Defensorias públicas: de pires nas mãos
ou autônomas?
Gilvander Luís
Moreira[1]
Após muita luta e 16 meses de tramitação,
em novembro de 2012, foi aprovado por unanimidade no Congresso Nacional o PLC
114/11 que concede autonomia financeira e administrativa às defensorias
públicas, ao desvincular o orçamento de pessoal das defensorias estaduais das
despesas do Poder Executivo estadual, como já ocorre com a Magistratura e o
Ministério Público. Pelo projeto, os estados poderão investir até 2% do
orçamento líquido para as defensorias estaduais. Tempo para chegar aos 2,%: cinco
anos. Mas, para espanto e indignação de todos que lutam por justiça social, por
democracia substantiva, a Presidenta Dilma, na noite do dia 19 de dezembro de
2012, vetou o PLC 114/11. Assim, o Governo Federal deu um presente de grego
às/aos defensoras/res públicas/os estaduais e manteve o bloqueio econômico e
político que impede o acesso de 80 milhões de empobrecidos à justiça. Motivo
alegado: pressão de muitos governadores que argumentaram que o PLC 114 era
contrário ao interesse público e inviabilizaria o orçamento de vários estados.
Isso não é verdade. É uma desculpa estapafúrdia.
No Seminário Nacional sobre Defensoria
Pública na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), realizado dia 06 de fevereiro
último, no Congresso Nacional, em Brasília, do qual tive a alegria de participar,
ficou demonstrado que 58% das comarcas do Brasil estão sem defensoras/res
públicas/os,[2]
o que inviabiliza equilíbrio entre acusação e defesa nos milhões de processos que
envolvem os pobres. No Brasil, há cerca de 15 mil juízes, 15 mil promotores de
Justiça (?) do Ministério Público, mas há menos de 5 mil defensoras/res em 24
estados. Há ainda três estados iniciando a implantação de defensoria pública:
Goiás, Paraná e Santa Catarina. A Constituição Federal irmana em igual
dignidade o Ministério Público e as Defensorias Públicas (CF, art. 127 e art.
134), além de prescrever que as defensorias prestem orientação jurídica e
defenda em todos os graus os pobres. Mas na realidade, o Ministério Público
está sendo o irmão rico e as defensorias, o irmão pobre. Oitenta milhões de
brasileiros dependem diretamente da defensoria para tentar acessar a justiça. O
Governo do estado do Acre, por exemplo, reduziu o orçamento da defensoria pública
de 2 milhões para 1,8 milhões de reais, mas, em apenas 6 meses, pagou
R$1.360.000,00 para advogados dativos. A comarca de Peçanha, no interior de
Minas Gerais, gasta cerca de 50 mil reais com advogados dativos por mês. A
Comarca de Medina, no Vale do Jequitinhonha, MG, de 40 a 70 mil reais. São os
juízes que determinam quanto um advogado dativo recebe, dentro da margem
prescrita pela OAB. Um advogado dativo, que é chamado na hora da audiência pelo
juiz, muitas vezes, sem nunca ter conversado com o cliente, não atua
extrajudicialmente, nem com os movimentos sociais populares, nem em mediação e
nem em conciliação e, pior, muitas vezes, sem a competência técnica e sem a paixão
pela defesa dos pobres, que, salvo raras exceções, é característica básica encontrada
nas/os defensoras/res. Os advogados dativos atendem somente aos processos.
As/os defensoras/res atendem as pessoas pobres de forma integral, trabalham em
rede com outras/os defensoras/res e em diálogo com os movimentos sociais
populares. Um advogado dativo não pode entrar com Ação Civil Pública, que é um
instrumento jurídico utilizado na defesa da coletividade, ajudando assim a agir
preventivamente para que diminua o caos social e garanta a eficácia de direitos
sociais fundamentais.
A ausência de defensoras/res em 58% das
comarcas do Brasil[3]
abre caminho para os prefeitos da maioria das cidades brasileiras contratarem advogados
para atender aos pobres, mas esses, muitas vezes atendem somente aos que não
vão desagradar os interesses eleitoreiros do prefeito. A massa de pobres,
negros e jovens, que estão presos, dificilmente são atendidos por esses
advogados. Assim, o clientelismo político vai sendo eternizado, pois cada
família que tem algum membro ajudado pelo advogado do prefeito se torna presa
fácil na próxima eleição. “Se os governos
estaduais remunerassem os defensores públicos como remuneram os advogados
dativos, quebraria os estados”, alertou um deputado.
Na maioria dos estados, um/a defensor/a
público/a estadual ganha apenas 50
a 60% do salário de um promotor. A defensoria de Minas
Gerais paga o 17º menor salário do país, além de que só há defensores em 30%
das comarcas de Minas. Do dinheiro que vai para a Justiça, no Brasil, 69% vai
para o judiciário, 26% para o Ministério Público e apenas 5% para as
defensorias públicas. Assim fica tremendamente desigual o acesso a justiça.
Cadê a equidade no acesso à justiça?
