Direito
à diversidade individual e coletivo e a superação de uma teoria da constituição
moderna.
José
Luiz Quadros de Magalhães[1]
1- O NOVO CONSTITUCIONALISMO
Existe
um grande risco na análise das Constituições da Bolívia e do Equador:
analisá-las sob o enfoque da teoria da constituição moderna europeia. Acredito
que utilizar as lentes da teoria da constituição europeia moderna inviabilizará
enxergar, e logo compreender, o potencial de ruptura com a modernidade presentes
nestas constituições. Ao fazermos isto teremos, apenas, mais duas constituições
interessantes e diferentes dentro de um paradigma que não mudou na sua
essência. Não é este o potencial destas duas constituições. Elas exigem a
construção de um outra teoria da constituição, de uma outra teoria do direito,
de uma outra teoria do estado. Elas exigem uma teoria não moderna e logo não
hegemônica.
Alguns
eixos devem ser estudados e aprofundados para percebermos o potencial de
ruptura radical que representam as experiências em curso nestes dois países.
Estes eixos precisam ser desenvolvidos, mas nos limites destes trabalho serão
apenas mencionados. As rupturas possíveis que elencamos a seguir só poderão ser
vistas sem as lentes uniformizadoras do direito moderno. Elas ocorrem na
realidade social e cultural dos povos que constituem a Bolívia e Equador, que
durante muito tempo viveram em ordenamentos jurídicos europeus modernos, que
excluíram, ocultaram e tentaram uniformizar estas sociedades diversas.
Vejamos:
Em
primeiro lugar é fundamental perceber que no lugar da uniformização hegemônica,
a partir de um padrão europeu, ocorre o reconhecimento da diversidade enquanto
direito individual e coletivo pelo ordenamento jurídico. Decorrente desta
ideia, percebemos a afirmação do direito à diversidade enquanto direito
individual e coletivo sobre a ideia de direito à diferença (individual ou
coletivo) o que implica na busca de superação de qualquer padrão hegemônico
estabelecido pelo estado e ainda presente na ideia de direito à diferença
(diferente de que?).
Outro
eixo importante que marca o novo constitucionalismo democrático é a superação
da exclusividade da lógica binária, fundada principalmente no dispositivo
moderno "nós versus eles" (e da qual decorrem outros dispositivos
como inclusão versus exclusão; capital versus trabalho; culturalismo versus
universalismo entre vários outros.
É
perceptível ainda a criação de espaços de diálogo, não hegemônico,
intercultural (para além do multiculturalismo) o que permite a construção de um
espaço comum, de um direito comum, em uma perspectiva transcultural, possibilitando
a superação de uma lógica histórica linear pela ideia de permanente
complementaridade;
Marcante
nas Constituições do Equador e Bolívia é, ainda, a construção de uma nova
concepção de natureza como conceito integral superando a ideia de
"recursos naturais", um dos mitos modernos que separa o
"homem" da natureza", e transforma a natureza em algo selvagem,
a ser domado e explorado pela civilização. Isto implica na superação da ideia
de "desenvolvimento sustentado", conceito que passou a condicionar a
natureza e o meio ambiente às necessidades de desenvolvimento econômico moderno
(capitalismo) que implica em mais consumo e mais produção como meta permanente.
A prioridade é a natureza e o sistema econômico deve se adequar ao respeito à
vida enquanto totalidade sistêmica e não o contrário. Decorre daí uma nova
compreensão de pessoa superando a ideia do "individuo" liberal que
nasce e morre com uma personalidade distinta e separada da comunidade e da
natureza. O novo conceito de pessoa nos remete a uma pessoa plural, dinâmica,
processual, que não se limita, e não pode ser limitada a um nome coletivo, a um
rótulo, a um fato, ou a um nome de família.
Outros
pontos de ruptura podem ser enumerados: a substituição de um sistema moderno
monojurídico (hegemônico) por um sistema plurijurídico que permita a
pluralidade de direitos de família, de propriedade e de jurisdições; a igualdade
entre jurisdição originária e "ordinária"; democracia consensual como
prioridade; judiciário consensual (justiça de mediação) como prioridade; pluralismo
epistemológico como fundamento do conhecimento, da democracia e da justiça
plural; superação da dicotomia "culturalismo versus universalismo", o
que implica na superação do falso conceito de universalismo (o universalismo
europeu[2]).
O
desenvolvimento de alguns destes eixos pode ser encontrado no livro
"Estado Plurinacional e Direito Internacional"[3] e
promove uma análise inicial de 5 destes 12 eixos.
No presente ensaio vamos analisar o
direito à diversidade como direito individual e coletivo e a gradual superação
da lógica moderna que incorporou o direito à diferença de forma a controlar a
infiltração da diversidade no projeto uniformizador moderno.
Vamos ao debate:
Desocultamento, modernidade e estado.
Vivemos um momento de desocultamento. A modernidade, fundada sobre um
projeto de hegemonia europeia encontra-se em crise radical, e toda a
diversidade ocultada começa a ser revelada e se rebela, em muitos casos, de
forma difusa.
Embora a crise se aprofunde, os
governos do "norte" (colonizador, "desenvolvido") ainda
insistem nos mesmos discursos e práticas excludentes, para solucionar problemas
que são da essência desta modernidade. Estes problemas só serão superados com a
construção de uma outra sociedade, de outras economias, outras formas de fazer
política e democracia, fundadas em outros valores, sustentados pela diversidade
não hegemônica, tanto como direito individual como também direito coletivo.
A modernidade se funda (assim como
todo o aparato criado para viabilizar o projeto moderno) na negação da
diferença e da diversidade, tanto em uma perspectiva individual como coletiva.
O estado moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos,
precisa padronizar as pessoas, para viabilizar o seu projeto de um poder
hegemônico, centralizado, capaz de oferecer segurança e previsibilidade para os
que construíram o estado e o direito modernos: os nobres, os burgueses e o rei.
