DEMOCRACIA
E CONSTITUIÇÃO: UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA
O
constitucionalismo não nasceu democrático. E demorou muito tempo para se
democratizar. Precisamos recuperar algumas informações históricas para entender
este processo.
O Estado moderno
(a partir de 1492) foi construído a partir de uma aliança entre nobreza,
burguesia e o rei, aliança esta que ainda é claramente visível na atualidade
europeia, basta ler aquela horrorosa revista de teoria do estado chamada
"Caras". Lá vamos ver por exemplo o ridículo coroamento do rei da Holanda
em meio a crise europeia. Das três esferas de poder territorial (império, reino
e feudo) o estado moderno é construído a partir da afirmação do poder do rei
sobre os senhores feudais (nobres), e da aproximação dos burgueses que,
necessitando da proteção do rei, ajudam a financiar a construção do estado
moderno. A insurreição dos servos ameaça o poder e posição de nobres e
burgueses, que passam a necessitar da proteção do poder real, ou seja, de um
poder centralizado, hierarquizado e uniformizado.
Assim, o
capitalismo moderno se desenvolve a partir da necessária proteção do rei (do
estado) para crescer. Não é possível capitalismo sem estado. O estado moderno
cria o povo nacional, o exercito nacional, a moeda nacional, os bancos
nacionais, a polícia nacional. Sem isto não teria sido possível o desenvolvimento
da economia capitalista. A expansão militar, a conquista do mundo, a exploração
de recursos naturais com a escravização de milhões de pessoas consideradas
inferiores, é fator fundamental para o desenvolvimento da economia capitalista.
A polícia como mecanismo de repressão dos excluídos do sistema é outro fator
primordial. Forças armadas para buscar recursos naturais para alimentar a
indústria e polícia para reprimir os explorados que produzem.
O segundo passo
do estado moderno será o surgimento do constitucionalismo. As revoluções
burguesas representam o amadurecimento da classe burguesa que se desenvolve sob
a proteção do rei. Importante perceber esta aliança que está presente até hoje
nos estados contemporâneos (ainda modernos). A burguesia se desenvolve sob a
proteção do poder do rei, e é justamente quando esta classe consegue mais poder
econômico que a nobreza que então passa a buscar o poder político. Este poder
político é conquistado com as revoluções burguesas. A partir deste período
vamos assistir alianças ou rupturas provisórias com uma posterior acomodação do
poder entre nobres e burgueses que se sustenta na Europa até hoje.
O constitucionalismo
moderno surge da necessidade burguesa de segurança nas relações econômicas, nos
contratos. Constitucionalismo significa, portanto, “segurança”.
O
constitucionalismo nasceu liberal e logo, não nasceu democrático.
Constitucionalismo e democracia são palavras e ideias incompatíveis para o
pensamento liberal na época. Convém neste momento explicitar os significados
históricos dos termos.
Os burgueses,
agora com poder político, conquistado a partir do poder econômico, necessitavam
de uma ordem jurídica estável, que lhes garantisse estabilidade, respeito aos
contratos e a propriedade privada. A essência do constitucionalismo liberal
será a “segurança” nas relações jurídicas por meio da previsibilidade, respeito
aos contratos e proteção a propriedade privada. Agora, pela primeira vez,
existia uma lei maior que o estado: a constituição. A função da constituição
liberal é de afastar o estado da esfera privada, das decisões individuais dos
homens proprietários (mulheres, não brancos e pobres não tinham vez neste
estado liberal). Assim, os burgueses, que cresceram sob a proteção do rei e do
estado moderno, agora construíam uma ordem jurídica que lhes garantia liberdade
para expansão segura de seus negócios. Mais uma vez lembramos: não há
capitalismo sem estado moderno. É o estado moderno que permite o
desenvolvimento da economia capitalista com o exército (para conquista de
territórios com a finalidade de exploração de recursos e de mão de obra)[1]
; com a polícia para reprimir os excluídos (pobres reprimindo pobres); com a
moeda nacional e os bancos nacionais; com o direito nacional para padronizar,
homogeneizar, e logo, coibir toda crítica, toda alternativa.
