AQUARIUS
José Luiz
Quadros de Magalhães
O tempo...tempos de luta e
resistência. Como o filho que resiste ao implacável Kronos, que sem se importar
com nada segue seu caminho implacável, reto, atropelando tudo, ignorando o
mapa, o relevo, aguas profundas ou não. Ele segue. Mas como já nos mostrou
Saramago, Kronos é necessário, pois justamente ao ignorar tudo e todos os
apelos, não se sujeita ao bem nem ao mal. Ele simplesmente segue, e com isto se
afasta do sofrimento prolongado da perda e da doença. Mas seu filho
inconformado com sua dureza, criou um tempo próprio, subjetivo, e permitiu que
outros tempos pudessem ser criados, por pequenos deuses, por grandes lutas, e
por, parece, intermináveis sofrimentos.
Não vamos falar aqui das
intermináveis práticas de prolongamento do sofrimento pela ação objetiva da
ciência nas mãos de pessoas demasiadamente apegadas. Não se trata disto. O filme
Aquarius trás o tempo político, de diversas resistências. Da resistência da
vida contra a implacável lógica do poder do capital (e do Estado ao seu
serviço)
Dois são os momentos políticos do
filme: na década de 1980, uma mulher marcada pela luta contra a ditadura
empresarial militar que se instalou no Brasil em 1964 e a luta contra o contra
o câncer. O outro momento, Clara, nos tempos atuais, e sua luta contra o
sistema político-empresarial que engole a memória e história, com as marcas no
seu corpo da luta contra o câncer.
Dois tempos, duas lutas, duas formas
cruéis de assédio representado na luta de duas mulheres. O filme mergulha na
vida da segunda mulher, Clara, e o tempo presente. Ao dedicar-se a Clara, um
outro personagem ganha vida: a memória. Qual memória é preservada na cidade?
Quais memórias têm o direito de sobreviver em monumentos, objetos, técnicas e
construções na cidade? Porque o novo precisa ser construído sobre a destruição
dos significantes do passado, ou de sua museificação?
Neste momento os conflitos se
desenvolvem no filme: os discos de vinil “superados” pelos CD’s e agora pela
música disponível nas nuvens e novos programas disponíveis na internet. O
objeto físico do passado, a arte da capa, a raridade da gravação, o toque no passado
no contato com o objeto, muitas vezes marcado com letras que não podem mais ser
escritas com a tinta da caneta da dedicatória que ainda não desapareceu,
desaparece mergulhado no tudo disponível incorpóreo das novas tecnologias.
Quantidade, muita quantidade, tanta quantidade que as coisas se perdem, e algo
importante se esconde em meio a toda esta quantidade tecnológica.
Finalmente “Aquarius”. Uma nova era,
tudo por se revelar na era de Aquarius. Quem viu o filme Hair se lembra das
promessas de Aquarius. Mas aquele prédio, memória de uma época que prometia o
novo, é engolido por este novo, diferente daquele que se anunciou. O prédio, o
apartamento, e os objetos de seu tempo, representam sua memória, a memória de um
tempo que não mais interessa às pessoas, levadas no ritmo acelerado do consumo
no ultra capitalismo moderno. Objetos antigos devem ser substituídos, alguns
colocados em museus de memórias de alguns privilegiados. Para a grande parte
das memorias não há museus. Não há mais objetos. O novo se constrói sobre o
tempo presente permanente. A nova onda é viver o presente eterno, desesperados.
A ordem é curtir o presente: o presente contínuo. Na sociedade de ultra consumo
pacotes de curtição (jouissance) são permanente vendidos. Não há mais passado
nem um futuro a partir do passado, passado presente e futuro se misturam em um
novo imperativo do supereu: goze!
Assim o novo, o filho do empresário,
se apresenta para Clara. Muito educado. Muito simpático. Determinado a ignorar
tudo para construir um novo prédio sobre o velho, o jovem empresário faz uma
promessa a Clara: o novo empreendimento, um enorme prédio, a nova forma,
manterá o nome antigo “Aquarius”. A nova era se reciclou. Resignificar
permanentemente, anular o passado e um futuro construído a partir deste passado
é a ordem presente. Isto é o presentismo. A condenação infernal do perpétuo
presente. Cronos e Kairós presos no presente do eterno “non sense” da curtição,
da “jouissance” desesperada. Correndo e fugindo desesperadamente de qualquer
passado e futuro.
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