Esta aliança está em pé até agora. Um bom exemplo podemos encontrar na
cobertura, pela imprensa, da posse do novo Rei da Holanda na Europa em 2013.
Uma Europa em crise, desemprego por toda parte, e famílias reais de vários
lugares do mundo se encontrando em uma festa de casamento enquanto banqueiros e
empresários aumentam seus ganhos protegidos e financiados pelo estado.
Alguns ponto nucleares da
modernidade devem ser compreendidos: o projeto moderno é hegemônico (sempre
haverá um grupo hegemônico e diversos grupos excluídos, subalternizados,
ocultados); o projeto moderno é uniformizador, onde os considerados mais
diferentes serão expulsos (mortos, torturados, presos ou jogados na miséria) e
os menos diferentes serão uniformizados; o projeto moderno se funda na lógica
"nós" (superiores, civilizados, europeus) versus "eles"
(selvagens, bárbaros, índios, africanos, muçulmanos, judeus, mulheres,
inferiores, incivilizados, preguiçosos, etc).
A invasão da América (que será
chamada assim pelo invasor, a partir do nome de um invasor), marca o início do
genocídio do mais diferente, que é considerado selvagem, menos gente, meia
gente, sem alma, ou com meia alma, que por isto pode ser morto, escravizado,
torturado. O mecanismo "nós versus eles" se funda em uma lógica
narcisista: "sou melhor porque não sou o outro inferior ou, sou espanhol,
sou europeu, uma vez que não sou selvagem, bárbaro, infiel, índio, negro ou
muçulmano." Importante lembrar que a lógica hegemônica narcisista[4],
ocorre na formação dos estados modernos, onde um grupo se sobrepõe ao outro: o
castelhano sobre os bascos, catalães, galegos, valencianos na Espanha moderna,
criando o espanhol; ou ingleses sobre celtas galeses, escoceses ou irlandeses,
em um processo de ocultamento interno violento. Esta hegemonia se repete ainda
internamente, fruto da construção da economia moderna capitalista, onde, entre
o grupo étnico hegemônico, ou entre o novo grupo inventado, na nova
nacionalidade (franceses, portugueses ou espanhóis por exemplo), existem
proprietários, empresários, ricos e de sucesso e de outro lado, empregados,
trabalhadores, subordinados (ou na expressão norte-americana: perdedores).
Portanto, a lógica moderna se
reproduz de forma circular autorreferencial indefinidamente e assim será
enquanto não rompermos com o padrão moderno de sociedade moderna, europeia,
ocidental, hegemônica: na invasão da América encontramos um grupo de pessoas
que se auto denominam civilizados, que se consideram mais do que o resto do
mundo e ocultam a diversidade (o outro inferior); na formação do estado
moderno, um grupo étnico interno se considera mais do que outro grupo (como nos
exemplos citados de Espanha e Reino Unido acima) e ocultam e proíbem os outros
de viverem suas diferenças em relação ao grupo hegemônico que impõe seus valores;
no grupo hegemônico também existem aqueles que se consideram mais do que outros
menos (o proprietário em relação ao trabalhador no capitalismo moderno);
chegando esta lógica na escola, nas relações sociais e na relação familiar,
onde o homem é considerado, no decorrer dos quinhentos anos modernos ocidentais
(no Brasil formalmente até 1988 ou no Código Civil até 2002) como mais do que a
mulher.
A compreensão do pensamento binário
(hegemônico) presente na lógica "nós" versus "eles" é
fundamental para entendermos e superarmos a modernidade na qual estamos
mergulhados até a cabeça. Este dispositivo moderno sustenta e justifica as
relações sociais e econômicas modernas, e, enquanto não compreendermos isto não
sairemos deste circulo infinito de violência exclusão.
Continuamos matando o outro
selvagem, sem alma, menos gente, bárbaro, considerado inferior pelo grupo
hegemônico. O dispositivo "nós versus eles" está dentro de nossa
cabeça. É preciso romper com a modernidade e desocultar a diversidade, criando
uma sociedade não hegemônica, sem "nós" ou "eles"; sem
"civilizados" ou "incivilizados"; sem proprietários e
empregados.
No processo de construção desta
sociedade moderna, intrinsecamente (porque não tem como esta sociedade moderna
ser de outro jeito sem deixar de ser moderna) desigual e opressora, como já
demonstrado acima, é necessário construir justificativas, para que as pessoas
possam aceitar passivamente o seu papel social, inclusive para que oprimidos
aceitem fazer o papel de "cães de guarda" do sistema protegendo os
opressores. Para isto é necessário criar um aparato ideológico capaz de
construir as explicações "lógicas" da desigualdade e sua
"legitimidade" o que podemos chamar de aparato (ou aparelhos)
ideológicos do estado moderno. Louis Althusser[5]
irá desenvolver esta ideia (no século 20), e hoje, entre outros importantes
pensadores, encontramos Slavoj Zizek[6],
que nos ajuda a compreender a ideologia como mecanismo de encobrimento que
aparece de forma bem sistematizada pela primeira vez com Karl Marx[7]
(no século 19).
Portanto, para que este poder
opressor, uniformizador e excludente se efetive, ele precisa criar
justificativas (que serão, é claro, mentirosas ou ideológicas no sentido
negativo). Sem isto, as pessoas (uma boa parte) não aceitariam passivamente
serem subordinadas e excluídas vivendo em um sistema econômico, social e
cultural violento, que é contra as pessoas, que, em grande numero, o defendem.
