quinta-feira, 28 de abril de 2011

Direitos Humanos 3

Direitos Humanos 3
José Luiz Quadros de Magalhães

2 DO PENSAMENTO CRISTÃO MEDIEVAL À REVOLUÇÃO FRANCESA

O pensamento cristão primitivo, no tocante ao Direito Natural, é herdeiro imediato do Estoicismo e da Jurídica Romana. A noção objetiva do Direito Natural pode ser encontrada muito bem figurada no famoso texto de São Paulo: “.Quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente o que a lei manda, embora não tenham lei, servem de lei a si mesmos; mostram que a lei está escrita em seus corações” (Rom. 2, 14-15).18
Os padres da Igreja vão desenvolver dos estóicos a distinção entre Direito Natural absoluto e relativo. Para eles, o Direito Natural absoluto era o direito ideal que imperava antes que a natureza humana se tivesse viciado com o pecado original. Com esse Direito Natural absoluto, todos os homens eram iguais e possuíam todas as coisas em comum, não havia governo dos homens sobre homens nem domínio dos amos sobre escravos. Todos os homens viviam em comunidades livres sobre o império do amor cristão.
O Direito Natural relativo era, ao contrário, um sistema de princípios jurídicos adaptados à natureza humana após o pecado original, bem como explica Bodenheimer:

“Do pecado original derivou a obrigação do trabalho e com ele a instituição da propriedade. A aparição da paixão sexual depois do pecado exigiu as instituições do matrimônio e da família. Do crime de Caim surgiu a necessidade do direito e da pena. A fundação do Estado por Nemod foi o começo do governo. A confusão de línguas que se produziu quando os homens construíram a Torre de Babel motivou a divisão da humanidade em nações distintas. O ultraje de Caim serviu como justificação da escravidão. Desta forma, a propriedade privada, o matrimônio, o direito, o governo e a escravidão se converteram em instituições legítimas de Direito Natural relativo. Mas os padres da Igreja ensinavam que era preciso tentar sempre se aproximar o Direito Natural relativo ao ideal de Direito Natural absoluto”.19

Esperava-se que a hierarquia da Igreja vivesse daquela forma; entretanto, os fiéis poderiam se limitar a cumprir o Direito Natural relativo. Com essa solução aristocrática, a Igreja conseguiu manter os ideais cristãos longe da realidade.20
A doutrina de Santo Agostinho (354-430 d.C.) tem um importante papel nos postulados do Direito Natural absoluto. Ele considerava o governo, o direito e a propriedade como guardiões da Lei Eterna de Deus, que poderia intervir nessas instituições quando julgasse oportuno. Para Santo Agostinho, se as leis terrenas (lex temporalis) contêm disposições claramente contrárias à Lei de Deus, elas não têm vigência e não devem ser obedecidas.21
Novecentos anos mais tarde, a doutrina de São Tomás de Aquino (1226-1274) mostra em maior grau a necessidade de a realidade mostrada através do conceito de Direito Natural relativo expressar os ideais cristãos:22

“As opiniões de São Tomás de Aquino sobre questões jurídicas e políticas mostram especialmente a influência do pensamento aristotélico adaptado às doutrinas do Evangelho e dos Padres da Igreja integrado em um importante sistema de pensamento”.23

O papel da Igreja, em sua relação com o governo, levará São Tomás de Aquino, assim como grande parte dos pensadores medievais, a dar ao Direito Natural uma importância decisiva, pois só com uma norma de caráter mais geral, situada acima do Direito Positivo, poderia haver alguma esperança de realização da justiça cristã.24 A doutrina do representante máximo da filosofia cristã é um primeiro passo para a autonomização do Direito Natural como Ciência, pois se a lei natural exprime o conteúdo de Direito Natural como algo devido ao homem e à sociedade dos homens, esta adquire, no tocante à criatura racional, características específicas.25
São Tomás distingue quatro classes de Leis:

a) a Lei Eterna, que é a razão do governo universal existente no Governante Supremo. Essa Lei dirige todos os movimentos e ações do Universo;
b) a Lei Natural, que é a participação da criatura humana na Lei Eterna, uma vez que nenhum ser humano pode conhecer a Lei Eterna em toda sua verdade. A Lei Natural é a única concepção que tem o homem dos interesses de Deus. Ela dá ao homem a possibilidade de distinguir o bem e o mal, e por essa razão deve ser guia invariável e imutável da lei humana;
c) a Lei Divina: uma vez que a Lei Natural consiste em princípios gerais e abstratos, deve se completar com direções mais particulares dadas por Deus, acerca do modo pelo qual devem os homens se conduzir. Esta é a função da Lei Divina, que é revelada por Deus nas Sagradas Escrituras;
d) a Lei Humana: finalmente, a Lei Humana é um ato de vontade do poder soberano do Estado, mas para ser lei deve estar de acordo com a razão. Se esta lei contradiz um princípio fundamental de justiça, não será lei, e sim uma perversão da Lei. O governante temporal deve observar os princípios da Lei Eterna refletidos na Lei Natural.26

