Massacre de
Felisburgo: o que não pode ser esquecido.
Gilvander Luís Moreira[1]
Na madrugada do dia 1º de maio de 2002, dia
das/os trabalhadoras/res, cerca de 230 famílias sem-terra, organizadas pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Nova
Alegria, de 1.700 hectares, em Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG. Era a
primeira ocupação do MST no município. Cerca de 1/3 da fazenda (515 hectares) é
de terra devoluta, grilada pela família do fazendeiro e empresário Adriano
Chafic. O coronelismo imperava incólume na região, mas a fome e necessidade
impeliram os camponeses a se unir, se organizar e a partir para a luta. Com
poucas reuniões promovidas pelo MST, o povo teve a coragem de quebrar a cerca desse
latifúndio, onde, aliás, posseiros já tinham sido humilhados, inclusive, o Sr.
Koné, ali por muito tempo e ter depois simplesmente desaparecido.
Mas a sanha egoísta dos latifundiários
irrompeu-se. Era inadmissível o MST chegar, ocupar e quebrar um tabu que dizia
“aqui quem manda é os fazendeiros.” Era inaceitável Sem Terra ter vez e voz.
Assim, uma escalada de ameaças desencadeou-se durante dois anos e meio. Ameaças
de todos os tipos. O povo do Acampamento Terra Prometida – pelo Deus da vida e
pela luta organizada – teve de montar guarita e Comissão de Segurança para se
defender. Inúmeras denúncias foram feitas pelo MST e pela Comissão Pastoral da
Terra (CPT) alertando as polícias militar e civil, a Secretaria de Segurança de
Minas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Governo
Federal, enfim, todas as autoridades sobre os riscos a que estavam sujeitos os
trabalhadores. Estava já sendo criadas as condições para se fazer o que ficou
conhecido como O Massacre de Felisburgo. Mas ... até os Boletins de Ocorrência
eram “revisados” pelos Sem Terra, porque quase sempre maquiados por policiais que
se negavam a escrever a versão dos Sem Terra. A CPT,
em 24 de setembro de 2004, fez uma representação junto à Secretaria de
Segurança Pública de Minas, alertando que oito jagunços estavam há dois dias
dentro do acampamento, mas as autoridades não tomaram as medidas para evitar o
massacre. O Estado, mais do que omisso, revelou-se cúmplice de
violência.
Estes fatos ganharam
repercussão nacional e internacional, mas não são isolados. Eles se inserem no
bojo dos 112 conflitos agrários no estado de Minas Gerais, registrados pela CPT
em 2004. Estes conflitos, além dos nove assassinatos acontecidos em Minas Gerais , foram
responsáveis por 32 tentativas de assassinatos, 27 ameaças de morte, 24
torturados, 75 presos e 56 feridos. Em 25 de novembro de 2004, a CPT de Minas
entregou ao Governo do Estado e à Assembléia Legislativa de Minas Gerais um
dossiê denunciando a existência de milícias armadas atormentando a vida dos
sem-terra acampados no estado. A CPT/MG também registrou 26 ataques de jagunços
a acampamentos em Minas nos anos de 2003 e 2004.
Após ter acontecido em Unaí, MG, dia 28
de janeiro de 2004, o Massacre dos quatro fiscais do Ministério do Trabalho, no
mesmo ano, dia 20 de novembro de 2004, um sábado chuvoso, dia de Zumbi dos
Palmares e da Consciência Negra, por volta das 10:40h da manhã, Adriano Chafic,
dono também de muitas outras fazendas na Bahia, chegou ao Acampamento Terra
Prometida, com um bando de 17 jagunços. Renderam um Sem Terra que estava na
guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a
soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em
caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se
reunir. Adriano Chafic, visto por muitos no local, liderava a operação,
perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?” e
ordenando “Podem atirar e matar...”.
O bando de jagunços - uns encapuzados, outros não - iniciaram os disparos.
