O controle de constitucionalidade e a reforma
do Poder Judiciário: a necessidade de um novo Supremo Tribunal Federal
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
A
primeira classificação das formas de controle de constitucionalidade diz
respeito a natureza do órgão ou órgãos que a exercem. O nosso sistema é misto
uma vez que existe um controle prévio feito pelo Congresso nacional através de
suas comissões assim como pelo presidente da república quando da possibilidade
de vetar uma lei por ser inconstitucional, o que caracteriza um controle prévio
e político. Após promulgada e publicada a lei o judiciário tem a competência de
exercer um controle repressivo que pode ser concentrado através por exemplo das
ações diretas de inconstitucionalidade por ação (artigo 102 inciso I, a CF e
lei 9.868-99) ou omissão (artigo 103 parágrafo 2 CF e lei 9.868-99), a ação de
constitucionalidade (artigo 102, I, a e artigo 103 parágrafo 4 CF e lei
9.868-99) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (artigo 102
parágrafo 1 e lei 9.882-99) e pode ser difuso, onde qualquer pessoa pode
proteger ou resgatar direitos ofendidos por lei ou ato inconstitucional perante
o órgão judiciário competente.
Desta
forma o controle será político quando exercido por órgão que pertença ao poder
executivo ou legislativo ou exercido diretamente pelo parlamento (auto-controle
como Holanda, Luxemburgo e Finlândia), poderes que exercem funções
predominantemente políticas e não pelo poder judiciário, que exerce função
predominantemente técnica. O controle será político também quando exercido por
Corte Constitucional (ou Tribunal, ou Conselho) que não integrem o poder judiciário
e tenham composição predominantemente determinada por critérios de escolha
política.
Um
exemplo de Estado nacional que exerce o controle político, concentrado e prévio
de constitucionalidade é a França. Decorre do movimento revolucionário francês a
partir de 1789 a grande desconfiança em relação ao tribunais, intimamente
ligados ao antigo regime. No ano III da Revolução Siéyès propôs à Convenção a
criação de um Júri Constitucional que deveria se colocar acima dos poderes do
estado. A idéia foi rejeitada mas serviu mais tarde como base do atual Conselho
Constitucional previsto na Constituição francesa de 1958.[1]
Como já mencionado, este sistema traz um sério problema ao permitir, ou mesmo
exigir, o cumprimento indiscriminado da norma legislativa pelo Judiciário, uma
vez que este poder não pode se manifestar sobre sua inconstitucionalidade.
Entretanto, decorrente da diferença que expusemos entre jurisdição
constitucional e controle de constitucionalidade, nada impede (a não ser a
falta de tradição) que o juiz francês promova a interpretação
constitucionalmente adequada. É importante lembrar que na Europa um dos raros
países que expressamente confere o controle de constitucionalidade à
magistratura é a Irlanda (e mesmo assim apenas às duas cortes superiores).
A
criação de Cortes (tribunais ou conselhos não pertencentes ao judiciário), como
alternativa ao auto-controle de constitucionalidade pelo legislativo (o
parlamento ou órgão do parlamento) ocorre após a primeira grande guerra. Sob a
influência de Kelsen criou-se na Áustria em 1920 um órgão especial de caráter
constitucional ou seja uma Corte de caráter jurídico-político, a Corte
Constitucional. Órgãos semelhantes encarregados do controle de
constitucionalidade foram também criados na Tchecoslováquia em 1920; na Espanha
republicana em 1931 e na Espanha democrática de 1978; Itália em 1947; Alemanha
Federal em 1949; Chipre, 1960; Turquia, 1961; Iugoslávia, 1963 e 1974;
Guatemala, 1965 e Chile, 1925.[2]
Interessante ainda lembrar a proibição da Constituição austríaca de 1920 dos
tribunais apreciarem a validade de leis regularmente publicadas. A Itália e
Alemanha que adotaram sistemas semelhantes no pós segunda guerra inspirados no
Austríaco de 1920, no que diz respeito ao limite imposto ao judiciário traz um pequeno
avanço: os órgãos do poder judiciário não podem declarar inconstitucionalidade
mas qualquer magistrado tendo dúvidas sobre a constitucionalidade de uma lei
que devem aplicar em um caso concreto submetido a sua apreciação, deve
suspender o julgamento e remeter os autos à Corte (Tribunal) Constitucional,
que então decidira a respeito da questão constitucional.[3]
Quanto
ao controle judicial (exercido por um órgão – controle judicial concentrado- ou
vários órgãos – controle judicial difuso – do poder judiciário) tem sua
principal contribuição retirada da história constitucional do Estados Unidos da
América do Norte. Embora os precedentes de controle de constitucionalidade das