Podemos perceber nesse período da História que, mais uma vez, todo o pensamento desenvolvido sobre os Direitos Naturais e as aspirações de Justiça permanecem distantes da realidade. Aliás, como a própria Igreja havia pregado, enquanto o Direito Natural absoluto era privilégio de seus Padres, para o imenso rebanho bastava o Direito Natural relativo ou, na realidade, algo muito pior, quando em

“12 de maio de 1314 dá-se o primeiro auto-de-fé e seis indivíduos, acusados de heresia, foram queimados vivos. Seguiram-se dezenas de autos-de-fé. Em Valência houve um auto que se tornou célebre, pois foram queimados vivos vinte e cinco indivíduos que não quiseram arrepender-se, abjurar de suas crenças e confessar que a Igreja estava certa. À medida que as heresias se alastravam, o herege passou a ser visto como uma perigosa ameaça à sociedade e como um traidor de Deus”.27

Enquanto no continente europeu permaneciam as violações dos Direitos Humanos mais elementares, mesmo para aquela época, na Inglaterra começava-se a transformação da realidade com o surgimento do esboço do que seria uma Constituição moderna. Em 1215, na Inglaterra é elaborada a “Magna Carta”, imposta pelos Barões ingleses e pela Igreja ao Rei, marcando o início da limitação do poder do Estado. Trata ainda esse texto muito mais de uma garantia dos direitos dos Barões, proprietários de terra do que de uma ampla garantia dos direitos de todo o povo. Entretanto, presente está a idéia de limitação do poder do Estado e de garantia de direitos fundamentais, dois elementos essenciais para caracterizar o constitucionalismo moderno.
No restante da Europa um fato, ao qual pode não ser dada tanta importância, contribui de forma decisiva para que os direitos da pessoa deixem de ser meras construções filosóficas e comecem a se tornar realidade: o aperfeiçoamento da imprensa por Gutemberg, que, com a nova técnica por ele inventada – os tipos, ou seja, as letras, formadas por uma liga de antimônio e chumbo –, em 1455 imprimiu o primeiro livro, a Bíblia, em dois volumes.
Com isso, livros foram impressos e traduzidos, e as idéias circularam com maior rapidez e para um maior número de pessoas.
A primeira mudança sensível ocorre na Religião, com o segundo grande Cisma da Igreja, causado pela Reforma Protestante. Posteriormente, toda a realidade social existente passa a ser objeto de indagação, tendo como principal corrente de questionamento e de proposição de mudanças o Iluminismo.
Descartes é o ponto de partida para o Iluminismo, corrente filosófica e cultural que vai tomar conta da Europa Ocidental. O Iluminismo é fundado no Racionalismo. Todas as coisas poderiam e deveriam ser explicadas através da razão. O poder estatal, exercido pelos reis e explicado pela vontade divina, passa a ser compreendido como força de vontade popular. O Direito Natural é completamente revisto: considerado na Idade Média como vinculado à vontade de Deus, a partir da Escola de Direito Natural de Grotius (1625) não é mais entendido dessa forma. Os Direitos Naturais são produto da razão.28
Bodenheimer denomina essa fase do Direito Natural de clássica, que para o autor se divide em três períodos:

• o primeiro, após o Renascimento e a Reforma, que corresponde à teoria de Hugo Grotius preparando o terreno para a doutrina clássica), Hobbes, Spinoza, Pufendorf e Wolff, em que o Direito Natural residia meramente na prudência e na automoderação do governante; o segundo período começa com a Revolução Puritana de 1649, e é caracterizado por uma tendência para o capitalismo livre na economia e o liberalismo na política e na filosofia, no qual encontraremos as idéias de Locke e Montesquieu (nessa época a preocupação era garantir os indivíduos contra as violações por parte do Estado); e, finalmente, o terceiro período, marcado por uma forte crença na soberania popular, na Democracia. O Direito Natural estava confiado à vontade geral do povo. O representante mais destacado desta época foi Rousseau, que exerceu influência sobre Kant.29