Dentro de poucos minutos já tinham assassinado cinco Sem Terra - Francisco
Nascimento Rocha (72 anos), Juvenal
Jorge da Silva (65 anos) Miguel José
dos Santos (56 anos), Joaquim José
dos Santos (49 anos) e Iraguiar
Ferreira da Silva (23 anos). Todos os tiros foram à queima roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com
gasolina dezenas de barracos de lona preta, inclusive a barraca da Escola, a
barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Eni e do Jorge. Uma
criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras
dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então,
amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como conseqüência
daquele crime.
Eni
está viva, porque naquele momento estava na pequena Secretaria do MST na cidade
de Jequitinhonha. O Jorge está vivo, porque companheiros o convenceram a sair
rastejando pelos fundos do acampamento. Ele fugiu pelo mato por muitos
quilômetros até poder telefonar e dizer a Eni: “Cinco companheiros tombaram no Acampamento Terra Prometida, mas nós
seguiremos em frente!”
O pânico e traumas indeléveis estão
ainda como fantasmas na mente, no subconsciente de dezenas de crianças, idosos,
mães desesperadas procurando seus filhos. Leonice, mãe de onze filhos, com seis
já tendo migrado para São Paulo, por falta de reforma agrária, em pranto
gritava procurando seus filhos.
Avisada logo em seguida por Eni, a
Polícia só apareceu no local do Massacre de Felisburgo seis horas após, dando
prazo suficiente para os jagunços e Adriano Chafic fugirem, após esconder o
arsenal de armas em um buraco no mato. Detalhe: cada jagunço empunhava dois
revólveres. Além de encontrar as armas, a polícia encontrou as Notas Fiscais de
compra das armas na Bahia e da compra de colchões para abrigar os jagunços
durante a preparação do bárbaro massacre.
Houve feridos que morreram por falta de
socorro. Um motorista de Kombi da prefeitura de Felisburgo foi demitido porque
deu carona para um trabalhador Sem Terra que implorava na beira da estrada por socorro.
Mortes a queima roupa e com requintes de crueldade. Assassinatos seletivos,
pois os cinco mortos eram lideranças do acampamento e do MST do Vale do
Jequitinhonha. O ódio também se voltava contra ex-trabalhadores da fazenda,
pois, na mente doentia do assassino, significava afronta à submissão dos
trabalhadores aos seus coronéis.
Adriano Chafic foi preso duas vezes e
conquistou habeas corpus. Confessou a participação no massacre. Ele e os
jagunços – um já morreu – já deveriam estar detrás das grades, condenados como
perpetradores desse crime hediondo, mas há muitos outros culpados que não podem
ser esquecidos. O prefeito de Felisburgo na época e vários outros fazendeiros
participavam agressivamente das ameaças e davam todo apoio à sanha criminosa do
Adriano Chafic. Policiais, delegado e o governo de Minas que deixa as terras
nas mãos de empresas, especialmente as eucaliptadoras. Some-se que agora o
governador de Minas está tentando reabilitar uma Proposta de Emenda à
Constituição de Minas e aprová-la na Assembleia Legislativa querendo passar de
250 para 2.500 hectares a área que o Estado de Minas Gerais pode titular as
terras devolutas para as pessoas físicas ou jurídicas. Algo antidemocrático que
significa entregar de vez a imensidão de terras devolutas de MG, contrariando a
Constituição Federal que destina essas terras preferencialmente para a Política
de Reforma Agrária. Logo, o Governo de MG também deveria estar no Banco dos
réus ao lado do mandante Chafic.
O Presidente Lula assinou o Decreto de
desapropriação da Fazenda Nova Alegria por crime ambiental, não porque lá
ocorreu o massacre. Ou seja, matar uma árvore é mais grave do que matar cinco
pessoas, disse implicitamente o decreto de desapropriação. Mas o Poder
judiciário não se comoveu nem com as árvores matadas e nem com o sangue dos
pobres vertendo na mãe terra, naquele dia chuvoso. E impugnou o decreto
desapropriatório. Assim as 60 famílias que perseveram na luta estão ainda sem
ser assentadas e terão que fazer a reforma agrária na marra, porque o Estado violentador
dos direitos humanos não o faz.