leis, judicial e difuso, possa ser encontrado na história da Inglaterra, a afirmação
desta doutrina se deveu ao Direito Constitucional norte-americano. De forma
diferente da tradição inglesa de reconhecimento da soberania do parlamento, a
doutrina construída nos EUA desenvolveu a técnica de atribuir um valor superior
da Constituição frente as leis ordinárias. Após a independência do EUA em 1776,
encontramos a comprovação da afirmação acima na decisão do Chief-Justice
Brearley do Supremo Tribunal de New Jersey, em 1780, ficou decidido que a corte
tinha o direito de sentenciar sobre a constitucionalidade das leis. No mesmo
sentido encontramos decisão do judiciário do Estado de Virginia em 1782; Rhode
Island em 1786; na Carolina do Norte em 1787 e em Nova York tribunal refutou
lei por ser inconstitucional, pois havia reduzido para seis o número de
jurados.[4]
O
controle de constitucionalidade das leis construído na história dos Estados
Unidos da América do Norte é muito importante para o Direito brasileiro, que
sofreu influência do direito constitucional europeu continental e
norte-americano. Os precedentes acima citados servem para compreender como
precocemente foi construído o controle judicial das leis mas um caso em
especial é fundamental para explicar o controle judicial e difuso da
constitucionalidade, onde todo órgão do poder judiciário, do juiz de primeira
instância até os tribunais superiores podem se manifestar sobre a
constitucionalidade ou não de uma lei: a caso Marbury versus Madison.
No
caso que criou as bases do controle judicial difuso de constitucionalidade das
leis, o juiz do caso Marshal tinha interesse direto na solução do caso. O
presidente dos Estados Unidos neste momento era Adams e o seu secretário de
estado John Marshal, os dois do partido federalista, derrotado por Thomas
Jefferson e seus partidários. Antes de deixar o poder o presidente Adams nomeou
seus correligionários para diversos cargos inclusive os vitalícios no
judiciário superior. Um dos beneficiários foi Marshal, nomeado para a Suprema
Corte com a aprovação do Senado. Como secretário de estado, cargo em que
permaneceu até o fim do mandato de Adams, ele não conseguiu se desincumbir da
missão de distribuir os títulos de nomeação já assinados pelo presidente para
todos os indicados a cargos no final de mandato. Um dos títulos não entregues
nomeava William Marbury para o cargo de Juiz de Paz no condado de Washington no
distrito de Columbia. Com a posse de Jefferson como novo presidente dos EUA,
este determinou ao novo secretário de estado James Madison, que não entregasse
do titulo da comissão para Marbury por entender que a nomeação estava
incompleta por faltar a entrega da comissão, onde o ato jurídico se tornaria
completo. Marbury não tomou posse e pediu a notificação de Madison para
apresentar suas razões. Madison não respondeu e Marbury impetrou o mandamus. Diante da complexidade
política do caso a Corte Suprema não julgou o caso durante dois anos causando
reação da imprensa e da opinião pública, aventando-se inclusive a possibilidade
de impeachment de seus juízes. Para
agravar a situação o executivo expressou que uma decisão favorável a
Marbury poderia causar uma crise entre
os poderes, sugerindo que o executivo poderia não cumprir um decisão do
judiciário. Marshal (nomeado pelo presidente anterior assim como Marbury o
requerente) era presidente da Suprema Corte e que deveria se pronunciar sobre o
caso. O problema envolvia uma situação ético-jurídica muito grave. Marshal
entretanto decidiu: quanto ao mérito reconheceu o direito de Marbury à posse no
cargo, no entanto não concedia a ordem para cumprir a decisão em face de uma
preliminar, evitando assim ver descumprida a sua decisão por parte do
executivo, evitando a crise maior. Assim julgou inconstitucional a lei que
autorizava o pedido diretamente na Suprema Corte pois a Constituição fixou a
competência da Suprema Corte e somente a Constituição poderia ampliar esta
competência. Assim negou o pedido por incompetência uma vez que só poderia
chegar a Suprema Corte em grau de recurso.
Como
se vê o caso envolve situação de apadrinhamento político e esperteza do juiz
que reconheceu o direito mas se julgou incompetente para exigir seu cumprimento
evitando conflito com o executivo. Está aí fundamentado o controle judicial
difuso de constitucionalidade, mecanismo que se tornou importante para a
democracia e para a afirmação do estado democrático de direito hoje adotado no
Brasil. Sua origem entretanto não nasce de altas indagações teóricas, mas de um
conflito entre grupos políticos pelo poder.
