A
CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO CONSITTUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
NA AMÉRICA LATINA
José
Luiz Quadros de Magalhães[1]
INTRODUÇÃO:
A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 - O RESGATE DO PASSADO, A RESISTÊNCIA NO
PRESENTE E O ANÚNCIO DE UM NOVO FUTURO.
A
Constituição brasileira de 1988 nasce em um momento de transição da realidade
econômica global. Em 1979 e 1980 chegavam ao poder nas quatro maiores economias
do planeta, governos de perfil conservador mas com discurso que passou a ser
rotulado pela imprensa como "neoliberal".
Neste
momento víamos o processo que ainda hoje continua na Europa e EUA em crise, de
desmonte acelerado do "Estado de bem-estar social", que se fundava no
tripé de direitos sociais à saúde, educação e previdência, universalizados,
públicos e gratuitos e em uma economia de matriz "keynesiana" onde o estado
regulava, planejava e exercia a atividade econômica ao lado do setor privado, o
que se refletia, nas Constituições sociais, na existência de dispositivos,
capítulos ou títulos da Constituição sobre a "ordem econômica".
A
Constituição brasileira de 1988 nascia, neste momento, podemos dizer na
expressão popular, "remando contra a maré" neoliberal. A nossa
Constituição traz uma grande relação de direitos fundamentais, individuais,
políticos, sociais, econômicos e culturais. Uma ordem econômica que era no
texto originário (antes de começar a ser desfigurada pelas emendas
liberalizantes) uma fina expressão de um capitalismo social que valorizava as
formas de ganho com o trabalho, como o salário (em sentido lato salário,
vencimentos e proventos), e o lucro, desde de que advindo da livre iniciativa e
livre concorrência; e limitava as formas de ganho sem trabalho como o juro e a
renda (o que pode ser ilustrado pelos dispositivo jamais aplicado e já retirado
do texto, de limitação da taxa de juros a 12% ao ano).
Nossa
Constituição nascia uma Constituição social em um mundo que vivia a realidade
de uma nova hegemonia representada pela construção ideológica neoliberal. O
discurso do capitalismo social e do estado social hegemônico até a década de
1980 agora cedia espaço aos projetos de expansão do capitalismo global e
financeiro. Por este motivo, a Constituição de 1988 mal acabara de nascer, já
sofria ataques, emendas que começavam a reformar o estado social, abrindo
espaço para a desregulamentação da economia e a privatização de diversas
empresas públicas e sociedades de economia mista. O Estado deixava de
regulamentar e exercer atividade econômica. Gradualmente a Constituição Social
e Democrática de 1988 transformava-se em uma colcha de retalhos, em um texto
repleto de contradições de uma época de transição. As interpretações desta
Constituição começavam também a acentuar os aspectos liberais e reduzir os
sociais.
A
Constituição democrática passou a ser defendida por muitos democratas que
resistiram ao desmonte de seu texto democrático social. Neste sentido temos uma
Constituição Social que passa a ser agora texto de resistência à fúria
privatista, que sistematicamente atacava direitos sociais, trabalhistas e
previdenciários, assim como direitos econômicos do povo brasileiro.
Com
um pé no passado, representado pelo capitalismo social em crise; com um
presente de resistência democrática e luta por novos direitos, a Constituição
de 1988 também anunciava uma nova era constitucional: a era da diversidade e do
inicio da superação da modernidade uniformizadora.
A
Constituição Federal de 1988 anunciava o que chamamos hoje de novo
constitucionalismo democrático latino-americano, fonte de inspiração
democrática para estudiosos do direito constitucional de todo o mundo. Nossa
Constituição reconhece o direito a diferença como direito individual e
coletivo; assegura o direito dos povos indígenas (originários) e povos
quilombolas, abrindo espaço para a construção de um espaço de diversidade
individual e coletiva em nosso país, o que começa a ocorrer de forma mais
acelerada a partir do século XXI, com algumas importantes interpretações
constitucionais realizadas pelo Judiciário e por diversos defensores e
estudiosos dos direitos de diversidade.
Podemos
dizer neste sentido, que esta Constituição é um
marco para o futuro. Se em parte bebeu na fonte do passado do
capitalismo social; se representa resistência democrática no período de
desmonte dos direitos sociais e econômicos; a Constituição de 1988 anuncia
também o novo que chegou para ficar e avançar: um direito e uma sociedade
plural e radicalmente democrática que hoje se expressa de forma radical nas
Constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009).
1- O NOVO CONSTITUCIONALISMO
Existe
um grande risco na análise das Constituições da Bolívia e do Equador:
analisá-las sob o enfoque da teoria da constituição moderna europeia. Acredito
que utilizar as lentes da teoria da constituição europeia moderna inviabilizará
enxergar e logo compreender o potencial de ruptura com a modernidade presentes
nestas constituições. Serão apenas mais duas constituições interessantes e
diferentes dentro de um paradigma que não mudou na sua essência. Não é este o
potencial destas duas constituições. Elas exigem a construção de um outra
teoria da constituição, de uma outra teoria do direito, de uma outra teoria do
estado. Elas exigem uma teoria não moderna, não hegemônica, e logo não
europeia.