Talvez aí seja importante entender,
dentro de um pensamento sistêmico, porque o sistema admite concessões
(permissões) que ajudam a diminuir a pressão que ocorre ao aumentar a
intolerância contra determinadas condutas. Ao criminalizar mais, fiscalizar
mais, controlar mais e punir e encarcerar mais, assistimos um movimento
simultâneo de permissões de comportamentos que não eram permitidos, criando uma
possibilidade de escape da pressão que se exerce do outro lado. Neste ponto é
necessário refletir e investigar o que tem sido, cada vez mais proibido e o que
tem sido permitido. Planejado ou não, fundado ou não em uma estratégia de
poder, o fato é que os sistema tem se comportado desta maneira: ao lado da
criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, direitos que eram negados,
e grupos que eram radicalmente excluídos, recebem agora uma autorização de
"jouissance". Recebem permissão (e não direitos) para gozar. O gozo
principal está expresso na sociedade de hiper consumo de tudo e todos. Tudo é
permanentemente consumido e consumível de objetos a pessoas. Tudo é rapidamente
consumível o que gera o enorme mal estar contemporâneo.
Proibir
de um lado e permitir de outro.
Um estudo que necessita ser feito,
deve ter como objetivo a compreensão de como o sistema reage à pressão
crescente, decorrente do aumento da criminalização sobre determinados comportamentos
e um aumento sufocante dos mecanismos de controle (ideológico e tecnológico)
sobre as pessoas, e, de outro lado, o aumento das permissões de gozo. Em outras
palavras, precisamos investigar quais são os comportamentos cada vez mais
proibidos e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas para diminuir
a pressão sobre o aumento de controle e repressão.
Slavoj Zizek, nos traz Jean-Claude
Milner:
"Jean-Claude Milner sabe muito
bem que o establishment conseguiu
desfazer todas as consequências
ameaçadoras de 1968 pela incorporação do chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim, contra o verdadeiro âmago da revolta. As exigências de novos direitos (que causariam uma verdadeira redistribuição de poder) foram atendidas, mas apenas à guisa
de 'permissões' - a 'sociedade permissiva' é exatamente aquela que amplia
o alcance do que os sujeitos têm permissão de fazer sem, na
verdade, lhes dar poder adicional. (...) É o que acontece
como direito ao divorcio, ao aborto, ao
casamento gay e assim por diante; são todas permissões mascaradas de direitos; não mudam em nada a
distribuição de poder."
"Os
que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e permissão.
Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, oferece
acesso ao exercício de um poder em detrimento de outro poder.
Uma permissão não diminui o poder, em detrimento de outro poder. Uma
permissão não diminui o poder de quem
outorga; não aumenta o poder daquele
que obtém a permissão. Torna a vida mais fácil, o que não é pouco coisa"[9]
A partir destas ideias podemos
refletir sobre o "sucesso" (depende para quem) da democracia liberal
representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de
conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões que esvaziam e
desmobilizam estas lutas por poder, em uma acomodação, decorrente de uma
aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer, e até mesmo
ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que
lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural,
militar e especialmente ideológica (que conecta e sustenta as outras
vertentes).
O capitalismo tem sido capaz de, até
o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em bens de consumo.
Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia
controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos
são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs
Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo
é incorporado, domado e pasteurizado. A "diversidade" está em uma
praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível
comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao
nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia
liberal ou liberal-social representativa e majoritária). As opções são
limitadas, e os partidos políticos, da esquerda "radical" à direita
"democrática", se parecem com a diversidade de comidas com tempero
parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente
nas "democracias" "ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e
Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a
embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante.
Este aparato "democrático"
representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as
insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar
alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de
poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder
"democrático" representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades
e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal
criação.
As democracias liberais (sociais)
representativas majoritárias se transformaram em processadores de
revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder
pelo povo se transformou em permissões de "jouissance"[10].
Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente,
delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado:
nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de
laranja caseiro, industrializado, que vem com "gominhos" e com "carinho",
de "verdade".
O problema da "jouissance"
é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é
também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma
obrigação de não perder a oportunidade de gozar. Daí tanta depressão em uma
sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.
A diferença entre conquistar um
direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na
existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em
outras palavras, a democracia representativa pode ser meio (isto é uma exceção
à regra) de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do
Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela,
Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram
historicamente alijados deste durante séculos.
A questão essencial que ocorre nas
democracias liberais representativas (e os países acima citados podem não se
enquadrar mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos resulta
em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em
ganho da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma
transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e
concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de
um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquistar este
direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não,
não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que
podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a
"democracia" representativa, pode cumprir uma outra função não
democrática, a de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras,
mudar para manter as coisas como estão. Não podemos generalizar mas precisamos
observar.
Percebendo que a democracia é apenas
tolerada pelos que efetivamente detém o poder econômico na modernidade, são
comuns as rupturas. Toda vez que esta democracia serve como canal de conquista
de poder daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura ou tentativa de
ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de
golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e
Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o
golpe em Honduras e em 2011 e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012, são
alguns exemplos.
Assim, após o constitucionalismo
liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem
acompanhada dos constantes golpes que geram formas de autoritarismo.
A relação de poder nestas duas
formas alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas
distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas
permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos
ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou permissões
paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da
total submissão ideológica, no totalitarismo, onde o poder concede, mesmo não
havendo possibilidade do pedido. No totalitarismo o poder, além de criar o que
os submetidos vão desejar; ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda
que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder).
Portanto temos nestas duas
estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador
paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos
inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do
poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às
demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que
efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo.
Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a
partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas e redirecionadas.
Diferente de submissões (ditaduras e
totalitarismos) e de permissões ("democracia" representativa
majoritária), um espaço de conquista de direitos não hegemônico significa que o
poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum,
onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre
provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritário (o que acontece na
Bolívia, no Estado Plurinacional).