No memorial
construído no cemitério da cidade de Felisburgo, há uma grande inscrição que diz:
"Aqui foram sepultados os Sem Terra Francisco, Iraguiar, Manoel,
Joaquim e Miguel, covardemente assassinados a mando do fazendeiro Adriano
Chafik, dia 20 de novembro de 2004. Eles tombaram, mas o sangue deles circula
nas nossas artérias e nós seguiremos lutando por reforma agrária, por justiça
social e dignidade. Essa era a luta deles e é nossa luta." A Família MST
assumiu o compromisso, imortalizado na frase inscrita do lado esquerdo do
memorial: "Nós caminharemos por
vocês na busca dos seus sonhos que também são os nossos sonhos: a terra, a
justiça e a dignidade". O memorial guarda a triste lembrança do dia em
que o fazendeiro Adriano Chafik comandou o Massacre de Felisburgo.
Em 20 de novembro de 2005, na celebração
de 1 ano do massacre de Felisburgo, uma série de testemunhos deixou todos os
presentes com o coração na mão. O Sem Terra Jorge Rodrigues Pereira, um dos
marcados para morrer naquele dia, deu o seu testemunho: "Iraguiar, antes de ser assassinado, me
disse: 'Jorge, sai fora, porque vão matar você'. Quando vi o tanto de armas,
tentei animar os companheiros a dialogar com os pistoleiros, mas tive que
correr para não ser morto também. Fugi para procurar socorro. Andei uns oito
quilômetros pelo mato até um vilarejo, onde pude telefonar para avisar aos
companheiros da cidade de Jequitinhonha e de Belo Horizonte. Nós não queremos
guerra. Queremos terra, pois sabemos plantar".
José Maria Martins, um sobrevivente que
levou um tiro na perna, disse: "Enquanto
a gente tentava levantar um companheiro que tombava, os pistoleiros matavam
outros. Após fugir para não morrer, olhei para trás e vi uma nuvem de fumaça
cobrindo o acampamento que ardia em chamas. Nunca vou esquecer isso. Doeu muito e
continua doendo!".
A Sem Terra Maria
Gomes enfatizou: "Antes da chegada
do MST em Felisburgo, os pobres sempre se curvavam diante do poder dos
fazendeiros. O massacre foi premeditado. As armas foram compradas antes e os
coronéis diziam que o massacre não aconteceria antes da eleição para não
atrapalhar a política e o candidato apoiado por eles, ou seja, um massacre não
ficaria bem".
Dia 20 de novembro de 2009, no
cemitério de Felisburgo, na celebração do 5º ano do Massacre de Felisburgo, a
emoção foi grande. Muitos choraram. As viúvas e os sobreviventes do massacre de
Felisburgo sentiram, mais uma vez, uma espada de dor atravessando o coração
deles. Graziele, de onze anos, entre lágrimas desabafou: "Todos os dias
sinto uma grande dor no coração, pois perdi meu pai Joaquim, perdi meu tio Miguel
e perdi meu cunhado Iraguiar. Todos nesse covarde massacre. Eu só peço justiça!"
Eis a dor que o latifúndio e o coronelismo causam.
A psicóloga doutoranda da PUC/SP
Fabiana Andrade e professora da PUC/MG pesquisou em sua dissertação o trauma
causado pelo Massacre de Felisburgo. Diz ela: “Diagnostiquei que as pessoas desenvolveram um trauma que afeta suas
vidas diariamente. Elas têm medo, não dormem à noite, algumas pessoas desmaiam
e têm pesadelos constantes.”
Três processos de indenização na
esfera cível tramitam parados na comarca de Jequitinhonha. Indenização? Cadê?
Apesar de tanta dor, um sentimento pode
ser cultivado: hoje, 8,5 anos após, o MST é respeitado em Felisburgo. Todo
sábado a produção do Acampamento Terra Prometida é carinhosamente esperada na
Feira de Felisburgo, pois os alimentos, verduras e legumes produzidos hoje
pelas 60 famílias da Terra Prometida abastecem a Feira da Cidade. “70% do abastecimento de alimentos para a
cidade vem do Terra Prometida”, diz o vice-prefeito de Felisburgo, Franklin
Canguçu. Ou seja, o latifúndio e os latifundiários oferecem balas que matam os
Sem Terra, mas os Sem Terra oferecem alimentação saudável, sem agrotóxicos,
para o povo. No acampamento Terra Prometida, a luta segue com muita
organização: grupos de jovens, rádio comunitária, escola municipal, além da
organização em núcleos de base. Assim, o MST segue na luta produzindo acima de
tudo pessoas cidadãs e revolucionárias. Tombaram cinco Sem Terra, mas os
sobreviventes seguiram em frente!