Alguns
eixos devem ser percebidos, estudados e aprofundados para percebermos o
potencial de ruptura radical que representam as experiências em curso nestes
dois países. Estes eixos precisam ser desenvolvidos, mas nos limites destes
trabalho serão apenas mencionados. As rupturas possíveis que elencamos a seguir
só poderão ser vistas sem as lentes uniformizadoras do direito moderno. Elas ocorrem
na realidade social e cultural dos povos que constituem a Bolívia e Equador,
que durante muito tempo viveram em ordenamentos jurídicos europeus modernos,
que excluíram, ocultaram e tentaram uniformizar estas sociedades diversas.
Vejamos:
1-
No lugar da uniformização hegemônica, a partir de um padrão europeu, o
reconhecimento da diversidade enquanto direito individual e coletivo pelo
ordenamento jurídico;
2-
Decorrente da ideia anterior, a afirmação do direito à diversidade enquanto
direito individual e coletivo sobre a ideia de direito à diferença (individual
ou coletivo) que implica na superação de qualquer padrão hegemônico
estabelecido pelo estado e ainda presente na ideia de direito à diferença
(diferente de que?);
3-
Superação da exclusividade da lógica binária, fundada principalmente no
dispositivo moderno "nós versus eles" (e da qual decorrem outros
dispositivos como inclusão versus exclusão; capital versus trabalho e
culturalismo versus universalismo);
4-
Criação de espaços de diálogo, não hegemônico, intercultural (para além do
multiculturalismo) que permita a construção de um espaço comum, de um direito
comum, em uma perspectiva transcultural, o que implica na superação de uma
lógica histórica linear pela ideia de permanente complementaridade;
5-
Substituição de um sistema moderno monojurídico (hegemônico) por um sistema
plurijurídico que permita a pluralidade de direitos de família, de propriedade
e de jurisdições;
6-
Igualdade entre jurisdição originária e "ordinária";
7-
Nova concepção de natureza como conceito integral superando a ideia de
"recursos naturais", um dos mitos modernos que separa o
"homem" da natureza", e transforma a natureza em algo selvagem a
ser domado e explorado pela civilização. Isto implica na superação da ideia de
"desenvolvimento sustentado", conceito que passou a condicionar a
natureza e o meio ambiente às necessidades de desenvolvimento econômico moderno
(capitalismo) que implica em mais consumo e mais produção como meta permanente.
A prioridade é a natureza e o sistema econômico deve se adequar ao respeito à
vida enquanto totalidade sistêmica e não o contrário;
8-
Nova concepção de pessoa superando a ideia do "individuo" liberal que
nasce e morre com uma personalidade distinta e separada da comunidade e da natureza.
Construção de um conceito de pessoa plural, dinâmica, processual, que não se
limita, e não pode ser limitar a um nome coletivo, a um rótulo, a um fato, ou a
um nome de família;
9-
Democracia consensual como prioridade;
10-
Judiciário consensual (justiça de mediação) como prioridade;
11-
Pluralismo epistemológico como fundamento do conhecimento, da democracia e da
justiça plural;
12-
Superação da dicotomia "culturalismo versus universalismo", o que
implica na superação do falso conceito de universalismo (o universalismo
europeu[2]).
O
desenvolvimento de alguns destes eixos pode ser encontrado no livro
"Estado Plurinacional e Direito Internacional"[3] e
promove uma análise inicial de 5 destes 12 eixos.
No presente ensaio vamos analisar os
ítens 9 e 10 a partir de uma crítica ao estado moderno e as distorções da
democracia majoritária e a jurisdição estatal uniformizadora e imperial,
passando brevemente pela questão levantada no íten 3, ou seja, a necessidade de
superação da lógica binária.
Vamos ao debate:
A maquina judicial processadora de fatos e
legitimadora de decisões previamente tomadas.
Primeiro precisamos entender a
lógica do judiciário: "Roma Locuta, Causa Finita": Roma falou, o
"império" disse, acabou a causa, acabou a controvérsia.[4]
Esta frase resume a lógica de funcionamento do Judiciário e da democracia
representativa majoritária moderna. No Judiciário, a pessoa que tem seu direito
violado ou ameaçado (ou entende que isto aconteceu) pode recorrer a este
"poder" do "estado", fazendo uma petição (um pedido) onde
expõe suas razões e prova o acontecido por meio de documentos, testemunhos,
perícias. A outra parte, ré no processo apresenta sua defesa, e pode apresentar
documentos, testemunhos ou perícia em sua defesa (embora a responsabilidade de
provar a culpa ou dolo de alguém seja sempre de quem acusa). Diante do
conflito, o estado, por meio do juiz, interpreta e aplica as leis e a
constituição (do estado) ao caso concreto apresentado para ele. A lógica deste
processo é a concorrência de argumentos e provas, onde um lado será vencedor.
Depois da análise das provas e dos argumentos o Estado se pronuncia e a causa é
decidida. Existe a possibilidade do recurso onde a lógica concorrencial que
mantém vivo o conflito permanece: recurso (razões do recurso), contrarrazões e
finalmente de novo o pronunciamento do estado. Acabando a possibilidade de
recurso o estado pronuncia finalmente sua decisão e a causa acaba: "Roma
Locuta, Causa Finita".