INFILTRAÇÕES
Vimos que a Constituição brasileira
anuncia uma nova perspectiva de compreensão dos direitos de igualdade e
diferença ao reconhecer o direito à diferença como direito individual e
coletivo. Compreendemos que a modernidade se funda em um projeto hegemônico e
europeu que para justificar-se estabeleceu e reproduziu a lógica binária de
subalternização do outro diferente: nós versus eles. Assim o direito e o estado
moderno tem um objetivo essencial que persegue nestes duzentos anos de
modernidade e do qual depende a continuidade do poder centralizado, hegemônico
e hierarquizado deste estado moderno: a uniformização de valores e
comportamentos que passa pela uniformização do direito de família e de
propriedade, o que viabiliza o poder central do estado e da economia moderna.
Partindo destes pressupostos vamos desenvolver a ideia de um direito à
diversidade individual e coletivo como um novo paradigma constitucional que
ultrapassa a lógica binária e um direito à diferença como direito também
individual e coletivo.
Antes de analisarmos a diferença
entre estes direitos de diferença e diversidade vamos procurar compreendê-los
como infiltrações modernas. O que seriam estas infiltrações? Como elas ocorrem
e quais podem ser suas consequências?
No conceito que brevemente
construímos de modernidade vimos que esta é europeia, não existe para todos, é
hegemônica e necessita de uniformizar os menos diferentes, expulsando,
excluindo, exterminando, encarcerando os considerados mais diferentes nestes
500 anos de modernidade europeia. Delimitando o conceito de modernidade em sua
tarefa hegemônica de criação de uniformidades (padrões), podemos compreender
como "infiltrações" os movimentos que contrariam este objetivo.
Temos uma hipótese que se abre para
comprovações e refutações que muito poderão ajudar na compreensão deste projeto
moderno. Em medidas distintas, os movimentos de resistência e por ruptura,
reproduzem os elementos essenciais da modernidade: padronização, uniformização
e pensamento binário subalternizado (nós civilizados versus eles
incivilizados), que se reproduzem em discursos mitológicos da modernidade como
o "universalismo" europeu; a separação do indivíduo da natureza; o
desenvolvimento linear que sustenta o discurso civilizatório ocidental. Mais,
em medidas distintas, os pensamentos político, econômico e filosófico modernos
reproduzem estas hegemonias e mitos, o que pode ser encontrado, por exemplo, em
Hegel, Kant, Marx, e nas construções políticas, econômicas e filosóficas do
liberalismo, socialismo, comunismo, social-democracia e claro, no
conservadorismo de direita, assim como nas exacerbações modernas do fascismo e
do nazismo. Há algo de não moderno? Onde existem as infiltrações e quais são os
movimentos de resistência efetiva que escapam do núcleo moderno?
Neste sentido analisamos o direito a
diferença (individual e coletivo) e o direito à diversidade (individual e
coletivo).
DIEITO À DIFERENÇA
Em que medida ou quantas vezes a
luta e a conquista de direitos dos grupos subalternizados não foi transformada
em permissões de "jouissance" que enquadraram os
"diferentes" nos padrões modernos? O direito à diferença pode ser
considerado uma infiltração na modernidade que pode destruir sua represa de
uniformização e subalternização?
O direito à diferença confronta e
desafia a tarefa do estado e do direito moderno de uniformização de
comportamentos e valores, e de encobrimento, expulsão, encarceramento ou
eliminação daqueles grupos ou pessoas que resistem ou não se adéquam à
padronização. O padrão moderno de hegemonia do "homem branco europeu"
construiu uma sociedade androcentrica, estabelecendo a sua primeira
"outra" diferente: a mulher. A relação entre homens e mulheres,
marido e mulher, explicita o dispositivo "nós" superior e
"elas" inferior[11].
As lutas das mulheres pela ressignificação de seu sentido social, pode se
apresentar de três formas: como resistência; como busca por ruptura; ou ainda, como
infiltração, ao negligenciar o padrão masculino. Em todos os casos, vemos uma
ameaça ao projeto moderno.
Esta luta por direitos das mulheres
(direito a diferença enquanto um direito individual) e os seus mais recentes
fatos e construções teóricas, é importante para exemplificarmos o que
entendemos por resistência; busca de ruptura (confronto); negligencia (infiltrações);
assim como a transformação desta luta em assimilações e permissões por contaminações
pela modernidade.
O luta pelo direito à diferença pode
ser entendido como uma infiltração no projeto moderno de uniformização e
subalternização do outro (diferente) na medida em que, os movimentos sociais
diversos, que lutam por "reconhecimento", forçam sua entrada no
sistema, criando tensões e contradições que podem levar ao comprometimento,
transformação e até ruptura do sistema moderno. Será? Como o sistema reage a
estas tensões? Primeiro, ao pedir reconhecimento, este pedido significa entrar
no sistema. O pedido de reconhecimento pelo sistema é um pedido de acolhimento
pelo sistema, o que pode significar que estamos a um passo da transformação de
um direito em uma permissão, assim como a contaminação desta luta pela lógica
do sistema. Assim, esta luta por reconhecimento deixa de ser contradição em
relação ao sistema (moderno) e passa a ser comandada pelos mesmos princípios
uniformizadores e binários subalternizados da modernidade.
Um exemplo disto podemos encontrar
na história, na luta de mulheres revolucionárias, que já foi por um novo
sistema (ainda há exceções) que supere as exclusões e passou a ser
majoritariamente uma luta pelo reconhecimento de direitos pelo sistema, o que
mantém algum tipo, sempre, de exclusão. A líder operária norteamericana
"Mother Jones" (Mary Harris, imigrante pobre irlandesa que participou
da fundação do partido socialista dos EUA em 1901) discursou no inicio do
século XX: "Fora a derrota total do sistema capitalista, não vejo nenhuma
solução. Em meu juízo, o pai que vota pela perpetuação deste sistema é tão
assassino quanto se pegasse um revolver para matar seus próprios filhos."[12]
O projeto de mudar todo o sistema é
transformado, nas últimas décadas do século XX, em reivindicações pontuais e
fragmentadas, de grupos que passam a atuar individualmente e reproduzem a
lógica moderna "nós x eles" como por exemplo "nós" mulheres
versus "eles" homens. Judith Butler[13]
nos chama atenção para muitos casais gays femininos que reproduzem a lógica
binária "masculino versus feminino" fundado no pensamento binário de
subalternidade do outro, onde se vê uma pessoa assumindo o papel masculino de
opressão (com violência física e/ou moral) sobre a outra pessoa do casal que
desempenha o papel histórico moderno da subalternidade feminina.