O julgamento de Adriano Chafic e de
Washington, esse gerente da fazenda, após quase nove anos, está marcado para
dia 15 de maio de 2013 pelo Tribunal do Júri, em Belo Horizonte, MG. O
Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas, da área de conflitos
agrários, Dr. Afonso Henrique de Miranda alerta: “Eu não estou trabalhando com a possibilidade de Chafik ser inocentado.
Eu trabalho com provas, e temos provas suficientes para sua condenação.” Será
feita justiça?
Belo Horizonte, MG, Brasil, 13 de maio
de 2013.
Eis, abaixo, links de alguns vídeos que estão na
internet, no youtube, vídeos que revelam a verdade nua e crua sobre o Massacre
de Felisburgo.
1)
Massacre de
Felisburgo, 1ª parte de 6 (7,2 minutos):
2) Massacre de Felisburgo, 2,30 minutos:
3) Massacre de Felisburgo, feito pelo italiano Antonio Luppo:
4)
Depoimento de
João Pedro Stédile, da coord. do MST Nacional, sobre o Massacre de Felisburgo,
7 minutos.
5)
Massacre de
Felisburgo, parte 1 (7,41 minutos):
6)
Massacre de
Felisburgo: Mística durante o Encontro de preparação para o Plebiscito Popular
em MG (12 minutos):
7)
Massacre de Felisburgo, em MG, segundo Eni, do MST. O Clamor
justiça chega aos céus! 05/05/2013 (14 minutos0):
8)
Brigada Justiça para Felisburgo. Justiça para o Massacre de
Felisburgo. Julgamento em BH, 15/05/2013
9)
Palavra Ética com Antoniel Assis e Joselane Gomes: massacre de
Felisburgo. E a Justiça? 14/11/2012
https://www.youtube.com/watch?v=6qMtT0PgUGk
10) Massacre de Felisburgo (Audiência na ALMG): Eni e Dr. Afonso
Henrique/Denúncias graves. 21/11/2012
https://www.youtube.com/watch?v=cxkNoUVA4u0
11) Dep. Padre João cobra Reforma Agrária em Audiência sobre Massacre
de Felisburgo. 21/11/2012
https://www.youtube.com/watch?v=xHNyKMQgiN8
12) Jorge Rodrigues, sobrevivente do Massacre de Felisburgo, MG:
memória do Massacre. 20/10/2012
https://www.youtube.com/watch?v=e6UniPXXcuc
13) Massacre de Felisburgo: Kely, do MST e sobrevivente, relata que
ameaças continuam. 20/10/2012
https://www.youtube.com/watch?v=T4Ya57hh7Zk
14) Palavra Ética com Jorge Rodrigues e Maíra Gomes,
sobreviventes/Massacre/Felisburgo/MST. 07/11/2012
https://www.youtube.com/watch?v=zlooMdNqQRo
15) Justiça para Felisburgo
https://www.youtube.com/watch?v=ZJ1sQhTT5Dw
16) JUSTIÇA PARA FELISBURGO 1
https://www.youtube.com/watch?v=1mHsA4yLw6Q
17) JUSTIÇA PARA FELISBURGO 6
https://www.youtube.com/watch?v=1mHsA4yLw6Q
18) JUSTIÇA PARA FELISBURGO 5https://www.youtube.com/watch?v=1AePAGHbR0U
Obs.: Muitos dos
vídeos, acima referidos, têm outras partes que podem ser encontradas em www.youtube.com.br
[1] Frei e Padre Carmelita, bacharel
e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP, mestre em
Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, doutorando em Educação pela
FAE/UFMG, assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br
– facebook: gilvander Moreira
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