Este formato de "solução"
de conflitos, nem sempre irá realmente solucionar o conflito, pois incentiva a
concorrência de argumentos, mesmo que inicialmente se proponha um acordo, a
finalidade não é a busca do consenso, ou do restabelecimento do equilíbrio
quebrado pelo conflito, mas é a vitória de uma das partes. A busca da vitória
dificulta muito (talvez inviabilize) a possibilidade de consenso e de solução
da causa onde as partes se sintam contempladas nas suas expectativas. O perigo
deste sistema é que sempre haverá alguém não conformado com a decisão estatal
da controvérsia. Na prática, as partes (acusação e defesa) não ficam
satisfeitas. O resultado é que o conflito, embora formalmente extinto com o
processo, permanece latente. O pior é que o estado (por meio do juiz) não se
interessa pela satisfação das partes, mas se contenta em dizer o
"direito" para o caso e extinguir o conflito formalmente no processo,
sem que se chegue efetivamente a uma solução real que poderia acabar
efetivamente com o conflito, o que só ocorrerá com a construção do consenso.
Este consenso pode ser obtido por meio da mediação, que obedece outra lógica e
estabelece outra prioridade.
Os problemas, entretanto, não acabam
aí. A forma como este judiciário se construiu nos estado modernos, não só
incentiva a concorrência (e logo a perpetuação do conflito) como sustenta a
hegemonia de um grupo de interesses (uma classe social, um grupo étnico, uma
percepção de direito) sobre outros subalternizados e radicalmente excluídos.
Um filme de Werner Herzog pode nos
ajudar a compreender como o poder judiciário moderno, inserido na lógica das
democracias majoritárias liberais do estado constitucional moderno, funciona
como uma maquina processadora de legitimação de fatos, ou, em outras palavras,
como uma situação de opressão e exclusão pode ser "legitimada",
formalmente, por uma decisão judicial.
No filme, "Onde sonham as
formigas verdes", um grupo de habitantes originários (aborígenes)
pertencente a um grupo ético que habitava a terra que os invasores europeus
passaram a chamar de Austrália, tem suas terras ameaçadas por uma companhia que
pretende explorar o subsolo para extração de minerais. A formula já foi
mencionada: o invasor (que se julga superior) impõe o seu direito, sua
economia, sua espiritualidade, a sua percepção da vida e do mundo ao militarmente
subordinado, que resiste e insiste na manutenção de sua cultura, de sua
diferença (embora conviva com processos de destruição, violência e
assimilação).
Para quem vê o conflito que se
instaura, sem a percepção de que ele ocorre em uma situação de hegemonia e logo
de imposição de uma cultura sobre outra, a postura da empresa parece legal e
ética. Um representante da empresa é escolhido para negociar com os habitantes
originários (um grupo originário específico) que habitava aquelas terras.
Nestas terras habitavam também formigas verdes, integrantes de um sistema
natural que revela o comportamento de toda a natureza como um sistema integral
do qual somos parte. A percepção "moderna" hegemônica europeia, se
fundamenta na percepção de um "individuo" que não integra a natureza
e que percebe esta enquanto recurso natural, que deve ser explorado para a
satisfação das necessidades e desejos deste individuo racional e superior a
todo o resto. O direito e todo o aparelho estatal da Austrália, onde se passa o
filme, é construído a partir da
percepção de mundo do invasor, e, entre os invasores, dos proprietários, e
entre os proprietários, dos grandes proprietários. A lógica dual, binária e
hegemônica, se reproduz em diversas escalas: o invasor europeu sobre o selvagem
aborígene; o proprietário sobre o trabalhador e assim por diante, chegando até
a família. O direito moderno reproduz em todas as instâncias a lógica do
"nós x eles".
O representante da empresa
acompanhado de um advogado tenta um acordo (fundado no direito do invasor)
logicamente sem sucesso, pois ignora a cultura e a espiritualidade do invadido.
Com toda a educação, simpatia e correção, a empresa leva a questão ao
Judiciário, que obviamente, só poderia decidir a favor da empresa, pois o
direito utilizado para "solução" do conflito é o direito de uma
parte, e não um direito construído consensualmente por todas as partes
envolvidas. Neste filme assistimos este judiciário como uma maquina
processadora de legitimidade: quem venceria o processo já estava previamente
estabelecido antes deste ser instaurado, mas a existência do processo, dos
depoimentos, da provas, do recurso, funcionou como um elemento de
"legitimação" para se tomar e explorar as terras dos aborígenes, que
tiveram sua oportunidade formal de se defender no processo, fazendo provas e
argumentando, e agora devem se subordinar ao estado, que disse o direito.
Trata-se de um processo "pseudo legitimador" que extingue
"culpas" e destrói o outro sem solução de conflitos mas com a
imposição permanente de um direito de um sobre os outros.
Partidos, parlamentos e eleições: a maquina
processadora de legitimidades "democráticas" majoritárias de decisões
minoritárias.
