AQUELLOS
OJOS AZULES
Virgílio de Mattos
Entre
o engasgo e o alívio uma imagem ficará pra sempre nas minhas fatigadas retinas:
aqueles olhos azuis, muito azuis e, agora exagerando no papel de bobo, fiquei
fazendo paralelos com o bolerão: aquellos
ojos verdes.
A notícia já esperada
não deixa de ser impactante: Caridad está morta e isso traz consigo toda a
dimensão do inexorável. A família ainda tem a delicadeza de me avisar apenas
após o enterro (revertere ad locum tuum),
evitando alguma maluquice de última hora e afastando a dificuldade que é a
viagem daqui até lá.
Fico
pensando em Loyola, o presidente da Associação Internacional dos
Machistas-Leninistas – que me nomeou secretário-geral e passamos os últimos dez
anos sacaneando um ao outro por isso – e no buraco que será a vida dele, agora
sem ela, depois de 53 anos de vida em comum.
Mas
preciso contar como foi que fui fazer parte dessa família, o meu familión habanero que me enche sempre de
orgulho e a única vez que me fez triste é exatamente agora, quando ela vai
embora. Já não mais a falta de ar, já não mais a inapetência completa, já não
mais as dores excruciantes. Agora nem mais a difícil consolidação dos dados a
campo das várias pesquisas importam. Agora é descanso, remanso, tranquilidade
enfim.
Volto
a 1999 e a professora Beatriz Vargas vem voltando de Cuba, mais precisamente de
um congresso a que não quis ir porque acreditava que não poderia estar longe
daqui por mais de uma semana e revendo isso penso: como é que a gente pode ser
tão estúpido às vezes...
Bia
conta o encontro com Caridad e a excelente impressão que havia causado. Começa
a articular sua vinda até Belo Horizonte; já que Nilo Batista a traria ao Rio
em breve; com um professor da direita, já morto – por isso não cito seu nome –
e com uma outra professora da mesma IFES em que trabalhávamos todos, ela também
de direita embora tivesse voltado “encantada com Cuba”, como alardeava pelos
corredores, ruas e avenidas.
Enfim
quando chegou aqui o tempo esquentou já na sua primeira intervenção, na vetusta
Sala da Congregação, quando Caridad, respondendo de bate-pronto a uma
provocação do professor de direita que tinha viabilizado sua vinda e o evento,
disse a todos que além de cubana era, com muito orgulho, membro e militante do
Partido Comunista de Cuba. Caímos na gargalhada – vários – e aplaudimos – todos
– àquela resposta tão linda e tão límpida que calou o provocador e continuamos
a série de palestras que ela tinha vindo fazer.
Foi
a convite dela que tanto eu quanto vários outros professores brasileiros lecionamos
na escola de capacitação de quadros do Ministério da Justiça a partir de 2000.
E que também os amigos dela na España, no México, na Venezuela, em Angola, etc.
se tornaram nossos amigos. Acredito que tenha sido nessa época que me tornei, a
princípio sem me dar conta, um membro do familión.
Lembro-me,
impactante, a foto do familión comigo
abraçado a ela e a Loyola, Lídice e Carlito lado a lado, com a presença súbita
e inquietante do cachorro Pirata, aparecendo ao fundo o Lada branco remendado e
redivivo; San Miguel del Padrón me parece agora um outro mundo, muito mais
distante e inacessível do que era quando Camilo Cienfuegos mandou que Loyola
escolhesse uma casa pra ele viver, logo após o triunfo da Revolução, e a casa
escolhida foi aquela, muito simples e pequena, porque havia um abacateiro no
fundo.
Gente
de escolhas simples e nem por isso menos difíceis, fico pensando na garota
pobre que se esforçava pra estudar pedagogia quando os gringos ainda mandavam na
sua terra e que ajudou de modo importante, o triunfo da Revolução nas cidades e
que depois do triunfo partiu para erradicar o analfabetismo, a miséria de não
se saber ler e seguiu ensinando aos que viriam a ensinar a se livrar das
próprias misérias, tanto no curso de psicologia, quanto no de direito e nas
sólidas pesquisas do Ministério da Justiça de Cuba.
Pulo
a parte do tiro de metralhadora na coxa esquerda que a fez mancar discretamente
pelo resto da vida e passo pela graduação em psicologia e o doutorado em
Moscou. A família, principalmente os “meninos”, sempre curtiram com ela pelo
forte sotaque caribenho com o qual falava o russo. Земля является синий! Foi
ela quem escreveu e me ensinou como pronunciar a frase símbolo do cosmonauta
que emprestou seu nome a meu neto e que quando eu tentava repetir todos riam.
A
vida é mesmo um instantâneo em preto e branco, minha querida, embora tenha
razão Gagarin e a terra tenha a cor dos seus olhos.
Recebi
alguns correios em resposta ao triste anúncio que fiz aos amigos mais próximos.
Verinha Malaguti Batista, responsável juntamente com Nilo Batista por ter feito
Caridad lecionar por várias vezes no mestrado de uma IES no Rio e grandes
amigos, me disse que ficaram “tristes como os tristes tigres!” E Arturo Cano,
desde Oaxaca: “Estoy igual de consternado que tú
se sentía la fraternidad que ella irradiaba.”
José
Luiz pediu que escrevesse alguma coisa pra registrarmos no blog, mas tá
difícil, tô numa tristeza de fazer clave de fá.
Busquei
as fotos para que se pudesse fazer uma homenagem, con la guardia en alto!, e escolhi estas duas: a de 2005, mirando
ao sul e a de seu último passaporte, com que mirou o sul espalhando seus
conhecimentos.
Aqueles
olhos azuis estão fechados pra sempre agora. Agora acabou. Logo agora que o
pior já passou.
Profa. Dra. Caridad Navarrete
Calderón, 2003
( a do passaporte)
Porto de La Habana, 2005
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