção desta
sociedade moderna, intrinsecamente (porque não tem como esta sociedade moderna
ser de outro jeito) desigual e opressora, como já demonstrado acima, é
necessário construir justificativas, para que as pessoas possam aceitar
passivamente o seu papel social, inclusive para que oprimidos aceitem fazer o
papel de "cães de guarda" do sistema protegendo os opressores. Para
isto é necessário criar um aparato ideológico capaz de construir as explicações
"lógicas" da desigualdade e sua "legitimidade" o que
podemos chamar de aparato (ou aparelhos) ideológicos do estado moderno. Louis
Althusser[1]
irá desenvolver esta ideia (no século 20), e hoje, entre outros importantes
pensadores, encontramos Slavoj Zizek[2],
que nos ajuda a compreender a ideologia como mecanismo de encobrimento que
aparece de forma bem sistematizada pela primeira vez com Karl Marx[3]
(no século 19).
Portanto, para que este poder
opressor, uniformizador e excludente se efetive, ele precisa criar justificativas
(que serão, é claro, mentirosas ou ideológicas no sentido negativo). Sem isto,
as pessoas (uma boa parte) não aceitariam passivamente serem subordinadas e
excluídas vivendo em um sistema econômico, social e cultural violento, que é
contra as pessoas, que, em grande numero, o defendem, As pessoas prejudicadas
por este sistema defendem este sistema e são mesmo capazes de matar e torturar
para defender este sistema e aqueles que se beneficiam dele.
Um destes importantes aparelhos
ideológicos do estado é a escola moderna. Ela é criada para uniformizar. Ora, a
escola moderna é uma grande descoberta da modernidade para formar pessoas que
pensem do mesmo jeito, e que aceitem passivamente o sistema como natural (com o
único possível) e pior (como justo). Ou seja, os que têm mais merecem ter mais.
Esta escola moderna irá uniformizar comportamentos e valores e negará a
diversidade de forma permanente, simbolicamente (todas as crianças em
uniformes, pensando do mesmo jeito, com o mesmo cabelo e o mesmo comportamento)
assim como em sua estrutura de funcionamento com hierarquia, normas herméticas,
horários fechados, disciplinas fragmentadas. Existem ainda escolas
diferenciadas para classes sociais diferentes: uma escola para "nós"
onde as crianças aprenderam a comandar, mandar, liderar; uma escola para os
"nós" e "eles", onde estes aprenderão a obedecer os de cima
e mandar nos de baixo (a improvável classe média,essencialmente uma construção histórica
que cumpre bem sua função); e ainda a escola para "eles" que aprenderão
a obedecer, e saberão muito bem porque estão obedecendo.
Este estado moderno precisa criar
mecanismos para reproduzir as pessoas que ocuparão os espaços para o funcionamento
e reprodução do sistema. Assim teremos Universidades que produzem conhecimentos;
universidades que reproduzem o conhecimento e forma técnicos que se acham
superiores mas não aprendem a pensar; e, cursos técnicos onde as pessoas não
precisam pensar, filosofar, saber muito do mundo que os cerca, mas, aprendem
bem a fazer a maquina funcionar.
Além dos aparelhos ideológicos que garantem
a reprodução do sistema e explicam por que o sistema é assim, deixando as
pessoas acomodadas em seus referenciais fechados autoreprodutivos (autopoiesis),
e, ainda, recrutando "cães de guarda" dispostos a morrer pelos
legítimos iluminados do sistema, é necessário todo uma aparelho repressor,
pronto para funcionar contra aqueles que escaparam, de alguma forma, consciente
ou inconscientemente do sistema ideológico, ou, ainda, para punir aqueles que o
sistema não deu conta de incluir em alguma das funções. Ora, sempre existem os
excedentes do sistema que já cumpriram a função de mão de obra reserva (o que é
hoje é desnecessário), assim como, neste sistema moderno, sempre existem os
excedentes destinados aos presídios e manicômios, assim como, cada vez mais, os
miseráveis que não servem nem para ser explorados.
Assim, o cerco se fecha para
"eles": se não uniformizado pela escola, será reprimido pelos
aparelhos repressivos. O problema, no Brasil contemporâneo (e a
contemporaneidade é moderna para o ocidente), é que o sistema que deveria
aparecer em momentos distintos de forma distinta, uniformizando o pensamento e
criando fiéis seguidores de sua falsa "legitimidade" para alguns e
punindo e retirando de circulação os outros que escaparam da
"ideologia", atua de forma simultânea e sufocante para os de baixo,
criando mais violência e ameaçando implodir o sistema moderno de
"ideologia" e "repressão". O Brasil vive nesta segunda década
do século 21 uma fúria punitiva que ameaça destruir o próprio sistema moderno,
não pela sua superação por um sistema includente, mas pelo caos que surgirá
pela impossibilidade do estado dar conta de fiscalizar e punir todos aqueles
"criminosos" que surgem da desigualdade e da criminalização de novos comportamentos. Cada vez mais temos
mais crimes o que tornou todos os brasileiros em criminosos. Não tem
escapatória. Ao não mais diferenciar um "nós" (que não comete crime
por que faz as leis - os ricos); o "nós e eles" simultâneo (a classe
média que não comete crime porque sustenta numericamente o "nós") dos
que facilmente cometem crime pela sua própria existência (pois são tratados
como bandidos pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais que
reivindicam direitos), o sistema ameaça entrar em colapso.
Talvez aí seja importante entender,
dentro de um pensamento sistêmico, porque o sistema admite concessões
(permissões) que ajudam a diminuir a pressão que ocorre ao aumentar a
intolerância contra determinadas condutas. Ao criminalizar mais, fiscalizar
mais, controlar mais e punir e encarcerar mais, assistimos um movimento
simultâneo de permissões de comportamentos que não eram permitidos, criando uma
possibilidade de escape da pressão que se exerce do outro lado. Neste ponto é necessário
refletir e investigar o que tem sido, cada vez mais proibido e como passou a
ser permitido. Planejado ou não, fundado ou não em uma estratégia de poder, o
fato é que os sistema tem se comportado desta maneira: ao lado da
criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, direitos que eram negados,
e grupos que eram radicalmente excluídos, recebem agora uma autorização de
"jouissance". Recebem permissão (e não direitos) para gozar. O gozo
principal está expresso na sociedade de hiper consumo de tudo e todos. Tudo é
permanentemente consumido e consumível de objetos a pessoas. Tudo é rapidamente
consumível o que gera o enorme mal estar contemporâneo.
[1]
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado - nota sobre os aparelhos
ideológicos do estado, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985, 2 edição.
[2]
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Coleção Estado de Sítio, Boitempo
editorial, São Paulo, 2003.
[3]
MARX, Karl. A ideologia alemã - Feurbach - a contraposição entre as cosmovisões
materialista e idealista - Marx e Engels, Editora Martin Claret, 2006.
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