Como funciona a democracia
representativa majoritária? "Roma Locuta, Causa Finita". Voltamos a
formula estrutural do sistema do direito moderno: "nós x eles", como
um processo de competição permanente, onde o vencedor proclamado interrompe
aquela competição especifica. Uma pergunta: qual a disposição para o debate na
democracia concorrencial majoritária? Existe a possibilidade de consensos ou a
lógica concorrencial impede o diálogo?
Vejamos. No processo eleitoral, as
partes envolvidas se filiam a partidos políticos com programas e ideologia
definida (o que cada vez existe menos). Cada partido, cada parte terá seus
argumentos construídos em um espaço interno democrático no partido, onde
poderia ser possível construir consensos sobre as questões de políticas
públicas as mais diversas. É necessário constatar até que ponto estes partidos
têm uma estrutura interna de debate que permita a construção de consensos, ou
se ao contrário, as decisões também são tomadas pela lógica majoritária que é
concorrencial e impede (dificulta) consensos. Vamos descobrir que, nos
partidos, que ainda constroem sua ideologia político-partidária por meios
dialógicos, a decisão ocorre por meio do voto majoritário o que inviabiliza
(dificulta) o consenso. Entretanto, a maior parte dos partidos políticos neste
inicio de século XXI, não guardam mais coerência político-ideológica, o que
resulta em um pragmatismo sem ética de busca do poder pelo poder.
Continuando a lógica da democracia
representativa majoritária, estes partidos que construíram suas propostas,
políticas públicas e ideologias, se apresentam para as eleições, para então o
"povo" escolher (Roma Locuta) e a controvérsia, expressa na busca
pela vitória nas eleições, acabe (Causa Finita), com a proclamação da vontade
da maioria. Neste momento a minoria (insatisfeita) se submete à maioria, sempre
dividida, pois se constitui também majoritária, em processos internos que
reproduzem o mesmo mecanismo. Percebemos que este processo inviabiliza qualquer
possibilidade de consenso, pois desde o inicio, o que se busca, é a vitória: do
partido, do projeto de lei, do melhor argumento (?).
Melhor argumento? Será que o
parlamento efetivamente funciona com a lógica da vitória do melhor argumento?
Qual é o melhor argumento? Depois de eleito o governo e de eleitos os
parlamentares, o governo continua funcionando da mesma maneira: "Roma
Locuta, Causa Finita". Para que o governo governe, este necessita de
maioria parlamentar (ou maiorias) para que aprove seu projetos, sua lei
orçamentária, seu plano de governo. Continuamos portanto no nível parlamentar
com a mesma busca da vitória. O sistema concorrencial continua inviabilizando
qualquer possibilidade de construção de consenso. Vamos acreditar, por
enquanto, que os argumentos expostos e contrapostos no parlamento sairão
vitoriosos na medida de que estes são melhores ou piores, ou, que a discussão
no parlamento ocorre em torno de argumentos racionais.
Vejam que já abandonamos qualquer
debate intercultural e que a argumentação acima se desenvolve sob a lógica
hegemônica de quem diz o que é direito. Os partidos políticos, em geral, não
trazem uma outra perspectiva ou alternativa à lógica moderna, representando,
durante boa parte do século XX, a controvérsia entre direita e esquerda,
conceitos modernos que se fundam na lógica moderna europeia binária (o centro
será o terceiro incluído ou uma farsa política?). O pluralismo partidário
poderia sugerir uma possibilidade de superação do pensamento binário na
política moderna, o que não ocorreu por força da lógica majoritária e a divisão
entre situação (governo) e oposição.
No parlamento, os representantes,
quando discutem o projeto de lei, de reforma legal ou constitucional,
argumentam a partir de seu partido político, visando a vitória de seu projeto.
São sempre parciais, esta é a ideia. Será que este processo permite que, neste
debate, um escute o outro? Haverá efetivamente a possibilidade de diálogo? Há
uma comunicação possível? Quando a pessoa que argumenta vai para um debate com
a intenção de vencer ou outro, esta pessoa estará aberta para ser convencida,
ou todo o argumento do outro será recebido para ser imediatamente desmontado?
A lógica concorrencial tende ao
totalitarismo. No final só restará o "melhor" e o
"derrotado" tende ao ocultamento, um esquecimento provisório. Claro
que, se observarmos o funcionamento dos parlamentos contemporâneos nas Américas
ou Europa perceberemos que, em muitos casos, não se trata de uma concorrência
de argumentos, de vitória de melhores argumentos, mas de um mercado como espaço
de negociação a partir de posições de força, sustentada por interesses
corporativos fora do parlamento. Em outras palavras, o problema da lógica
concorrencial que inviabiliza o consenso, e o risco de que a vitória do melhor
argumento oculte o argumento derrotado, foi superado pela criação de espaços de
negociação que não se fundam em argumentos racionais mas na força e poder de
negociação em um mercado político determinado por interesses preponderantemente
econômicos.
Desocultamento, modernidade e estado.
Vivemos um momento de desocultamento. A modernidade, fundada sobre um
projeto de hegemonia europeia encontra-se em crise radical, e toda a
diversidade ocultada começa a ser revelada e se rebela, em muitos casos, de
forma difusa.