No
Brasil a partir da influência norte-americana na Constituição de 1891, temos
uma combinação complexa e extremamente rica e democrática de controle de
constitucionalidade e de jurisdição constitucional. Temos um controle misto no
aspecto político e judicial, temos um controle misto quando combinamos também o
controle difuso, onde todos os órgão do judiciário podem e devem se manifestar
sobre a constitucionalidade das leis e atos com os mecanismos de controle
direto nas ações diretas declaratória de constitucionalidade e de
inconstitucionalidade por ação e omissão e ainda a ação por descumprimento de
preceito fundamental, e temos um sistema misto quando combinamos mecanismo um
controle prévio com os mecanismos repressivos.
Uma
questão decorrente destas classificações do controle de constitucionalidade
surge sobre a natureza do Supremo Tribunal Federal, fortemente inspirado na
Suprema Corte norte-americana, especialmente no seu maior defeito, a forma de
escolha de seus membros. Como órgão que integra o Poder Judiciário os seus
membros são escolhidos por critérios políticos o que faz com que a cúpula do
judiciário decida de forma diferente de todo o Poder Judiciário pois inspirado
muitas vezes por motivações políticas e não técnico-jurídicas. Em abstrato
pode-se dizer que a forma de escolha dos juízes da Suprema Corte nos EUA e dos
nossos ministros do STF, é um mecanismo de fortalecimento do equilíbrio entre
os poderes. Entretanto a história destes tribunais tem nos demonstrado, com
insistência, justamente o contrário.
Um
dos fatores de independência do Poder Judiciário está no democrático método de
escolha de seus juízes: o concurso público. A escolha pelo concurso público
permite isenção política e independência em relação ao executivo e legislativo.
Em países onde membros do Judiciário são escolhidos por outro poder,
especialmente pelo executivo, ocorre o comprometimento da independência do
Judiciário, que deixa de ser, na prática, um Poder efetivo. Não vamos falar
como suposta solução a absurda hipótese de eleição de juízes pelo povo. Isto
significa misturar a busca da segurança jurídica e neutralidade do judiciário,
com financiamentos de campanha, atendimento de interesses políticos, decisões
populistas, decisões ideologizadas, enfim, teríamos o comprometimento do
Direito, que seria engolido pela política.
Portanto
nada melhor do que o concurso público, realizado por órgão público externo ao
poder Judiciário (as universidades públicas por exemplo), para evitar sua
colonização corporativa por parte de um grupo de poder interno e sua estagnação
doutrinária.
Voltamos
a questão se o STF deve ser político ou não. Como já dito, a história nos
demonstrou[5] o
caráter político do órgão de cúpula do judiciário. A história nos mostrou muito
mais: o método de escolha dos membros do STF em geral fortalece o executivo,
como no Brasil no período Fernando Henrique onde o Executivo abafou o
Judiciário e o Legislativo com o excesso de Medidas Provisórias
inconstitucionais[6]. O
contrário pode também ocorrer com o enfraquecimento ou mesmo comprometimento do
governo se as forças políticas no Supremo forem manifestamente contrarias as
forças políticas do parlamento e do executivo, como ocorreu no início do
governo Roosevelt, onde ao final saiu vitorioso o executivo, em mais um exemplo
do comprometimento político da Corte Suprema também nos EUA, desvio este
originado justamente pela forma de escolha dos membros da Suprema Corte.
Diante
da história, torna-se urgente repensar o Supremo Tribunal Federal. A primeira
pergunta seria se deveríamos conceder a este órgão um caráter essencialmente
técnico-jurídico, resgatando o órgão de cúpula do judiciário para o próprio
judiciário ou deveríamos aceitar o seu caráter político como forma de controle
do Judiciário e assim buscar um método de escolha democrático e logo plural,
que evite também fortalecer em demasiado o Executivo, ou por outro lado
inviabilizá-lo.
As
duas soluções são melhores que o método existente ressaltando que, diante de
tudo que falamos sobre jurisdição constitucional, não nos parece inteligente
nem democrático a adoção de mecanismos concentrados políticos ao estilo
europeu, como as Cortes e Tribunais na Alemanha e Itália e muito menos o
Conselho Constitucional francês. A discussão da mudança da forma de escolha do
membros do Supremo com a adoção de mecanismos semelhantes de escolha aos
existentes na Europa, não significa adotar o controle concentrado, o que seria
um terrível retrocesso autoritário.[7]
Na
solução da questão podemos sim buscar subsídios na experiência européia no que
diz respeito a necessidade da adoção de um mandato para os membros da Corte
Suprema ou da participação do legislativo e outros órgãos na escolha de seus
membros, mas sem jamais abandonarmos o controle judicial difuso e lógico, a
jurisdição constitucional difusa.