Leo Strauss30 refere-se a essa fase do Direito Natural como a fase moderna e colocará John Locke como o mais célebre. Com relação à classificação, a de Bodenheimer, sem dúvida, nos dá uma idéia melhor da evolução do Direito Natural; vamos recorrer aos ensinamentos de Leo Strauss, quando analisa o pensamento de Hobbes, Locke e Rousseau, aos quais faremos uma breve referência antes de estudarmos o ressurgimento do Direito Natural na atualidade.
Assim como todos os pensadores, também Hobbes aprendeu muito com os filósofos gregos. De Platão, aprendeu que a matemática será a mãe de toda a ciência da natureza; entretanto Hobbes considera a filosofia antiga mais um sonho do que uma ciência: o conjunto do pensamento hobbesiano nos mostra uma combinação tipicamente moderna feita de idealismo político e de uma concepção materialista e atéia do Universo.31
Hobbes foi o continuador do pensamento de Hugo Grotius (1583-1645), a quem se atribui a origem do jusnaturalismo, que sustentava a imutabilidade do Direito Natural, comparando-o às normas dos axiomas matemáticos (“Nem Deus poderia modificar as normas oriundas da conformidade ou não-conformidade dos atos humanos com a natureza, tal como não poderia fazer com que dois e dois não fossem quatro”),32 como bem observa o Prof. Edgar de Godói da Mata-Machado:

“Racionalizado, reduzido o conceito inventado pelo espírito, sem qualquer referência às circunstâncias e às situações concretas, históricas e fáticas, existenciais da condição humana, o Direito Natural dos jusnaturalistas estava fadado, em breve, apenas iniciado o século XIX, a ser completamente elidido pelos que não vêem outro objeto para o Direito senão o estudo de normas originárias da vontade estatal expressa sob as mais diferentes formas”.33
É a época do jusnaturalismo abstrato. A explicação de tudo é encontrada no próprio homem, na própria razão humana. Nada de objetivo é levado em consideração: a realidade social, a História, e a razão humana se tornam uma divindade absoluta.
Outro importante representante do racionalismo ou, como chamamos anteriormente, do jusnaturalismo abstrato é John Locke. “Individualista como Hobbes, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) sustentou teoria jurídico-política sob muitos aspectos diferente e oposta à de seu compatrício igualmente famoso”.34 Enquanto Hobbes era politicamente favorável à extensão do poder real, e com isso contribuiu para reforçar teoricamente o absolutismo do Estado, Locke era um partidário da supremacia do Parlamento.35
Para Locke a lei natural é uma regra eterna para todos, sendo evidente e inteligível para todas as criaturas racionais. A lei natural, portanto, é igual à lei da razão. Para ele o homem deveria ser capaz de elaborar,

“a partir dos princípios da razão, um corpo de doutrina moral que seria seguramente a lei natural e ensinaria todos os deveres da vida, ou ainda formular o enunciado integral da lei natureza, a moral completa, ou ainda um ‘código’ que nos dê a lei da natureza ‘integral’. Este código compreenderia, entre outras coisas, a lei natural penal”.36

Podemos notar que com esse pensamento está aberto o caminho para o Positivismo.
Outro grande pensador a quem não podemos deixar de fazer referência é Rousseau. Para Leo Strauss, a primeira crise desse espírito moderno se manifesta com o pensamento de Rousseau, para quem a aventura moderna era um erro radical e procura um remédio para essa crise no retorno ao pensamento antigo. Ele atacava essa modernidade em nome de duas idéias da Antigüidade: em nome da cidade e da virtude, de um lado, e em nome da natureza, de outro.

“Os antigos políticos falavam sempre dos modos e da virtude; os nossos só falam do comércio e do dinheiro. [...] O comércio, o dinheiro, as luzes, a emancipação do desejo de adquirir o luxo e a crença na onipotência das leis, estas são as características do nosso Estado Moderno, quer se trate de uma monarquia absoluta, ou de uma República Parlamentar”.37