Butler nos chama a atenção para a
necessidade de superar o pensamento binário na questão de gênero (ou mesmo
superar o gênero) para evitar reproduzir a opressão binária presente no
conceito de sexo (bilógico) e de gênero (social cultural naturalizado).
Citando Judith Butler:
"Aunque algunas lesbianas
afirman que la identidad lésbica masculina no tiene nada que ver con "ser
hombre", otras sostienen que dicha identidad no es o no ha sido más que un
camino hacia el deseo de ser hombre. Sin duda estas paradojas ha proliferado en
los últimos años y proporcionan pruebas de un tipo de disputa sobre el género
que el texto mismo no previó."[14]
Ao se referir ao não previsto no
texto, Judith Butler se refere a um texto seu que fundamentou o inicio do
desenvolvimento da teoria Queer.
Vemos aí o exemplo de que, o que
aparece como resistência, se transforma em luta por ruptura e reconstrução de
sentidos, pode acabar por se transformar em aceitações de
"permissões" que contaminam a luta por direitos de diferença
reproduzindo de novo o padrão moderno "uniformizador" e "binário
opressivo" que rebaixa ou subordina um outro, qualquer outro.
A história do movimento gay, em busca de revolução e
construção de uma outra sociedade onde haja espaço para "todxs"[15],
nos ajuda a compreender as perigosas armadilhas modernas e nos leva ainda a entender
como, mesmo exigindo uma outra sociedade igualitária economicamente (e não só),
a esquerda caiu em várias armadilhas modernas: "En la noche del 27 de
Junio de 1969, la polícia irrumpe en Stonewall Inn, un bar gay de Nueva York
frecuentado por travestis afroamericanos y portorrinqueños. Aropellos, redadas,
arrestos: el control se excede e degenera. Se suceden tres noches de motines
que radicalizan el movimiento homosexual y desenbocan en la creación del Gay
Liberation Front (GLF)".[16]
Na obra "Gay Manifesto" de
Carl Wittman (1970)[17],
o autor assiná-la que é necessário unir a luta dos oprimidos associando
compromisso revolucionário com emancipação social. Para o autor é necessário
perceber que os heterossexuais, assim como os brancos, homens, anglofonos e
capitalistas, só percebem o mundo em um registro binário hierarquizado onde 1 é
inferior a 2 que é inferior a 3 e assim por diante. Não há lugar para a
igualdade e as oposições binárias sempre remetem a um inferior: homem/mulher;
heterossexual/homossexual; patrão/empregado; branco/negro; rico/pobre. Nos EUA
o movimento revolucionário Gay pretende estabelecer uma nova ordem que lute por
um mundo sem os padrões uniformizadores e o padrão binário de subalternização
do outro. Na década de 1960/70 o discurso do GLF seduziu o Black Panther Party
(BPP) e os lemas "Black is Beautiful" e "Gay is good" foram
vistos juntos. Em 1970, na "Revolutinary People's Constitutional
Convention" defendia-se a união das lutas dos "outros"
subalternizados e excluídos pela modernidade: a união de negros, mulheres e
gays para a construção de um outro mundo.
Na década de 1970, dezesseis grupos
revolucionários como o Gay Liberation Front, representando 10 países, se
reuniram para formar uma Internacional Homossexual Revolucionária (IHR). Na
França, a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) associava a defesa
de mudanças radicais dos costumes e transformação social. Esta história nos é
especialmente importante para pensarmos nossa hipótese. A defesa da Frente é a
mudança da sociedade, ruptura com o capitalismo e o que este sistema econômico
traz com ele: a uniformização de costumes e valores assim como com os registros
binários (o dispositivo moderno nós superiores versus eles inferiores).
Tratava-se mais do que uma resistência, era a ruptura e a ressignificação do
mundo. Em que medida esta ruptura poderia efetivamente romper com os elementos
essenciais da modernidade acima mencionados? O movimento representava mais do
que uma infiltração nas estruturas modernas, não se tratava apenas (o que não é
pouco) de pessoas e coletivos fazendo diferente no meio do sistema[18],
era abertamente contrário, combatia os alicerces modernos uniformizadores e
binários: não apenas negligenciava (profanava) o sistema mas o combatia
frontalmente[19].
Na luta por transformação a FHAR
procurou alianças políticas. Os seus militantes atuavam em grupos de trabalhos
temáticos, distribuíam folhetos e organizavam reuniões de informação. A
aproximação com o Partido Socialista francês não funcionou. Bem moderado, o
Partido atuava dentro do jogo político representativo moderno e entendendo ser
prudente e conveniente para seus interesses, dizia que as preferências sexuais
pertenciam à esfera privada (grave equivoco) e que não mereciam posições
políticas. O Partido Socialista Unificado, é mais simpático às FHAR mas não
compartilha das propostas revolucionária da Frente. Diante disto, os olhares se
voltam à extrema esquerda. Guy Hocquenghem, comprometido com a organização
maoista VLR (Vive la Revolution) sugeriu a utilização do períodico "Tout", na época dirigido por
Jean Paul Sartre, que abre as portas à Frente. Alguns membros das FHAR redigem
as quatro páginas centrais do periódico. Defendem, entre outras coisas, que os
homossexuais saiam do gueto mercantil em que a sociedade burguesa os colocou.
