domingo, 16 de outubro de 2016

1638- Coluna de Cinema com o professor José Luiz Quadros de Magalhães: Aquarius

Coluna de Cinema com o professor José Luiz Quadros de Magalhães: Aquarius

AQUARIUS
José Luiz Quadros de Magalhães

            O tempo...tempos de luta e resistência. Como o filho que resiste ao implacável Kronos, que sem se importar com nada segue seu caminho implacável, reto, atropelando tudo, ignorando o mapa, o relevo, aguas profundas ou não. Ele segue. Mas como já nos mostrou Saramago, Kronos é necessário, pois justamente ao ignorar tudo e todos os apelos, não se sujeita ao bem nem ao mal. Ele simplesmente segue, e com isto se afasta do sofrimento prolongado da perda e da doença. Mas seu filho inconformado com sua dureza, criou um tempo próprio, subjetivo, e permitiu que outros tempos pudessem ser criados, por pequenos deuses, por grandes lutas, e por, parece, intermináveis sofrimentos.
            Não vamos falar aqui das intermináveis práticas de prolongamento do sofrimento pela ação objetiva da ciência nas mãos de pessoas demasiadamente apegadas. Não se trata disto. O filme Aquarius trás o tempo político, de diversas resistências. Da resistência da vida contra a implacável lógica do poder do capital (e do Estado ao seu serviço)
            Dois são os momentos políticos do filme: na década de 1980, uma mulher marcada pela luta contra a ditadura empresarial militar que se instalou no Brasil em 1964 e a luta contra o contra o câncer. O outro momento, Clara, nos tempos atuais, e sua luta contra o sistema político-empresarial que engole a memória e história, com as marcas no seu corpo da luta contra o câncer.
            Dois tempos, duas lutas, duas formas cruéis de assédio representado na luta de duas mulheres. O filme mergulha na vida da segunda mulher, Clara, e o tempo presente. Ao dedicar-se a Clara, um outro personagem ganha vida: a memória. Qual memória é preservada na cidade? Quais memórias têm o direito de sobreviver em monumentos, objetos, técnicas e construções na cidade? Porque o novo precisa ser construído sobre a destruição dos significantes do passado, ou de sua museificação?
            Neste momento os conflitos se desenvolvem no filme: os discos de vinil “superados” pelos CD’s e agora pela música disponível nas nuvens e novos programas disponíveis na internet. O objeto físico do passado, a arte da capa, a raridade da gravação, o toque no passado no contato com o objeto, muitas vezes marcado com letras que não podem mais ser escritas com a tinta da caneta da dedicatória que ainda não desapareceu, desaparece mergulhado no tudo disponível incorpóreo das novas tecnologias. Quantidade, muita quantidade, tanta quantidade que as coisas se perdem, e algo importante se esconde em meio a toda esta quantidade tecnológica.
            Finalmente “Aquarius”. Uma nova era, tudo por se revelar na era de Aquarius. Quem viu o filme Hair se lembra das promessas de Aquarius. Mas aquele prédio, memória de uma época que prometia o novo, é engolido por este novo, diferente daquele que se anunciou. O prédio, o apartamento, e os objetos de seu tempo, representam sua memória, a memória de um tempo que não mais interessa às pessoas, levadas no ritmo acelerado do consumo no ultra capitalismo moderno. Objetos antigos devem ser substituídos, alguns colocados em museus de memórias de alguns privilegiados. Para a grande parte das memorias não há museus. Não há mais objetos. O novo se constrói sobre o tempo presente permanente. A nova onda é viver o presente eterno, desesperados. A ordem é curtir o presente: o presente contínuo. Na sociedade de ultra consumo pacotes de curtição (jouissance) são permanente vendidos. Não há mais passado nem um futuro a partir do passado, passado presente e futuro se misturam em um novo imperativo do supereu: goze!

            Assim o novo, o filho do empresário, se apresenta para Clara. Muito educado. Muito simpático. Determinado a ignorar tudo para construir um novo prédio sobre o velho, o jovem empresário faz uma promessa a Clara: o novo empreendimento, um enorme prédio, a nova forma, manterá o nome antigo “Aquarius”. A nova era se reciclou. Resignificar permanentemente, anular o passado e um futuro construído a partir deste passado é a ordem presente. Isto é o presentismo. A condenação infernal do perpétuo presente. Cronos e Kairós presos no presente do eterno “non sense” da curtição, da “jouissance” desesperada. Correndo e fugindo desesperadamente de qualquer passado e futuro.

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