Existe um claro conflito no pensamento de Rousseau, que defende duas posições diametralmente opostas: em um momento ele defende ardentemente os direitos do indivíduo contra toda a opressão e autoridade; no momento seguinte, não menos ardentemente, ele defende a submissão total do indivíduo à sociedade ou ao Estado, e também a disciplina moral ou social, a mais rigorosa. Os estudiosos de Rousseau dizem que no seu período de maior maturidade ele finalmente conseguiu superar esta hesitação temporária. Rousseau acredita até o fim que mesmo o bom tipo de Estado é uma forma de escravidão. Logo, Rousseau não pôde considerar sua solução do problema do conflito entre indivíduos e sociedade como além de uma aproximação passível que está exposta a dúvidas legítimas. A libertação do homem, da autoridade, da opressão e da responsabilidade, em uma palavra, retornar ao estado da natureza, é para Rousseau uma possibilidade legítima. A questão que se coloca é como Rousseau compreendeu esse insolúvel conflito.38
No Discurso sobre a Ciência e as Artes, Rousseau ataca as ciências e as artes que sustentam os poderosos, e por isso são incompatíveis com a virtude. Para o filósofo, a virtude é a única coisa que importa. Rousseau mostra a significação da virtude bem claramente ao se referir aos exemplos do cidadão-filósofo Sócrates, de Fabricius e, sobretudo, de Caton: Caton era o maior dos homens. A virtude é principalmente a virtude política, a virtude do patriota ou a virtude do povo inteiro. Ela pressupõe uma sociedade livre: a virtude e a sociedade livre são ligadas entre si.39
Antes de seguirmos adiante, para estudarmos o ressurgimento do Direito Natural na época atual, é oportuno transcrever dois trechos do Discurso sobre as Ciências e as Artes, de Jean-Jacques Rousseau:

“Enquanto o governo e as leis provêm a segurança e o bem-estar reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e quiçá mais poderosas, estendem guirlandas de flores às cadeias de ferro a que os homens estão presos, neles sufocam o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar a própria escravidão, e criam o que se costuma chamar de povos policiados. A necessidade ergueu os tronos; as Ciências e as Artes os consolidaram. Poderosos da Terra, amai os talentos, e protegei os que os cultivam! Povos policiados, cultivai-nos! Venturosos escravos, deveis a eles esse gosto delicado e fino com o qual vos picais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes que correspondem entre vós ao comércio tão afável e tão fácil; numa palavra, as aparências de todas as virtudes sem que haja alguma”.40

Nesse trecho Rousseau combate as artes que sustentam o Poder opressor do Estado; no que se segue, Rousseau coloca a virtude como a base de tudo

“Como seria agradável viver entre nós, se a continência exterior fosse sempre a imagem das disposições do coração, se a decência constituísse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regra, se a verdadeira filosofia estivesse separada do título de filósofo! Mas tantas qualidades raramente caminham juntas, e a virtude nunca marcha em meio à própria pompa. A riqueza do adorno pode anunciar um homem opulento, e sua elegância, um homem de gosto. O Homem são e robusto se reconhece por outras marcas; é sob o hábito rústico de um trabalhador, e não sob os enfeites de um cortesão que encontraremos a força e o vigor do corpo. O adorno não é menos estranho à virtude, que é a força, o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que se compraz em combater nu; despreza todos esses vis ornamentos que prejudicariam o uso de suas forças, a maior parte dos quais foi inventada para ocultar alguma deformidade”.41

Apesar de todas as questões que possam ser levantadas a respeito do jusnaturalismo, ou jusracionalismo, o fato mais importante será o início das garantias formais dos Direitos Humanos, entendidos na época como sinônimos de Direitos Individuais Fundamentais.
O Prof. Joaquim Carlos Salgado escreve sobre esta conquista: “A idéia de garantir os direitos fundamentais a cada indivíduo é uma conquista teórica dos pensadores franceses”.42
Estas mesmas idéias serviram de fundamento para a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte e foram posteriormente materializadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789, França).
Não se pode deixar de citar todo o processo pioneiro de materialização desses direitos fundamentais ocorrido na Inglaterra. Após a já citada Magna Carta de 1215, seguiram-se o “Ato de Habeas Corpus”, de 1679, e o Bill of Rights, de 1688, assim como o Instrumento de Governo de Cromwell, para alguns autores a primeira Constituição no sentido moderno da palavra e que inspirou a Constituição norte-americana de 1787.
O Prof. Raul Machado Horta sintetiza muito bem esse processo histórico até aqui estudado:

“A recepção dos direitos individuais no ordenamento jurídico pressupõe o percurso de longa trajetória, que mergulha suas raízes no pensamento e na arquitetura política do mundo helênico, trajetória que prosseguiu vacilante na Roma imperial e republicana, para retomar seu vigor nas idéias que alimentaram o Cristianismo emergente, os teólogos medievais, o Protestantismo, o Renascimento e, afinal, corporificar-se na brilhante floração das idéias políticas e filosóficas das correntes do pensamento dos séculos XVII e XVIII. Nesse conjunto temos fontes espirituais e ideológicas da concepção que afirmam a precedência dos direitos individuais inatos, naturais, imprescritíveis e inalienáveis do homem”.43

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