No dia 1 de Maio de 1971 as FHAR procuram se aproximar ainda mais do movimento
operário. Alguns gays radicais desfilam ao lado dos sindicatos carregando um
grande cartaz que diz: "Abaixo a ditadura dos normais". Entretanto, a
aceitação do movimento revolucionário gay encontrará muitas dificuldades e será
combatido à direita e à esquerda. De maneira que ilustra bem a nossa hipótese (da
necessidade de compreender a modernidade para compreender o capitalismo e as
possibilidades de sair deste sistema), o discurso binário de esquerda é
reafirmado: a luta é entre capital e trabalho; trabalhadores versus
capitalistas, e não entre normais e anormais. Este discurso ignora todos os
ataques ao pensamento e a luta de esquerda que foi criminalizada e "anormalizada"
no decorrer do século XIX e XX, sendo combatida com o direito penal, a medicina
e a psiquiatria. Este discurso reproduz o pensamento binário subalternizado e a
uniformização, essenciais à modernidade, e tarefa principal do estado e do
direito modernos. A esquerda caía na armadilha moderna, se é que, efetivamente,
esteve, de forma majoritária, fora dos grilhões da modernidade[20],
em algum momento. A concepção de história, de esquerda, foi, e ainda é, em
muitos casos, uma concepção linear moderna, encontrando, entretanto,
importantes críticas em autores como Walter Benjamin. [21]
O flerte entre o movimento
revolucionário e o projeto revolucionário operário tem um triste episódio que
pode ilustrar como o Partido Comunista Francês sucumbe à modernidade, e logo,
compromete qualquer projeto revolucionário efetivo[22].
Em 1972, Pierre Juquin resume a posição do Partido Comunista Francês afirmando
que: "La cobertura de la homossexualidad o de la droga nunca tuvo nada que
ver con el movimiento obrero. Tanto una como la otra representan incluso lo
contrario del movimiento obrero."[23]
Durante um encontro do Partido,
Jacques Duclos (que foi candidato à presidência da França pelo PCF), ao ser
perguntado por um militante das FHAR se o Partido Comunista tinha revisto suas
posições sobre supostas perversões sexuais, agride verbalmente de forma
violenta todos os militantes gays com um discurso muito semelhante a um
discurso religioso de direita, ao afirmar que "as mulheres francesas são
sãs; o PCF é são; os homens são feitos para amar as mulheres".[24]
O que assistimos desde então, é uma
cada vez maior fragmentação das lutas por direitos, o que compromete o seu
sucesso, facilita o atendimento de demandas por meio de permissões, divide os
grupos oprimidos ("elxs") e inviabiliza ou dificulta extremamente
qualquer projeto alternativo de construção de uma sociedade plural, não
hierarquizada (entre nós versus eles) e não excludente. Um ponto para
investigação e reflexão pode ser realizado a partir destas conclusões: em que
medida o movimento gay, o movimento feminista, entre outros, de movimentos de
resistência, de ruptura ou de negligencia (profanação) em relação à modernidade,
se transformaram em movimentos reivindicatórios de permissões de
"jouissance" por parte do estado. Fica, por enquanto, a provocação.
Ao combater o capitalismo moderno,
as esquerdas e vários de seus mais importantes pensadores (não generalizando, é
claro), reproduzem a lógica binária; a linearidade histórica e o universalismo
"europeu", estranhando e subalternizando o diferente. Mais uma vez ocorre
a contaminação pela modernidade de lutas de resistência ou de lutas por
rupturas. Vislumbramos lutas internas de transformação da modernidade, mas as pretensões de rupturas
revolucionárias não se mostraram tão profundas, pois, ao pretender romper com a
economia capitalista moderna, estes movimentos não foram capazes de ver dispositivos
modernos uniformizadores e excludentes, mantendo-os intactos. Pensando desta
forma, a ruptura não era tão grande assim, e talvez este ponto tenha sido um de
seus grandes problemas: a violenta ruptura revolucionária manteve funcionando
os dispositivos e mecanismos modernos mencionados. A revolução deve ser para a
superação da modernidade (sua essência excludente uniformizadora e binária
opressora) e não apenas contra um sistema de produção essencialmente excludente
pois binário opressor e uniformizador: o capitalismo. Acrescentamos neste ponto
uma reflexão importante a partir de Agambem e o seu conceito de profanação:
talvez a revolução não precise e não deva ser contra a modernidade, mas a
revolução radical ocorrerá com a "profanação" da modernidade, com a
negligência diária aos seus mecanismo excludentes e uniformizadores: a isto
chamamos de infiltrações. Estas infiltrações diárias aumentam constantemente
até um ponto de possível ruptura da "barragem" moderna ou sua
superação por meio de transformações estruturais. Um trabalho a ser feito, pode
ser o de identificar as pequenas diárias "profanações".
Judith Butler começa a nos falar em
diversidade, para além da diferença.
DIREITO À DIVERSIDADE
Quando falamos em direito a diferença devemos perguntar:
diferente de que?
Se o direito à diferença enquanto
direito individual é uma infiltração na modernidade, o direito à diferença como
direito coletivo traz um potencial ainda maior de comprometimento da
uniformização moderna. O estado moderno sempre reagiu com enorme violência a
toda tentativa de se estabelecer um sistema alternativo de organização social
que não funcionasse sobre as bases modernas uniformizadas, hierarquizadas e
binárias subalternas. No Brasil, apenas no século XXI encontramos alguns
processos mais efetivos de "reconhecimento" de direito dos povos
quilombolas e sua forma distinta de organização de direito propriedade.
Entretanto, se de um lado se ampliam os reconhecimentos e aumenta a população
quilombola, de outra aumentam os ataques no sentido de descaracterizar sua
cultura e forma de viver e se organizar.
