Não é a primeira vez que o Jornal "Estado de Minas" publica reportagem sobre a população de rua utilizando a expressão nós x eles. A expressão foi utilizada para se referir às pessoas que são empurradas à situação de rua por uma sociedade extremamente desigual, e ainda são criminalizadas e responsabilizadas pela sua própria exclusão, em uma operação ideológica absurda de desinformação da população. A seguir um artigo debatendo o perigo de tal dispositivo e do grande equivoco de sua utilização:
Nomeações
Jose Luiz Quadros de Magalhães
A
construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema
do livro de Alain Badiou, La portée du
mot juif. Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás.
O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma sinagoga
comentou para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam
dentro da sinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba
explodiu. Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira indisfarçável na
fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade
histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A
nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que
facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a
dominação.[1]
Badiou
menciona que o anti-semitismo de Barre não mais é tolerado pela média da
opinião publica francesa. Entretanto um outro tipo de anti-semitismo surgiu,
vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro
Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo mas debater a
existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado
sagrado, retirado do livre uso das pessoas.[2]
Assim
como ocorre com varias outras palavras, mas de forma menos radical (liberdade e
igualdade, por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre
significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu
sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado
e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a
complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Badiou
ressalta que o debate que envolve o antissemitismo e a necessidade de sua
erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de discriminação,
perseguição, exclusão ou racismo. Existe uma compreensão no que diz respeito à
palavra “judeu” e à comunidade que reclama este nome, que é capaz de criar uma
posição paradigmática no campo dos valores, superior a todos os demais. Não
propriamente superior, mas em um lugar diferente. Dessa forma pode-se discutir
qualquer forma de discriminação, mas quando se trata do “judeu” a questão é
tratada como universal, indiscutível, seja no sentido de proteção seja no
sentido de ataque. Da mesma forma, toda produção cultural, filosófica assim
como as políticas de estado tomam esta conotação excepcional. Talvez nenhum
outro nome tenha tido tal conotação, ou para Badiou, a força e a
excepcionalidade do nome “judeu” só tenha tido semelhança com a sacralização do
nome Jesus Cristo. Não há, entretanto, um medidor para esta finalidade. O fato
é que o nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de
identidade e foi especialmente sacralizado.
O
nome “judeu” é um nome em excesso em relação aos nomes ordinários e o fato de
ter sido uma vítima incomparável se transmite não apenas aos descendentes, mas
a todos que cabem no predicado concernente, sejam chefes de estado, chefe
militares, mesmo que oprimam os palestinos ou qualquer outro. Logo, a palavra
“judeu” autoriza uma tolerância especial com a intolerância daqueles que a
portam, ou, ao contrário, uma intolerância especial com os mesmos. Depende do
lado que se está.
Uma
lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do
nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que,
toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico,
político ou estatal, seja de criminalização (como nazista ou fascista) seja de
sacrifício (como cristãos, judeus e mulçumanos), esta nomeação nos expõe ao
pior.
Esta
mesma lógica se aplica a nomeação de um Estado judeu. Primeiro, um estado
democrático não pode ser vinculado a uma religião. Segundo, porque esta
nomeação não pode gerar privilégios.
Vários
equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado
radical para significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo,
podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos
ou mesmo apoiando um antissemitismo palestino, tudo pela opressão do Estado
judeu aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também
comprometidas com um discurso democrático, com práticas de tortura e
assassinatos seletivos por parte do Estado de Israel, por ser este um
Estado“judeu”.
Combater
as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a
democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não
ignora os particularismos, mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e
que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários,
religiosos ou nacionais.
Badiou
dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único
real que se pode opor a ditadura dos predicados.
A
prática da nomeação como mecanismo de encobrimento e manipulação é recorrente
na linguagem do poder, da mídia, nas discussões cotidianas. Esta prática nos
impede enxergar os reais problemas criando verdades indiscutíveis a partir de
simplificações e afirmações que afastam a possibilidade de qualquer diálogo.
Assim a nomeação do bandido, drogado, traficante, impede que enxerguemos a
realidade para que possamos então enfrentá-la. Se não enxergamos o problema e
as pessoas nas suas complexidades e diversidades fica impossível qualquer ação
em direção a superação de determinados desafios.
A
compreensão destes mecanismos ideológicos de encobrimento e manipulação dos
quais somos vitimas e algozes é fundamental para seguirmos adiante na
compreensão da questão das drogas.
Estamos
aí diante de uma equação nós x eles: "nós"
"sãos" x "eles" "drogados" ou "nós" "dentro
da lei" x eles "criminosos".
Estamos
ainda diante de outro desafio: enxergar além do nome coletivo “drogado”
extremamente simplificador, reducionista que nos impede ver a pessoa complexa,
multidimensional que se esconde atrás dos nomes coletivos e especialmente deste
nome coletivo.
A
seguir vamos discutir outros mecanismos de encobrimento e distorção ideológicos
e analisar o processo de sacralização das drogas e drogados e de suas políticas
públicas.
Talvez
descubramos que somos todos drogados.
[1]
Lembramos aqui outro mecanismo de dominação e manipulação do real que consiste
na prática amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo fato
particular. Slavoj Zizek no livro “Plaidoyer
en faveur de l’intolerance” menciona dois exemplos estadunidenses. Cita o
caso, por exemplo da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o
namorado, engravida e resolve abortar para não atrapalhar a sua carreira. Este
é um caso que ocorre entre milhares, talvez milhões de outras situações.
Entretanto o poder toma este caso como exemplo permanente para demonstrar o
egoísmo que representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral
pelo particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de
manipulação para a dominação se torna mais fácil.
[2] É
fundamental ler Giorgio Agambem, especialmente o livro Homo Sacer, publicado pela editora UFMG, Belo Horizonte. Ler também
o texto Profanation, do mesmo autor,
publicado em Paris, 2005 pela editora Payot e Rivages. Neste ultimo texto o
autor explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do livre uso
das pessoas determinadas coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Através da
profanação, do rompimento do rito com o mito, é possível devolver estas coisas,
palavras, ao livre uso.
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