COM AS MÃOS (E OS PÉS) SUJOS DE LAMA
Virgílio de Mattos
Você, leitor paciente, há
de concordar comigo que raros espetáculos (que duram em média sete horas e
meia) merecem fazer você sair de casa nesse diluviano outono tropical em que
estamos afogados, ainda que o calor continue sufocante e a seca seja uma
constante no nordeste do país em particular e nos vários bolsões do semiárido
em geral. Conheço várias pessoas que duvidariam (ainda mais) da minha higidez
mental se os convidasse para uma defesa de doutorado, na Escola de Arquitetura
da UFMG sob essas condições de temperatura e pressão.
Vou contar-lhes porque
fui. Porque tinha necessariamente de estar presente naquele espetáculo que foi
a defesa de Água em meio urbano, favelas nas cabeceiras, de Margarete Leta
de Araújo Silva, bem (des)orientada pela belíssima e competente Silke Kapp?
O saudoso Prof.
Ariosvaldo de Campos Pires costumava dizer que toda defesa de tese é “festa da
inteligência”. Convenhamos que o que assistimos hoje, mundo afora, desmente um
pouco o querido professor que cometeu talvez sua única indelicadeza na vida que
foi ter deixado de viver.
Reminiscências saudosas a
parte, como estar presente na gestação e uma tese de doutorado de arquitetura
alguém que não sabe sequer fazer conta de dividir por dois números e nunca
conseguiu fazer um desenho que fosse além da casa-com-árvore-cerca-sol-e-nuvem ?
Marx nos unia, talvez um pouco deslocado e perplexo na explicação das favelas –
para emprestar a ácida crítica de outra figura amiga presente que insiste em
dizer que Marx era um autor do século XIX -, e também a certeza de que a
construção de uma tese é sempre permeada das mesmas dificuldades, não
importando a área de conhecimento, a época e os atores envolvidos.
Sofri feito um demônio em
assembleia de neopentecostais no fazimento da minha. Hipócritas ou distraídos,
aqueles protegidos da canção, dizem não ter sofrido. Antes a perplexidade,
durante o desespero e depois o vazio. Um abismo imenso quando se “dá por
terminado” um trabalho que, sabemos todos que já passamos por isso, não tem
fim.
O que diferencia a tese
da Leta das demais que estamos (mal) acostumados a ver nas diversas áreas do
conhecimento acadêmico? Exatamente o fato de ter ela as mãos (e os pés) sujos
de lama. A lama espessa da desconstrução dos preconceitos, na metáfora e a lama
escorregadia e pegajosa do real no alto das favelas que pululam em Belo
Horizonte.
Leta reconta a história
da exploração dos trabalhadores da cidade na tentativa (sempre falha) da
contenção das águas em meio urbano. Apresenta o ouro em pó de sua
cuidadosíssima mapoteca, em 13 pranchas que tratam das principais favelas de
Belo Horizonte, desde 1957, das microbacias e favelas com imagens comparativas
(em três tempos), da Favela da Serra, rebatizada pela polícia de “aglomerado”.
Sempre tive antipatia desse novo batismo dado às favelas porque aglomerado me
lembra (depois se diz que burro não faz insight) madeira de baixa
qualidade e não habitação de gente pobre, às vezes até feita de “aglomerados”,
mas isso é outra história que aqui não cabe.
Cabe dizer do impactante
que é o trabalho de Leta quando, já no primeiro capítulo (Dominação da
Natureza), alerta que na nossa cidade “(...) parcela significativa da
população vive em favelas e loteamentos precários, centrais ou periféricos,
baixios de viadutos, edificações inacabadas ou abandonadas. Áreas que, de algum
modo, não foram encampados pelo mercado imobiliário formal se oferecem a estas
populações, cujas ações individuais ou coletivas de suporte à vida cotidiana
tendem a potencializar a fragilidade ambiental ou precariedade urbana que as
desqualificaram para o mercado urbano de terras” (p. 17).
É assim: o
subproletariado, que ela chama provocativamente de ralé, para seguir um
weberiano que vai de moda e ela adora, que não tem mais sequer o seu lugar
histórico de exército de mão de obra de reserva, tem como único lócus de
moradia possível um não-lugar que sequer é qualificado para a compra e venda em
um sistema em que tudo é transformado em mercadoria, até mesmo – e
principalmente – a força de trabalho dos sem nada.
Leta demole impiedosa e
elegantemente todos os destruidores “projetos” – na verdade são projetos sem
projeto – do poder público municipal, sustenta e grita a plenos pulmões que não
há neutralidade na política de exploração em massa e manda um recado direto aos
responsáveis, aqueles homens e mulheres de “bens” que acreditam “não ter nada
com isso”, Leta lhes diz, em um português legível mesmo fora da Academia pra
esse povo abrir o olho, como se buscasse um velho recado esquecido: TUA POSE E
TUA POSSE, CUIDA AÍ DIREITINHO, VIU, PORQUE VOCÊ SÓ TEM A PERDER, SACANA!
É um trabalho que
incomoda os sacanas de todos os níveis, dá gosto de ver um trabalho assim,
feito com as mãos e os pés sujos de lama.
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