Mas, tudo isto ainda é muito
moderno: ao admitirmos um direito à diferença como direito individual ou
coletivo, admitimos que o estado (moderno) ainda pode e deve estabelecer
padrões superiores de organização social e comportamento individual. Quanto
falamos em direito à diferença devemos nos perguntar: diferente de que?
Respondemos: do padrão civilizatório, do padrão do bom, do melhor, estabelecido
pelo estado e seu direito: "reconheço o outro diferente, na sua diferença,
mas deixo claro sua diferença enquanto algo estranho, que foge aos padrões de
civilização moderna masculina, branca e europeia".
As Constituições da Bolívia e
Equador vêm construir um outro direito: o direito à diversidade enquanto
direito individual e coletivo.
Como mencionado no inicio deste
texto, vários são os pontos de ruptura com a modernidade que podem ser
percebidos e precisam ser discutidos. Estes pontos de ruptura podem significar
uma reconstrução da Teoria da Constituição, da Teoria do Estado e mesmo da
Teoria do Direito modernas. Em vários outros textos trabalhamos alguns destes
aspectos, como a superação da democracia majoritária e a reconstrução da
relação entre Constituição e Democracia; a superação da formula "Roma
Locuta, Causa Finita" que marca o funcionamento do Judiciário moderno e da
mesma democracia representativa majoritária; a superação de um sistema
monojurídico com um único direito de família e de propriedade, por um sistema
plurijurídico; uma nova concepção de pessoa singular plural e processual e uma
nova concepção de natureza que inclui toda a vida, incluindo da pessoa.
O núcleo destas transformações está
na construção de um espaço de diversidade, na proteção constitucional ao
direito à diversidade como direito individual e coletivo. O direito à
diversidade não se confunde com o direito à diferença, que mencionamos
anteriormente. No direito à diferença (individual ou coletivo) o estado e o
sistema jurídico moderno continuam atuando no sentido de reconhecer, de incorporar
aos seus padrões, ainda estabelecendo uma referência de melhor. O processo pode
ser expresso na seguinte equação: o ordenamento reconhece o outro diferente
(estranho, esquisito, fora dos padrões), enquadra na lei, protege sua
manifestação como algo fora do padrão, e permite a existência e manifestação.
Um reconhecimento de existência (como se para existir fosse preciso o olhar
deste grande pai: o estado e seu direito) e uma permissão de "jouissance".
As lutas de diversos grupos "minoritários" por direitos é uma luta
por reconhecimento e permissão ou por conquista de direito? É uma luta pela
incorporação no sistema ou pela construção de um outro sistema?
O direito à diversidade segue outra
lógica. Em primeiro lugar não há permissões nem reconhecimentos. Não há inclusão
por que não pode haver exclusão. A lógica pode ser resumida na seguintes
frases: "existo e me apresento na minha existência". "Não
dependo do seu olhar ou de seu registro para que eu exista".
Reconhecimento significa conhecer de novo, significa enquadrar no já conhecido.
Trata-se de uma forma de enquadrar o novo nos padrões existentes ou de
simplesmente não conhecer o novo, ou ainda não possibilitar a existência do
novo, como tal, de forma autônoma. Reconhecer significa ainda manter a lógica
binária incluído/excluído. Se sua existência depende do reconhecimento, ao
reconhecê-lo afirmo a possibilidade, também, de não reconhecê-lo.
Na lógica da diversidade não há mais
reconhecimento pois não há mais um padrão do melhor: diferente de que? Não há
mais este "que" ou "quem" que se estabelece como referência
do bom. O outro não é mais o inferior, a ameaça, o medo; o outro se transforma
na possibilidade do novo. O outro é aquele que tem o que eu não tenho, e eu
tenho o que ele não tem. Assim os outros representam uma possibilidade imensa
de crescimento e aprendizado para todos os outros e para mim.
Portanto, um espaço de diversidade é
um espaço de existência livre comum. O espaço de diversidade é o espaço de
diálogo permanente em busca de consensos sempre provisórios. O espaço de
diversidade requer uma postura de abertura para com o outro, os outros. Ouço o
outro não para derrotar seu argumento, não para vencê-lo, o que impossibilita o
diálogo, ouço o outro para aprender com ele assim como o outro me ouve para
aprender comigo. A resultante do diálogo obrigatório nos espaços de diversidade
não será uma fusão de argumentos, nem uma soma de argumentos, muito menos a
vitória de um argumento, mas sim um novo argumento, construído pela postura de
abertura, onde todos devem abrir mão de alguma coisa para que todos possam
ganhar alguma coisa, e tudo pode ser permanentemente discutido e rediscutido.
O direito à diversidade (individual
e coletivo) parte do pressuposto da complementaridade. No lugar de hegemonias,
linearidades históricas, superioridades culturais, missões civilizatórias ou
proselitismos, a diversidade é convivência que tem por base a lógica de
complementaridade: os que os outros têm eu não tenho, os que os outros não têm,
eu tenho, somos assim complementares.
Alternativas: a superação do pensamento binário.
Não
há possibilidade de consenso quando a minha satisfação depende da insatisfação
de outro. Não é possível uma democracia efetiva consensual no sistema
capitalista e as contradições binárias inerentes a este sistema. Consensos
neste sistema, que envolvam questões socio-econômicas, serão sempre ideológicos
(falsos) e os consensos realizados em outros campos tendem a sofrer distorções
ideológicas negativas.
A
lógica moderna fundada no pensamento binário sustenta a modernidade. Uma
armadilha que precisa ser superada.