Entre
as opções acima mencionadas nos parece que manter o acesso ao Supremo somente
através da carreira de juízes ou da eleição de magistrados pode ser uma boa
solução mas que requer mudanças na estrutura do Judiciário com sua
democratização interna e principalmente com mudanças nos concursos públicos
para a magistratura, com a participação de órgão técnico externo ao judiciário
para a realização das provas de seleção. Nesta hipótese corremos entretanto o
risco de fortalecer ainda mais o Judiciário que se nega ao controle externo e
que mantém práticas absurdas, algumas até surrealistas, como a manutenção de
uma pompa que pertence mais a monarquia do que a um poder republicano.[8]
A
melhor solução talvez seja a mescla de modelos como tem sido comum na experiência
constitucional brasileira. Uma sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil se
mostrou interessante: um STF com 15 membros, com mandato de 9 (nove) anos, onde
3 (três) juízes seriam escolhidos pela magistratura, 3 (três) pela Ordem dos
Advogados, 3 (três) pelo Ministério Público e 6 (seis) pelo Congresso entre
professores doutores em
Direito. Teríamos um órgão técnico-político integrando o
Judiciário, democrático na sua escolha e com possibilidade de renovação,
mantido o controle difuso misturado aos mecanismo de controle direto já
existentes.
[1] POLETTI, Ronaldo.
Controle de Constitucionalidade das leis, Editora Forense, Rio de Janeiro,
1995, pág. 57.
[3] PALU, Oswaldo Luiz.
Controle de Constitucionalidade, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,
2001, 2 edição, pág.135.
[5] o mesmo ocorre nos EUA e
para isto basta lembrar o julgamento do recurso do candidato Al Gore a presidência
dos EUA contra a decisão referente a recontagem dos votos no Estado da Flórida
governado pelo irmão do outro candidato eleito (Jeb Bush irmão de George Bush),
onde os juízes em sua maioria escolhidos por presidentes republicanos votaram a
favor do candidato republicano em uma decisão extremamente polêmica e
amplamente denunciada inclusive por renomados juristas norte-americanos.
[6] Medidas Provisórias que
usurpavam o poder do legislativo e desafiavam o Judiciário que entretanto, por
motivações políticas, chamadas de governabilidade, contribuíram para com a
continuidade das práticas autoritárias.
[7] Infelizmente no Brasil foram introduzidos elementos de fortalecimento
do controle concentrado em detrimento do controle difuso, assim como a absurda
sumula vinculante, que sob o pretexto de celeridade compromete o processo
desumanizando-o.
[8] Como absurdo exemplo do
que eu digo lembramos que ainda hoje (2004) só se pode entrar nos Tribunais
Superiores de terno e gravata e juizes federais de primeira instância usam
carros com motorista, um motorista e um carro para cada um. O absurdo simbólico
de um poder que faz questão de se manter longe do povo para de maneira
equivocada manter sua autoridade numa falsa superioridade determinada pela
roupa e pelo luxo de suas construções (costume que vem das monarquias) não
atinge só o Judiciário mas também o legislativo: você sabia que só se pode
entrar no Senado de terno e gravata.
Prof. José Luiz,
ResponderExcluirPubliquei um texto seu no meu blog, em 10 de agosto de 2009. Tratou seu texto da "inconstitucionalidade da dedicação exclusiva". Tenho visto nas Universidades Federais demissão de professor (não querido pelos pares) por conta de possuir um emprego (de docente), além do de professor DE. Uma professora, por exemplo, foi demitida porque era professora de universidade portuguesa - embora ela dava aulas online e nas férias, não prejudicando suas atividades docentes.
A comissão de processo disciplinar, usando de analogia in malam partem, entendeu que ela acumulou dois cargos públicos. Ora, não havendo legislação que justificasse punição à docente por acumulação indevida, já que ela não o fez, usou da famigerada ANALOGIA IN MALAM PARTEM.
O texto no meu blog:
http://otiocelo.blogspot.com.br/2009/08/da-inconstitucionalidade-da-dedicacao.html
Marcelo Henrique
João Pessoa-PB
Prezado Marcelo
ExcluirPois é, todo este controle hipócrita é absolutamente ridículo. Infelizmente vivemos um momento em que somos cada vez mais controlados, momento em que tudo é proibido. Um fascismo disfarçado.
A Universidade tem que ser um lugar de liberdade e o resultado deve ser democraticamente avaliado.
Muitas pessoas ajudaram mais a mudar positivamente o mundo com um pequeno texto do que os milhares de artigos em revistas qualis que não são mais do repetição do que já foi dito centenas de vezes de forma diferente.
Tristes tempos