O
constitucionalismo nasceu liberal (e logo, não democrático) com o objetivo de
limitar o poder do estado frente aos direitos de homens, brancos, proprietários
e ricos. A liberdade individual, fundada na propriedade privada, passa a ser a
essência do novo ordenamento jurídico. Constitucionalismo significa segurança,
e segurança é expressa no constitucionalismo pela busca de estabilidade
econômica e social por meio da pretensão de permanência da constituição.
A norma
constitucional é capaz de oferecer segurança uma vez que é superior a todas as
outras normas e poderes do estado. A norma constitucional, portanto, traz
estabilidade uma vez que se pretende permanente. Superioridade da norma
constitucional; rigidez constitucional (dificuldade de alterar o texto
constitucional); mecanismos eficazes de controle de constitucionalidade das
leis e atos; significam estabilidade, permanência e logo, segurança.
Este primeiro
passo do constitucionalismo é muito importante. Agora existia uma ordem
jurídica constitucional superior a todo poder do estado. Entretanto esta ordem
não era democrática. Os liberais, defensores da propriedade privada, da decisão
individual, não podiam aceitar a democracia majoritária. O liberalismo,
elitista e não democrático em sua essência, não podia admitir que a vontade do
coletivo majoritário prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e
logo sobre a vontade de cada um. O liberalismo vitorioso das revoluções
burguesas viria garantir a liberdade de escolha individual de homens
proprietários. A democracia majoritária se apresentava como incompatível com o
liberalismo. Neste período, as constituições garantem direitos individuais de
homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura para os
proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas da população. As
constituições liberais estabelecem o voto censitário.
O século XIX
assiste um processo de transformação importante. A formação da identidade
operária (o sentimento de classe operária) faz parte das novidades surgidas
neste século. A situação de milhões de trabalhadores, depositados em fábricas,
trabalhando todos os dias, a maior parte de suas horas de vida diária, permite
que gradualmente, estas pessoas, compartilhando a mesma situação de opressão e
exploração no mesmo espaço (a fábrica) se organizem e comecem a reivindicar
juntos melhores condições de vida.[2]
Este é o momento de proliferação de sindicatos, considerados ilegais pela ordem
liberal que os reprimia com direito penal e polícia, assim como é o momento de
surgimento de boa parte dos partidos políticos modernos, especialmente os
partidos de esquerda, vinculados aos sindicatos e ao movimento operário como os
partidos socialistas, trabalhistas, sociais democráticos e comunistas (muitos
postos na ilegalidade pelo sistema liberal).[3]
Aos poucos, os
operários começavam a sentir as profundas contradições do liberalismo. A
promessa de uma ordem social e econômica sem privilégios hereditários (que
aparecia no senso comum do discurso liberal) não se concretizou e a nova ordem
mostrava-se cada vez mais próxima à ordem anterior. Os grandes proprietários
copiavam os costumes e práticas da nobreza. As leis produzidas nos parlamentos
eleitos pelo voto censitário[4]
eram sempre contrárias aos interesses da maioria. O trabalhador era
sistematicamente punido e a pobreza era criminalizada. A conquista do voto
igualitário masculino teve a participação determinante do movimento operário. É
a partir deste momento que começa a ocorrer o "casamento" entre
constituição e democracia.
Importante
ressaltar que não se trata de uma fusão de conceitos: democracia e constituição
não são e não podem deixar de ser, conceitos distintos. Um existe sem o outro e
a importante convivência entre estes dois conceitos é (em uma perspectiva da
democracia representativa majoritária e do constitucionalismo moderno) sempre
tensa. Uma convivência difícil mas necessária. Isto é o que vamos discutir
agora.
Democracia “versus” constituição
Comentamos acima
que o constitucionalismo moderno não nasceu democrático e o seu processo de
transformação, e lenta democratização, ocorreu por força dos movimentos sociais do século XIX,
especialmente o movimento operário, os sindicatos e a constituição dos partidos
políticos vinculados às reivindicações e lutas operárias.
Vimos que a
função primeira de uma constituição liberal era oferecer segurança aos homens
proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de permanência e
superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social e econômica
para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários.
Ao contrário da
constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma
pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação,
mudança?