Embora a crise se aprofunde, os
governos do "norte" (colonizador, "desenvolvido") ainda
insistem nos mesmos discursos e práticas excludentes, para solucionar problemas
que são da essência desta modernidade. Estes problemas só serão superados com a
construção de uma outra sociedade, uma outra economia, uma outra forma de fazer
política e democracia, fundadas em outros valores, sustentados pela diversidade
não hegemônica, tanto como direito individual como também direito coletivo.
A modernidade se funda (assim como
todo o aparato criado para viabilizar o projeto moderno) na negação da
diferença e da diversidade, tanto em uma perspectiva individual como coletiva.
O estado moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos,
precisa padronizar as pessoas, para viabilizar o seu projeto de um poder
hegemônico, centralizado, capaz de oferecer segurança e previsibilidade para os
que construíram o estado e o direito modernos: os nobres, os burgueses e o rei.
Esta aliança está em pé até agora. Um bom exemplo podemos encontrar na
cobertura, pela imprensa, da posse do novo Rei da Holanda na Europa em 2013. Uma
Europa em crise, desemprego por toda parte, e famílias reais de vários lugares
do mundo se encontrando em uma festa de casamento enquanto os grandes
proprietários (banqueiros empresários) aumentam seus ganhos, mantendo o povo
distraído com a festa da nacionalidade (bem moderna) simbolizada pela fantasia
do poder "real" e pelo sucesso dos empreendedores burgueses, em meio
a falência de uma sociedade individualista, egoísta e estruturalmente,
radicalmente, desigual.
Alguns ponto nucleares da
modernidade devem ser compreendidos: o projeto moderno é hegemônico (sempre
haverá um grupo hegemônico e diversos grupos excluídos, subalternizados,
ocultados); o projeto moderno é uniformizador, onde os considerados mais
diferentes serão expulsos (mortos, torturados, presos ou jogados na miséria) e
os menos diferentes serão uniformizados; o projeto moderno se funda na lógica
"nós" (superiores, civilizados, europeus) versus "eles"
(selvagens, bárbaros, índios, africanos, muçulmanos, judeus, mulheres,
inferiores, incivilizados, preguiçosos, etc).
A invasão da América (que será
chamada assim pelo invasor, a partir do nome de um invasor), marca o início do
genocídio do mais diferente, que é considerado selvagem, menos gente, meia
gente, sem alma, ou com meia alma, que por isto pode ser morto, escravizado,
torturado. O mecanismo "nós versus eles" se funda em uma lógica
narcisista: "sou melhor porque não sou o outro inferior ou, sou espanhol,
sou europeu, uma vez que não sou selvagem, bárbaro, infiel, índio, negro ou
muçulmano." Importante lembrar que a lógica hegemônica narcisista, ocorre
na formação dos estados modernos, onde um grupo se sobrepõe ao outro: o
castelhano sobre os bascos, catalães, galegos, valencianos na Espanha moderna,
criando o espanhol; ou ingleses sobre celtas galeses, escoceses ou irlandeses,
em um processo de ocultamento interno violento. Esta hegemonia se repete ainda
internamente, fruto da construção da economia moderna capitalista, onde, entre
o grupo étnico hegemônico, ou entre o novo grupo inventado, na nova
nacionalidade (franceses, portugueses ou espanhóis por exemplo), existem
proprietários, empresários, ricos e de sucesso e de outro lado, empregados,
trabalhadores, subordinados (ou na expressão norteamericana: perdedores).
Portanto, a lógica moderna se
reproduz de forma circular autorreferencial indefinidamente e assim será
enquanto não rompermos com a sociedade moderna, europeia, ocidental,
hegemônica: na invasão da América encontramos um grupo de pessoas que se auto
denominam civilizados, que se consideram mais do que o resto do mundo e ocultam
a diversidade (o outro inferior); na formação do estado moderno, um grupo
étnico interno se considera mais do que outro grupo (como nos exemplos citados
de Espanha e Reino Unido acima) e ocultam e proíbem os outros de viverem suas
diferenças em relação ao grupo hegemônico que impõe seus valores; no grupo
hegemônico também existem aqueles que se consideram mais do que outros menos (o
proprietário em relação ao trabalhador no capitalismo moderno); chegando esta
lógica na escola, nas relações sociais até na relação familiar, onde o homem é
considerado no decorrer dos quinhentos anos modernos ocidentais (inclusive pelo
direito moderno, no Brasil formalmente até 1988) como mais do que a mulher.
A compreensão do pensamento binário
presente na lógica "nós" versus "eles" é fundamental para
entendermos e superarmos a modernidade na qual estamos mergulhados até a
cabeça. Este dispositivo moderno sustenta todas as relações sociais e
econômicas e, enquanto não compreendermos isto não sairemos deste circulo
infinito de violência exclusão.
Continuamos matando o outro
selvagem, sem alma, menos gente, bárbaro, considerado inferior pelo grupo
hegemônico. O dispositivo "nós versus eles" está dentro de nossa
cabeça. É preciso romper com a modernidade e desocultar a diversidade, criando
uma sociedade não hegemônica, sem "nós" ou "eles"; sem
"civilizados" ou "incivilizados"; sem proprietários e
empregados.
