Os pobres na obra de Lucas (Lc e At). E em nós?
Gilvander
Luís Moreira[1]
Os pobres, hoje,
incomodam muitos, comovem outros. Muitos se tornam indiferentes diante da dor e
dos clamores dos pobres. Uns pensam que basta fazer filantropia. Outros se
comprometem com a causa dos pobres e por eles doam a vida. Como o evangelho de
Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos encaram os pobres?
No evangelho de
Lucas (Lc) os pobres não são espiritualizados, como o evangelho de Mateus pode
sugerir à primeira vista, mas têm conotações concretas. São carentes
economicamente, marginalizados e excluídos socialmente. Não têm relevância na
sociedade. Os Atos dos Apóstolos (At), 2º volume da obra lucana, aprofundam
mais essa radicalidade. O apóstolo Pedro, por exemplo, declara-se em absoluta
pobreza, não tendo nem prata e nem ouro, mas somente a Palavra que revigora e
reanima os cansados (At 3,6).[2]
O contraste entre ricos
e pobres transcende as dimensões socioeconômicas. A categoria pobre compreende
presos, cegos, oprimidos (Lc 4,18), famintos, desolados, aborrecidos,
difamados, perseguidos, marginalizados (Lc 6,20-22), coxos, leprosos, surdos e
até mortos (Lc 7,22). Para a ideologia hegemônica, que é sempre a da classe
dominante, pobres são a escória, os dejetos e a imundície da sociedade. São
usados e não amados. A riqueza é, quase sempre, uma armadilha mortal para a
pessoa humana, pois, muitas vezes, envolve a pessoa em um processo de
desumanização, ao prometer estabilidade, reforçar a auto-suficiência e causar
muitas injustiças.
No evangelho de Lucas, as bem-aventuranças
têm uma orientação social (Lc 6,20-23). Dirigem-se aos discípulos como os
verdadeiramente pobres, famintos, aflitos, injustiçados e excluídos do mundo
onde há organização para uma minoria e caos para a maioria. Lucas não tende a
espiritualizar a condição dos seus discípulos, como à primeira vista faz Mateus
nas bem-aventuranças (Mt 5,1-12). As prescrições que Mateus acrescenta — pobres
em espírito, fome e sede de justiça — respeitam a condição
de diversos membros da comunidade mista a quem a narração evangélica é
dirigida. Em Lucas a pobreza, a fome, a aflição, o ódio e o exílio caracterizam
a situação concreta e existencial dos discípulos e das discípulas de Jesus Cristo,
que é quem Jesus declara feliz.
No evangelho segundo
Lucas aparece nitidamente uma opção pelos pobres, contra a pobreza. Os ricos
não são excluídos a priori, mas são
convidados a abandonar a idolatria do capital e do poder e a tornarem-se
pobres. O servo sofredor padre Alfredinho dizia: “O mundo vai virar um paraíso
no dia em que os ricos desejarem passar fome”. Lucas é duro contra os ricos e a
riqueza (Lc 6,24).
“Cuidem dos
enfraquecidos!” (At 20,35). Eis um apelo forte do apóstolo Paulo no seu
testamento espiritual, escrito por Lucas, que conservava na mente e no coração
a imagem de Paulo como alguém que dava atenção especial aos empobrecidos. É
provável que nas comunidades de Lucas, no fim do século I, um desejo grande de
fidelidade ao passado estivesse gerando esquecimento dos empobrecidos e excluídos.
Estes nem sempre podem respeitar as regras da comunidade. Para Paulo, o sinal
por excelência da autenticidade do ministério era o amor desinteressado e
gratuito aos pobres.[3] Essa
opção aparece de modo muito eloqüente quando Paulo diz às comunidades de Antioquia
que a única coisa que a Assembleia de Jerusalém fez questão de alertar foi:
“Nós só deveríamos nos lembrar dos pobres...” (Gálatas 2,10). No discurso aos
presbíteros, em At 20,17-35, Lucas alerta para o cuidado com os pobres, porque
provavelmente os presbíteros estavam preocupando-se menos com aqueles e agindo
mais como “os falsos pastores que apascentam a si mesmos e devoram as ovelhas”
(Ezequiel 34,8-10). Estariam eles gastando mais energias com os ritos do que
com a promoção humana dos excluídos e com a luta por justiça?
A teologia lucana
propõe uma mística evangélica que seja uma Boa Notícia para os pobres, isto é,
para cegos, surdos, mudos, presos, alienados, doentes e pecadores; enfim, para
marginalizados e excluídos. Lucas é muito realista, porque percebe que a Boa
Notícia para os pobres é, normalmente, péssima notícia para os opressores e violentadores
dos pobres. Lucas defende não toda e qualquer notícia, mas apenas aquela que
traz qualidade de vida para todos e para tudo, a partir dos oprimidos.
Jesus de Nazaré,
segundo Lucas, encontra-se com os pobres e com eles se compromete. Sua vida,
que conhecemos também por suas posturas e ensinamentos, caracteriza-se por
encontros com pessoas do seu círculo de amizade e com pessoas do mundo dos
excluídos. Jesus foi sempre um inconformado com as injustiças e com os sistemas
injustos, um sonhador que cultivava a utopia bonita do Reino de Deus no nosso
meio. Jesus tinha os pés no chão, mas o coração nos céus. Era um profeta,
alguém sensível, capaz de captar os sussurros e os apelos de Deus por meio das
entranhas dos fatos históricos. O Galileu foi uma testemunha, um mártir, que
não apenas disse verdades, mas doou a vida pelas verdades que defendia.
Jesus e seu
movimento, em uma postura altamente irreverente, deixam-se envolver,
apaixonar-se, compadecer-se pelo povo sofrido e revelam um grande esforço de
transformação. Desmistificam o que é mistificado pelo senso comum. Des-idolatram
deuses e ídolos que concorrem em uma imensa gritaria tentando seduzir as pessoas
para projetos escravizadores. Des-sacralizam o poder, desmascarando o poder
religioso, o político e o econômico que, endeusados, promovem grandes
atrocidades. Des-dualizam a forma de encarar a realidade — com Jesus, “o véu do
templo se rasga” (Lc 23,45) e “ninguém deve chamar de impuro aquilo que Deus
criou” (At 10,15). Não há mais separação entre puro e impuro, entre santo e
pecador, entre transcendência e imanência, entre dentro e fora, entre sagrado e
profano, entre céu e terra, entre humano e animal etc. Tudo e todos são
banhados pela dimensão divina e transcendente da vida. Em cada um(a) de nós
estão o feminino e o masculino, o bem e o mal, o sagrado e o profano.
Enfim, oxalá esta
rápida retrospectiva sobre a relação de Jesus e seus discípulos/as com os
pobres nos inspirem na construção de uma sociedade para além do capitalismo e
para além do capital.
Belo Horizonte, MG,
Brasil, 04 de fevereiro de 2013.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela
UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela
FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho
Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
facebook: Gilvander Moreira
[2] Cf. também At
4,32.34-35; 2,44-45; 4,37.
[3] Cf. Gl 4,17; 2Cor 11,8-9; 12,13; Cf. também
escritos posteriores, como: 2Tm 3,2.6-9; Tt 1,11; 2Pd 2,3; Didaqué 11,5-6.9.12.
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