A dicotomia
entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que
se encontra na raiz de nossas vidas (ocidentais). Ao contrário de uma
perspectiva contraditória cultural entre busca do novo (risco) e busca de segurança;
a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o
universo de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação. O
próprio universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser
humano, como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de
transformação permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos
outra característica essencial. Somos seres históricos e logo, vitimas e
sujeitos da história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um
grau de autonomia racional razoável. Do ponto de vista psicológico, o que nos
faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de
transformação, a busca do novo. Logo, uma sociedade livre e democrática, onde os
destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas que integram esta
mesma sociedade, será uma sociedade em permanente processo de transformação. A
sociedade democrática é uma sociedade de risco na medida em que é uma sociedade
em mutação permanente.
Temos então a
equação do constitucionalismo democrático moderno. A tensão permanente entre
democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e permanência;
transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos,
aparentemente contraditórios, é uma busca constante. Democracia constitucional
passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco
minimamente previsível; mudança com permanência.
Importante
lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se
constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e,
portanto, como limite às mudanças. O papel da constituição moderna é reagir às
mudanças não permitidas. Já, a democracia, é entendida como democracia
majoritária e representativa.
A base da teoria
da constituição moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve
oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático. Como
é oferecida esta segurança?
Para que a
Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto
constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas
constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas,
modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto.
As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem
ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado
sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode
ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal);
processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e
votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da
constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária
para que a constituição acompanhe as transformações ocorridas pela democracia
representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança
constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da
constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico
constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com a segurança,
nem mudar nada o que acaba com sua pretensão de permanência. Daí que não pode a
teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas
(emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição.
Isto representaria destruir a essência da constituição: a busca de segurança.
De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a não
transformação da constituição por meio das mutações interpretativas
(interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto inserido no
contexto histórico), pode significar a morte prematura da constituição
destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua essência, a
busca de segurança.
Este é o
equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno democrático, considerando
democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição enquanto
limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que protege os
direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se
pode compreender as teorias modernas da constituição.
Permanece ainda
uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que
comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se
pretende democrática), de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre
uma defasagem entre as transformações da sociedade democrática e as
transformações da constituição democrática. O que decorre desta equação é o
fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática mudará
sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar. E isto
não pode ser mudado pois comprometeria a essência da constituição e da
democracia (permanência x transformação; segurança x risco). Assim,
inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade mudará mais do que a
constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a constituição se tornará
ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A teoria da constituição
apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário,
soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no que se
refere a realidade social, cultural, histórica, econômica).
Este é o momento
de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica democrática constitucional esta
ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só por meio de um
movimento inequivocamente democrático será possível (ou justificável) a
ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática justifica a ruptura com
a constituição, está ruptura só será legitima se for para, imediatamente,
estabelecer uma nova ordem constitucional democrática.
Assim a
democracia só poderá legitimamente superar a constituição se for, para,
imediatamente, elabora e votar uma nova constituição democrática. A democracia
acaba com a constituição criando uma nova constituição a qual esta democracia
se submete. Esta é a lógica histórica do constitucionalismo democrático
moderno. Veremos mais adiante como a democracia consensual plurinacional não
hegemônica pode romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco
mais a lógica contramajoritária.
Os problemas da democracia
majoritária
O “casamento”
entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites
expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem
assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à
vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer
maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de
proteger a minoria, e cada um, contra maiorias que podem se tornar autoritárias,
ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão se transformar
em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites,
transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos
fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição democrática (moderna,
democrática representativa e majoritária) são os direitos fundamentais.
Os direitos
fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela constituição
contra maiorias provisórias que em determinados momentos históricos podem ceder
a tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a seguinte: pode a
população, majoritariamente e livremente, escolher um regime de governo não
democrático? O exemplo não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas
vezes a escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de
democracia é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a democracia.
Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas de organização
históricas, assim como as formas de participação e construção da vontade comum
em uma sociedade também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na
maioria das vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos
conceitos ocidentais.
Mas voltando a
discussão realizada dentro do paradigma moderno de democracia constitucional
ocidental (europeia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão
da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir
democraticamente contra a democracia. A estes mecanismos de proteção às
conquistas históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajoritários.