No processo de construção desta
sociedade moderna, intrinsecamente (porque não tem como esta sociedade moderna
ser de outro jeito) desigual e opressora, como já demonstrado acima, é
necessário construir justificativas, para que as pessoas possam aceitar
passivamente o seu papel social, inclusive para que oprimidos aceitem fazer o
papel de "cães de guarda" do sistema protegendo os opressores. Para
isto é necessário criar um aparato ideológico capaz de construir as explicações
"lógicas" da desigualdade e sua "legitimidade" o que
podemos chamar de aparato (ou aparelhos) ideológicos do estado moderno. Louis
Althusser[5]
irá desenvolver esta ideia (no século 20), e hoje, entre outros importantes
pensadores, encontramos Slavoj Zizek[6],
que nos ajuda a compreender a ideologia como mecanismo de encobrimento que
aparece de forma bem sistematizada pela primeira vez com Karl Marx[7]
(no século 19).
Portanto, para que este poder
opressor, uniformizador e excludente se efetive, ele precisa criar
justificativas (que serão, é claro, mentirosas ou ideológicas no sentido
negativo). Sem isto, as pessoas (uma boa parte) não aceitariam passivamente
serem subordinadas e excluídas vivendo em um sistema econômico, social e
cultural violento, que é contra as pessoas, que, em grande numero, o defendem,
As pessoas prejudicadas por este sistema defendem este sistema e são mesmo
capazes de matar e torturar para defender este sistema e aqueles que se
beneficiam dele.
Um destes importantes aparelhos
ideológicos do estado é a escola moderna. Ela é criada para uniformizar. Ora, a
escola moderna é uma grande descoberta da modernidade para formar pessoas que
pensem do mesmo jeito, e que aceitem passivamente o sistema como natural (com o
único possível) e pior (como justo). Ou seja, os que têm mais merecem ter mais.
Esta escola moderna irá uniformizar comportamentos e valores e negará a
diversidade de forma permanente, simbolicamente (todas as crianças em
uniformes, pensando do mesmo jeito, com o mesmo cabelo e o mesmo comportamento)
assim como em sua estrutura de funcionamento com hierarquia, normas herméticas,
horários fechados, disciplinas fragmentadas. Existem ainda escolas
diferenciadas para classes sociais diferentes: uma escola para "nós"
onde as crianças aprenderam a comandar, mandar, liderar; uma escola para os
"nós" e "eles", onde estes aprenderão a obedecer os de cima
e mandar nos de baixo (a improvável classe média,essencialmente uma construção
histórica que cumpre bem sua função); e ainda a escola para "eles"
que aprenderão a obedecer, e saberão muito bem porque estão obedecendo.
Este estado moderno precisa criar
mecanismos para reproduzir as pessoas que ocuparão os espaços para o
funcionamento e reprodução do sistema. Assim teremos Universidades que produzem
conhecimentos; universidades que reproduzem o conhecimento e forma técnicos que
se acham superiores mas não aprendem a pensar; e, cursos técnicos onde as
pessoas não precisam pensar, filosofar, saber muito do mundo que os cerca, mas,
aprendem bem a fazer a maquina funcionar.
Além dos aparelhos ideológicos que
garantem a reprodução do sistema e explicam por que o sistema é assim, deixando
as pessoas acomodadas em seus referenciais fechados autoreprodutivos
(autopoiesis), e, ainda, recrutando "cães de guarda" dispostos a
morrer pelos legítimos iluminados do sistema, é necessário todo uma aparelho repressor,
pronto para funcionar contra aqueles que escaparam, de alguma forma, consciente
ou inconscientemente do sistema ideológico, ou, ainda, para punir aqueles que o
sistema não deu conta de incluir em alguma das funções. Ora, sempre existem os
excedentes do sistema que já cumpriram a função de mão de obra reserva (o que é
hoje é desnecessário), assim como, neste sistema moderno, sempre existem os
excedentes destinados aos presídios e manicômios, assim como, cada vez mais, os
miseráveis que não servem nem para ser explorados.
Assim, o cerco se fecha para
"eles": se não uniformizado pela escola, será reprimido pelos
aparelhos repressivos. O problema, no Brasil contemporâneo (e a
contemporaneidade é moderna para o ocidente), é que o sistema que deveria
aparecer em momentos distintos de forma distinta, uniformizando o pensamento e
criando fiéis seguidores de sua falsa "legitimidade" para alguns e
punindo e retirando de circulação os outros que escaparam da
"ideologia", atua de forma simultânea e sufocante para os de baixo,
criando mais violência e ameaçando implodir o sistema moderno de
"ideologia" e "repressão". O Brasil vive nesta segunda
década do século 21 uma fúria punitiva que ameaça destruir o próprio sistema
moderno, não pela sua superação por um sistema includente, mas pelo caos que
surgirá pela impossibilidade do estado dar conta de fiscalizar e punir todos
aqueles "criminosos" que surgem da desigualdade e da criminalização
de novos comportamentos. Cada vez mais
temos mais crimes o que tornou todos os brasileiros em criminosos. Não tem
escapatória. Ao não mais diferenciar um "nós" (que não comete crime
por que faz as leis - os ricos); o "nós e eles" simultâneo (a classe
média que não comete crime porque sustenta numericamente o "nós") dos
que facilmente cometem crime pela sua própria existência (pois são tratados
como bandidos pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais que
reivindicam direitos), o sistema ameaça entrar em colapso.