O novo constitucionalismo
democrático na América Latina, especialmente as Constituições da Bolívia e
Equador, aparece como uma alternativa de superação das engrenagens
uniformizadoras do estado moderno assim como fundamento para a construção de um
outro sistema mundo. No lugar de uma democracia meramente representativa e
majoritária concorrencial é construída a alternativa de uma democracia
consensual fundada na busca do consenso na solução dos conflitos e na
construção de políticas públicas. No lugar de um judiciário que funciona de
forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca permanente da
mediação por meio da construção de consensos provisórios e sempre democráticos,
que objetivem o equilíbrio, ou o restabelecimento do equilíbrio perdido com o
conflito.
Para
que seja possível a construção de uma democracia consensual e de espaços
"comuns", de um direito "comum" é necessário que algumas
dicotomias naturalizadas sejam historicamente superadas como por exemplo: capital
versus trabalho.
Quais são as dicotomias necessárias?
Claro que não vamos responder esta
pergunta agora. Podemos apenas provocar afirmando que, mesmo as dicotomias que parecem
naturais, como dia e noite, claro e escuro, são simplificações falsas e
construções arbitrárias culturais. Não há um dia e uma noite mas um permanente
processo de transformação das condições de clima e luminosidade que se rebelam ao
contar matemático das horas, minutos e segundos. Não há um claro e um escuro
mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da
dicotomia ideologicamente (no sentido negativo e positivo do termo)
naturalizada de homem e mulher sugiro a leitura de Judith Butler.[25] Não
vamos desenvolver estas ideias agora. Isto exigiria muitas páginas e muitas
palavras. Seria um livro inteiro. O que queremos sugerir como reflexão nestas
palavras finais, neste texto, é que as dicotomias que são naturalizadas, não
são naturais, e mais, que devemos superar este pensamento dicotômico binário
para viabilizar consensos democráticos e a superação de uma sociedade e
economia excludentes. A superação da exclusão não se dá pela inclusão, mas pela
superação da dicotomia exclusão versus inclusão. Uma sociedade sem excluídos
será uma sociedade sem incluídos. A mesma lógica pode ser aplicada em outras
dicotomias: pobres e ricos; capital e trabalho; bem e mal; "nós versus
eles"; civilizado e incivilizado. Estas dicotomias não são naturais, não
são necessárias, e de sua extinção depende a construção de uma alternativa ao
violento mundo moderno.
[1]
Professor da UFMG; FDSM e PUC-MG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG.
[2]
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu - a retórica do poder, Editora
Boitempo, São Paulo, 2007.
[3]
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Estado Plurinacional e Direito Internacional,
Editora Juruá, Curitiba, 2012.
[4]
A construção da identidade nacional se constitui em um projeto, também
narcisista, onde me afirmo como nacional superior porque não sou o estrangeiro,
diferente, inferior. A seguinte frase contém esta equação: "sou espanhol
porque não sou índio, africano ou infiel".
[5]
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado - nota sobre os aparelhos
ideológicos do estado, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985, 2 edição.
[6]
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Coleção Estado de Sítio, Boitempo
editorial, São Paulo, 2003.
[7]
MARX, Karl. A ideologia alemã - Feurbach - a contraposição entre as cosmovisões
materialista e idealista - Marx e Engels, Editora Martin Claret, 2006.
[8] Jean-Claude Milner, L'arrogance du
présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[9] Esta
tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como
tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita
pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia
del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires,
Manantial, 2010.
[10]
No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.
[11]
O
lugar da mulher não é o mesmo nas "outras" culturas que foram
subalternizadas na modernidade, embora a subalternidade feminina possa ser
encontrada em vários outros tempos históricos.
[12]
GORN, Elliot J., "Motehr Jones, la madre del sindicalismo
norteamericano" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores);
Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales,
culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.
[13]
BUTLER, Judith. "El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de
la indentidad", Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression,
marzo 2011.
[14]
BUTLER, Judith. "El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de
la indentidad", Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression,
marzo 2011, pag.13.
[15]
"Todxs" é uma tentativa de comunicar o que os idiomas modernos e sua
gramática padronizada não nos permite. Todxs significa inclui para além de
homem e mulher, qualquer dos diversos gêneros socialmente construídos e
existentes, assim como para além de qualquer gênero ou classificações
limitadoras.
[16]
BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et
VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia -
sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires,
Capital Intelectual, 2012, pagina 19.
[17]
BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et
VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia -
sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires,
Capital Intelectual, 2012, pagina 19.
[18]
A ideia de infiltração como contradição interna no sistema, com a presença de
práticas que negam a sua essência e pode, em um momento, comprometer o
funcionamento deste, pode ser complementada pela ideia de negligência,
profanação do sistema, na ideia desenvolvida por Giorgio Agambém em seu livro
Profanações da editora Boitempo.
[19]
Não quero dizer que negligenciar não tem a força de destruir o sistema. Talvez
hoje a negligência em relação ao sistema (a profanação no significado
trabalhado por Giorgio Agambem) seja a maneira mais eficaz de construir um
outro mundo.
[20]
Para entender o texto é necessário lembrar o sentido de "modernidade"
empregado no texto.
[21]
BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et
VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia -
sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires,
Capital Intelectual, 2012, pagina 35.
[22]
Na perspectiva de que a modernidade (representada pelo estado e o direito
moderno) cria e sustenta o capitalismo e logo, qualquer tentativa de superar
este sistema econômico deve implicar na compreensão para superação da
modernidade nos seus elementos nucleares: uniformização e logo rejeição da
diversidade; falsa universalização; justificativas de poder sustentadas sobre o
pensamento binário de subalternização do outro; história linear; separação do
individuo da natureza e concepção de um individuo monolítico, não processual e
isolado.
[23]
[23] BREVILLE,
Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL,
Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales,
políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital
Intelectual, 2012, pagina 19.
[24]
[24] BREVILLE,
Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL,
Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales,
políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital
Intelectual, 2012, pagina 19.
[25]
BUTLER, Judith. El género en disputa - el feminismo y la subverión de la
identidad, editora Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México; Quarta impresión,
marzo 2011.
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