Em momentos de crise podem os cidadãos cederem às tentações autoritárias e
reacionárias e a função da constituição é reagir a estas mudanças não
permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a
proibição do “retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável,
e por isto, talvez, muitas vezes, falsa.
Um exemplo claro
disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade
privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a
tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é
contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso?
Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou
até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso?
Outro aspecto é
necessário ressaltar a respeito da democracia majoritária. O voto, confundido
muitas vezes com a própria ideia de democracia, é na verdade um instrumento de
decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso,
e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o
processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão.
Interessante
notar que cada vez mais, o tempo do debate, da exposição das opiniões está cada
vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de
democracia semidireta, o espaço dedicado ao debate de ideias e propostas se
reduz. Cada vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em
algumas situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de
mecanismos de voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no
orçamento participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que
é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante
do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, ideia.
A opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto
pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos
empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto,
ideia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o
tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento
ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos
vitoriosos e derrotados.
Assim, tanto no
legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção
de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de
vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma
impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo
que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca
de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que
passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo
judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e
muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o
importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há
nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um
diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com
o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo
majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma
isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará
pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no
parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial.
A democracia
consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra
compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos
fundamentais.
Vejamos.
Conclusão:
A democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano.
Uma vez
compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender
a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais.
Comecemos pela
democracia. Ao contrário da democracia moderna essencialmente representativa, a
democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos representativos
majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam, mas, sim, que
devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados de
construção de consensos.
A proposta de
uma democracia consensual deve ser compreendida com cuidado no paradigma do
estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta democracia
deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há
consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na
modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a
linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso
militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de dominação.
Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são utilizados
como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a todos nós e
não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as formas de
violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o diálogo a ser
construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos prévios, construídos
por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração
a necessidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações
sociais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de
posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura.
A partir desta
descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se
estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um
novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro.
Os consensos
construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não
majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da
democracia. Daí posturas novas precisam ser inauguradas. A postura não hegemônica
deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos argumentos. Não
se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples
fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate. Não é
possível compreender uma democracia consensual com os instrumentos,
pressupostos e posturas de uma sociedade de competição permanente. Nenhum
consenso se pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela
necessidade de decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja
necessária a construção de maiorias.
Compreendidos os
mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não
hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de
mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva
para os direitos fundamentais.
Como a
democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são
construídas por maiorias, mas, sempre, por todos, a constituição não necessita
mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de
mecanismos contra-majoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria
como fator de decisão.
Assim, os
direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e
reconstruídos permanentemente. O Estado e a constituição no lugar de reagir a
mudanças não previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente
às mudanças desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos,
democráticos, logo não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não
permanentes.
Trata-se de uma
nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de Estado,
Constituição e Democracia. Um conceito fundamental para desenvolvermos e
aprofundarmos a discussão é o de pluralismo epistemológico. Esta será a nossa
próxima análise.
[1]
CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad
Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
[2]
ELLEY, Geoff. Forjando a democracia, ob.cit.
[3]
SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000. DUVERGER, Maurice. Les partis politiques.
Paris, Colin, 1980.
[4] George
Burdeau comentando a Constituição burguesa francesa de 1814 comenta que não
esteve em questão em nenhum momento a adoção do sufrágio universal pelos
liberais. Estes consideravam o sufrágio universal como algo grosseiro. O
direito de sufrágio não é considerado um direito inerente a qualidade de homem.
O voto depende da capacidade dos indivíduos e a fortuna aparecia como uma forma
de demonstrar atitude intelectual e maturidade de espírito, além de garantir
uma opinião conservadora típica (é claro) dos ricos. Neste período o direito de
voto depende de uma condição de idade (30 anos) e uma condição de riqueza. Para
poder votar era necessário pagar 300 francos de contribuição direta, o que para
época era uma quantia considerável. Para se candidatar as exigências eram ainda
maiores: 40 anos de idade e pagar 1.000 francos de contribuição direta. Em toda
França o numero de eleitores não passava de 100.000 (1 eleitor para cada 300
habitantes) e o numero de pessoas que podiam se candidatar não passava de
20.000. (BURDEAU, George;
HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de
Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316).
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