Talvez aí seja importante entender,
dentro de um pensamento sistêmico, porque o sistema admite concessões
(permissões) que ajudam a diminuir a pressão que ocorre ao aumentar a
intolerância contra determinadas condutas. Ao criminalizar mais, fiscalizar
mais, controlar mais e punir e encarcerar mais, assistimos um movimento simultâneo
de permissões de comportamentos que não eram permitidos, criando uma
possibilidade de escape da pressão que se exerce do outro lado. Neste ponto é
necessário refletir e investigar o que tem sido, cada vez mais proibido e como
passou a ser permitido. Planejado ou não, fundado ou não em uma estratégia de
poder, o fato é que os sistema tem se comportado desta maneira: ao lado da
criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, direitos que eram negados,
e grupos que eram radicalmente excluídos, recebem agora uma autorização de
"jouissance". Recebem permissão (e não direitos) para gozar. O gozo
principal está expresso na sociedade de hiper consumo de tudo e todos. Tudo é
permanentemente consumido e consumível de objetos a pessoas. Tudo é rapidamente
consumível o que gera o enorme mal estar contemporâneo.
Proibir
de um lado e permitir de outro.
Um estudo que necessita ser feito,
deve ter como objetivo a compreensão de como o sistema reage à pressão
crescente decorrente do aumento da criminalização sobre determinados
comportamentos e um aumento sufocante dos mecanismos de controle (ideológico e
tecnológico) sobre as pessoas, com o aumento das permissões de gozo. Em outras
palavras, precisamos investigar quais são os comportamentos cada vez mais proibidos
e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas para diminuir a pressão
sobre o aumento de controle e repressão.
Slavoj Zizek, nos traz Jean-Claude
Milner:
"Jean-Claude Milner sabe muito
bem que o establishment conseguiu
desfazer todas as consequências
ameaçadoras de 1968 pela incorporação do chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim, contra o verdadeiro âmago da revolta. As exigências de novos direitos (que causariam uma verdadeira redistribuição de poder) foram atendidas, mas apenas à guisa
de 'permissões' - a 'sociedade permissiva' é exatamente aquela que amplia
o alcance do que os sujeitos têm permissão de fazer sem, na
verdade, lhes dar poder adicional. (...) É o que acontece como direito
ao divorcio, ao aborto, ao casamento
gay e assim por diante; são todas permissões mascaradas de direitos; não mudam em nada a
distribuição de poder."
"Os
que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e permissão.
Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, oferece acesso ao exercício de um poder em detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder, em detrimento de outro poder.
Uma permissão não diminui o poder de quem
outorga; não aumenta o poder daquele
que obtém a permissão. Torna a vida mais fácil, o que não é pouco coisa"[9]
A partir destas ideias podemos
refletir sobre o "sucesso" (depende para quem) da democracia liberal
representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de
conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões que esvaziam e desmobilizam estas lutas por poder, em uma
acomodação, decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões
para atuar, fazer e até mesmo ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que
exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas
vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se
conecta e sustenta as outras vertentes).
O capitalismo tem sido capaz de, até
o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em bens de consumo.
Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia
controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos
são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs
Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo
é incorporado, domado e pasteurizado. A "diversidade" está em uma
praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível
comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao
nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia
liberal ou liberal-social representativa e majoritária). As opções são
limitadas, e os partidos políticos, da esquerda "radical" a direita
"democrática", se parecem com a diversidade de comidas com tempero
parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente
nas "democracias" "ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e
Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a
embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante.
Este aparato "democrático"
representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as
insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar
alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de
poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder
"democrático" representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades
e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal
criação.
As democracias liberais (sociais)
representativas majoritárias se transformaram em processadores de
revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder
pelo povo se transformou em permissões de "jouissance"[10].
Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente,
delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado:
nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de
laranja caseiro, industrializado, que vem com "gominhos" e com "carinho",
de "verdade".
O problema da "jouissance"
é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é
também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma
obrigação de não perder a oportunidade de gozar. Daí tanta depressão em uma
sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.
A diferença entre conquistar um
direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na
existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em
outras palavras, a democracia representativa pode ser meio (isto é uma exceção
à regra) de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do
Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela,
Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram
historicamente alijados deste durante séculos.
A questão essencial que ocorre nas
democracias liberais representativas (e os países acima citados não se
enquadram mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos resulta
em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em
ganho da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma
transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e
concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de
um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquistar este
direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não,
não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que
podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a
"democracia" representativa, pode cumprir uma outra função não
democrática, a de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras,
mudar para manter as coisas como estão. Não podemos generalizar mas precisamos
observar.
