CARTA DE BELO HORIZONTE
Em defesa da atribuição do Ministério Público para investigar criminalmente violações de Direitos Humanos
Belo Horizonte, 2 de abril de 2013.
Está em votação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 37/2011, também conhecida como PEC 37 ou "PEC da Impunidade", que pretende subtrair o poder de investigação dos Ministérios Públicos Estaduais e Federal e confiná-lo, privativamente, à polícia federal e às polícias civis dos Estados e do Distrito Federal. Caso seja aprovada, referida PEC afetará drasticamente o sistema investigativo brasileiro, notadamente naquilo que diz respeito às investigações criminais das violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos. Como consequência, estaremos sujeitos a índices ainda maiores de impunidade, inclusive no que diz respeito aos crimes já apurados, processados e julgados, nos casos em que a investigação tiver sido conduzida exclusivamente pelo Ministério Público. Diante do risco de tamanho retrocesso democrático e CONSIDERANDO o preconizado pelo Direito Internacional no sentido de que
os Estados devem assegurar que as suas autoridades atuem eficazmente em matéria de prevenção, detecção e repressão da corrupção de agentes públicos, inclusive conferindo-lhes independência suficiente para impedir qualquer influência indevida sobre a sua atuação1;
o Ministério Público atua em defesa dos interesses da sociedade e dispõe de garantias e prerrogativas constitucionais capazes de assegurar a necessária isenção na apuração, portanto é imprescindível que participe ativamente na persecução criminal, inclusive na fase pré-processual, em casos de autoria delitiva atribuída a agentes públicos que digam respeito a corrupção, abuso de poder e outros tipos de violações de direitos humanos2, com destaque para casos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante3;
o sistema estabelecido pelo Tribunal Penal Internacional, ratificado pelo Brasil, adota o poder investigatório a cargo do Ministério Público4;
CONSIDERANDO que, no direito interno, a atribuição do Ministério Público para instaurar e presidir procedimentos investigatórios criminais encontra respaldo em nível constitucional e infraconstitucional, além de ter seus limites e diretrizes previstos em ato específico do Conselho Nacional do Ministério Público5, onde são estabelecidos prazos e mecanismos de controle para a realização subsidiária de investigações criminais, em casos excepcionais e devidamente justificados;
CONSIDERANDO que grupos populacionais vulnerabilizados sob o ponto de vista social, politico, econômico e/ou cultural sofrem, historicamente, com o acesso limitado à justiça e à reparação pelos de que são vítimas e que o Ministério Público é constitucionalmente incumbido de zelar pelos interesses sociais de tais grupos;
CONSIDERANDO que, em média, a cada cinco horas uma pessoa é morta no Brasil por agentes investidos de função pública6 e que, em Estados que atribuem poder investigatório ao Ministério Público, como Alemanha, França, Portugal e Espanha, a repressão a tais crimes é eficiente, o que contribui para que não haja impunidade e, consequentemente, para que os índices de criminalidade mantenham-se baixos;
CONSIDERANDO que o exercício do controle externo da atividade policial ou do poder de polícia exercido por agentes estatais é essencial para a plena garantia dos direitos humanos, e que sua eficiência depende da possibilidade de o Ministério Público produzir, coletar e utilizar as provas legais necessárias à demonstração das responsabilidades penais dos acusados;
CONSIDERANDO, por fim, que no Brasil o Ministério Público é uma instituição amplamente respeitada, com , e tem desempenhado um papel-chave no combate à impunidade de agentes estatais, sendo-lhe recomendada a investidura de poder investigatório para orientar e conduzir investigações independentes sobre crimes cometidos por agentes públicos, conforme já declarado, inclusive, pela Organização das Nações Unidas7 e Anistia Internacional8 e que, em missiva dirigida ao Supremo Tribunal Federal, a Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República manifestou-se contrariamente à aprovação da PEC 37/2011, sob o argumento de que garantir atribuição de investigar também ao Ministério Público é uma forma de combater a impunidade e fortalecer a defesa dos direitos humanos9,
CONCLUI-SE que a PEC 37 é inconstitucional e viola obrigações internacionais assumidas pelo Brasil; que afronta o princípio da eficiência, na medida em que limita o número de órgãos competentes para promover a investigação criminal; que implica enfraquecimento do Estado Democrático de Direito, prejuízo à defesa dos direitos e garantias individuais e da cidadania; e, em última instância, aniquila importante ferramenta para a promoção da dignidade da pessoa humana.
Por todo o exposto, vimos, em eco à Carta contra a Impunidade e a Insegurança (2012), à Carta de Brasília (2013) e demais manifestações em sentido semelhante, expressar nossa grande preocupação e absoluta discordância em relação à retirada dos poderes investigativos do Ministério Público, e clamar para que os parlamentares reforcem seu compromisso com a Constituição da República, com o Estado Democrático de Direito, e com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro, manifestando-se contrariamente à aprovação da PEC 37/2011.
Subscrevem esta Carta:
Ministério Público do Estado de Minas Gerais
CEJIL Centre for justice anda Internacional Law
Comissão de Direitos Humanos da ALMG
CONEDH – Conselho Estadual de Direitos Humanos
Justiça Global
APT - Associação de Prevenção à Tortura
Pastoral Nacional Carcerária
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Instituto de Direitos Humanos
Associação dos Amigos e Familiares das Pessoas em Privação de Liberdade
Projeto Novos Rumos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
2 Diretrizes das Nações Unidas sobre o Papel dos Promotores e Procuradores, aprovadas pelo 8º Congresso da ONU sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes (“Guidelines on the Role of Prosecutors”, Havana, 1990). Regras 11 e 15; Resolução 17/2 da Comissão da ONU sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal intitulada Fortalecimento do Estado de Direito através do Aumento da Integridade e da Capacidade dos Ministérios Públicos (“Strengthening the Rule of Law through Improved Integrity and Capacity of Prosecution Services", Viena, 2008). Página 4, ponto 4.2.
3 Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Promulgada pelo Decreto nº 40/91. Artigo 12: “Cada Estado-parte assegurará que suas autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial, sempre que houver motivos razoáveis para crer que um ato de tortura tenha sido cometido em qualquer território sob sua jurisdição”.
4 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adotado no Brasil por meio do Decreto nº 4388/2002. Artigo 15º.
5 Resolução n° 13 do Conselho Nacional do Ministério Público, que regulamenta o art. 8º da Lei Complementar 75/93 e o art. 26 da Lei n.º 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal, e dá outras providências.
6 Dado estimado, resultante de cruzamento feito pelo Correio Braziliense em 2011 a partir das estatísticas de mortalidade por força policial do Ministério da Saúde e das ocorrências registradas nas secretarias de Segurança Pública do Rio de Janeiro e São Paulo. Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2011/07/25/interna_brasil,262535/policia-mata-uma-pessoa-no-brasil-a-cada-cinco-horas.shtml. Última consulta em 28/03/2013.
7 ALSTON. Philip. Relatório do Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. A/HRC/11/2/Add.2. Conselho de Direitos Humanos. 29 de agosto de 2008. §§58, 62 e 95.
8 Carta enviada em 2004 pela Secretária Geral da Anistia Internacional, Irene Khan, ao Supremo Tribunal Federal.
9 Aviso nº 89/2012 – GM/SDH/PR, expedido em Brasília,
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