Além da falta de muitos concursos para,
no mínimo, triplicar o número de defensoras/res, faltam também concursos para
constituição de um corpo técnico que possa, com competência, assessorar o
trabalho das/os defensoras/res. Por exemplo, é imprescindível para o desempenho
da função constitucional de defender os pobres que as/os defensoras/res tenham
secretárias, atendentes, assessoras/res, médicos, arquitetos, engenheiros
civis, psicólogas, sociólogos etc. Falta dinheiro para remunerar estagiários em
número necessário e compatível com a demanda das/os defensoras/res. Para
mitigar isso se recorre a diversos órgãos do estado para ceder funcionários. Assim,
as defensorias ficam dependendo da boa vontade das autoridades de plantão.
“A
gente tem que ficar de pires nãos mãos se ajoelhando junto aos governos
estaduais para conquistar uma migalha de orçamento, de 0,3 a 07% apenas, na maioria
dos estados. Assim se coloca um tapume ao acesso dos pobres a justiça”,
lamentam muitas defensoras.
Se o número de defensoras/res fosse
triplicado, se poderia investir em mediação e/ou conciliação de conflitos, o
que desafogaria, em parte, o judiciário. A/o defensor/a é uma autoridade que
atende aos pobres. “Muitas vezes, com um
ofício requisitando um direito conseguimos reparar um direito que está sendo
negado aos pobres”, relatam muitas defensoras.
A Lei orgânica (LCP 132/2009) exige a
criação de Ouvidorias Externas em todas as defensorias públicas estaduais, mas
até agora só há ouvidorias externas em defensorias de sete estados, entre os
quais, Ceará, Acre, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. A Ouvidoria Externa,
escolhida a partir de lista tríplice proposta pela sociedade civil, é canal
importantíssimo para a realização das funções da Defensoria e valorização desta
junto à sociedade.
A presidenta Dilma, ao vetar o PLC
114/2011, fez uma grande injustiça, pois se a presidenta voltar atrás e
sancionar o PLC 114 ou o Congresso Nacional derrubar o veto, dentro de cinco
anos, o orçamento das defensorias públicas estaduais será elevado de 0,5% para
2,% do orçamento líquido dos estados. Isso dará autonomia financeira e
administrativa para as defensorias. É mentira dizer que alguns estados
quebrariam. Há muito dinheiro sendo investido em obras de interesse de grandes
empresas. Mais: Nas cidades onde não há defensorias públicas, o IDH é muito
baixo. Em uma cidade sem defensor/a público/a aumenta a espiral de violência, abarrota
a área criminal, superlota as prisões e onera o Sistema Único de Saúde. Isso
porque muitos conflitos, se não são resolvidos por mediação ou conciliação ou
por ações judiciais proposta por defensoras/res, acabam desaguando em crimes
que geram violência em uma progressão geométrica.
Tenho acompanhado muitas lutas no campo
e na cidade, em Minas
Gerais e no Brasil, lugares onde os pobres estão sofrendo
diversos tipos de injustiças sociais. Nestes lugares sempre contamos com a
presença de Defensoras/es aguerridas/os, verdadeiros profissionais que
insistentemente lutam na defesa do direito fundamental de acesso à justiça
daquelas pessoas que não podem contratar advogados. Uma luta que está para além
dos direitos individuais, mas que gesta uma sociedade com mais justiça e
equidade.
Enfim, sem o fortalecimento, sem
autonomia e sem empoderamento das defensorias públicas, - o que é, na prática,
partilha de poder -, não haverá no Brasil acesso a justiça para todos, nem
democracia substantiva e nem estado democrático de direito.
Felizes os que são perseguidos por causa
da luta por justiça. “Eu vim para trazer
uma boa notícia aos pobres, para libertar os presos” (Lc 4,18), disse Jesus
de Nazaré no seu discurso programático na pequena sinagoga de Nazaré, na
Palestina. Logo, vetar o PLC 114/2011 é dar uma péssima notícia aos pobres, é
dizer: ‘vocês que estão sendo injustiçados vão continuar sendo pisados, porque
o Estado não vai alimentar quem defende vocês que são pobres.’ Isso é
antievangélico. Como a viúva do evangelho que não se cansou de ir todos os dias
ao tribunal e cobrar insistentemente justiça, não repousaremos em paz até
conquistarmos a autonomia, o fortalecimento e o empoderamento das defensorias
públicas estaduais e a da União. Essa luta é justa, sagrada e necessária.
Conclamo todas as pessoas de boa vontade, os movimentos sociais populares,
enfim, a todas as forças vivas da sociedade a se engajarem na luta em prol do
empoderamento das defensorias públicas. Defensorias públicas de pires nãos
mãos, não; Defensorias públicas autônomas, sim!
Belo Horizonte, MG, Brasil, 11 de
fevereiro de 2013.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela
UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica
pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela
FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho
Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
facebook: Gilvander Moreira
[2]
Outras fontes dizem que há defensores públicos em apenas 25% das comarcas do
Brasil.
[3]
Ou em 75% segundo outras fontes.
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