Percebendo que esta, já precária
democracia, é apenas tolerada para quem detém o poder moderno, são comuns as
rupturas. Toda vez que está democracia serve como canal de conquista de poder
daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as
várias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile
(1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentativa de
golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras e em 2011 e o golpe
parlamentar no Paraguai em 2012, são alguns exemplos.
Assim, após o constitucionalismo
liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem
acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras e totalitarismo.
A relação de poder nestas duas formas
alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas
distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas
permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e
totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou
permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas
ditaduras) ou da total submissão ideológica, no totalitarismo, onde o poder
concede, mesmo não havendo possibilidade do pedido. No totalitarismo o poder,
além de criar o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem
pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo
poder).
Portanto temos nestas duas
estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador
paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos
inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do
poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às
demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que
efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo.
Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a
partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas e redirecionadas.
Diferente de submissões (ditaduras e
totalitarismos) e de permissões ("democracia" representativa
majoritária), um espaço de conquista de direitos não hegemônico significa que o
poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum,
onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre
provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritário (o que acontece na
Bolívia, no Estado Plurinacional).
Alternativas: a superação do pensamento binário.
Não
há possibilidade de consenso quando a minha satisfação depende da insatisfação
de outro. Não é possível uma democracia efetiva consensual no sistema
capitalista e as contradições binárias inerentes a este sistema. Consensos nestes
sistemas, que envolvam questões socioeconomicas serão sempre ideológicos
(falsos) e os consensos realizados em outros campos tendem a sofrer distorções
ideológicas negativas.
A
lógica moderna fundada no pensamento binário sustenta a modernidade. Uma armadilha
que precisa ser superada.
O novo constitucionalismo
democrático na América Latina, especialmente as Constituições da Bolívia e
Equador, aparece como uma alternativa de superação das engrenagens
uniformizadoras do estado moderno assim como fundamento para a construção de um
outro sistema mundo superando este, construído a partir da hegemonia
"ocidental" moderna. No lugar de uma democracia meramente
representativa e majoritária concorrencial é construída a alternativa de uma
democracia consensual fundada na busca do consenso na solução dos conflitos e
na construção de políticas públicas. No lugar de um judiciário que funciona de
forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca permanente da
mediação por meio da construção de consensos provisórios e sempre democráticos,
que objetivem o equilíbrio, ou o restabelecimento do equilíbrio perdido com o
conflito.
Para
que seja possível a construção de uma democracia consensual e de espaços
"comuns", de um direito "comum" é necessário que algumas dicotomias
naturalizadas sejam historicamente superadas como por exemplo: Capital versus
trabalho.
Quais são as dicotomias necessárias?
Claro que não vamos responder esta
pergunta agora. Podemos apenas provocar afirmando que, mesmo as dicotomias que parecem
naturais, como dia e noite, claro e escuro, são simplificações falsas e
construções arbitrárias culturais. Não há um dia e uma noite mas um permanente
processo de transformação das condições de clima e luminosidade que se rebelam
ao contar matemático das horas, minutos e segundos. Não há um claro e um escuro
mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da
dicotomia ideologicamente (no sentido negativo e positivo do termo)
naturalizada de homem e mulher sugiro a leitura de Judith Butler.[11] Não
vamos desenvolver estas ideias agora. Isto exigiria muitas páginas e muitas
palavras. Seria um livro inteiro. O que queremos sugerir como reflexão nestas
palavras finais, neste texto, é que as dicotomias que são naturalizadas, não
são naturais, e mais, que devemos superar este pensamento dicotômico binário
para viabilizar consensos democráticos e a superação de uma sociedade e
economia excludentes. A superação da exclusão não se dá pela inclusão, mas pela
superação da dicotomia exclusão versus inclusão. Uma sociedade sem excluídos
será uma sociedade sem incluídos. A mesma lógica pode ser aplicada em outras
dicotomias: pobres e ricos; capital e trabalho; bem e mal; "nós versus
eles"; civilizado e incivilizado. Estas dicotomias não são naturais, não
são necessárias, e de sua extinção depende a construção de uma alternativa ao
violento mundo moderno.
[1]
Professor da UFMG; FDSM e PUC-MG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG.
[2]
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu - a retórica do poder, Editora
Boitempo, São Paulo, 2007.
[3]
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Estado Plurinacional e Direito Internacional,
Editora Juruá, Curitiba, 2012.
[4]
ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas, editora Boitempo, São Paulo,
2009, pág. 19.
[5]
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado - nota sobre os aparelhos
ideológicos do estado, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985, 2 edição.
[6]
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Coleção Estado de Sítio, Boitempo
editorial, São Paulo, 2003.
[7]
MARX, Karl. A ideologia alemã - Feurbach - a contraposição entre as cosmovisões
materialista e idealista - Marx e Engels, Editora Martin Claret, 2006.
[8] Jean-Claude Milner, L'arrogance du
présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[9] Esta
tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como
tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita
pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia
del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires,
Manantial, 2010.
[10]
No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.
[11]
BUTLER, Judith. El género en disputa - el feminismo y la subverión de la
identidad, editora Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México; Quarta impresión,
marzo 2011.
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