domingo, 30 de junho de 2013

1336- O fim do senado? que tal?

O Senado no federalismo brasileiro: reforma ou extinção?

José Luiz Quadros de Magalhães

         Em 2007 a absolvição pelo Senado do Senador Renan Calheiros trouxe revolta em parte da opinião pública brasileira. Algumas vozes passaram a defender o fim do Senado Federal, outras mais moderadas a fusão das duas casas o que pode significar a mesma coisa por caminhos diferentes e uma linguagem menos agressiva. Como de costume, passados alguns meses, uns escândalos a mais, ameaças de CPI’s, que vão transformando o Congresso Nacional em comissariado de polícia, o que definitivamente não é sua função, o tema do bicameralismo e unicameralismo foi rapidamente esquecido. Naquele momento, as razões para extinção ou fusão das duas casas eram muito mais emocionais do que técnicas, mas despertaram em muitas pessoas a vontade de compreender a finalidade e utilidade desta casa legislativa em nossa história, especialmente sua finalidade e utilidade contemporânea. Em 2009, com o novo escândalo envolvendo diversos parlamentares e especialmente o Senador José Sarney, retorna a oportunidade de discussão do tema.
         Neste ensaio vamos discutir a função do bicameralismo e do unicameralismo no Brasil e em alguns outros estados nacionais, para compreendermos a função que têm o nosso Senado na Constituição de 1988. Pretendemos demonstrar a necessidade de uma reforma constitucional que resgate o Senado para a democracia representativa e para o federalismo brasileiro. Acreditamos que da forma como funciona atualmente o nosso Senado, mais do que desnecessário é uma instituição ruim para a democracia e para o nosso federalismo.
         Faremos uma análise teórica, comparativa e histórica, logo contextualizada. Queremos demonstrar que a desnecessidade do nosso Senado não é uma tese jurídica descontextualizada. Não se trata de defender em tese o unicameralismo no lugar do bicameralismo. O que pretendemos levantar é o fato de que o Senado, no contexto histórico institucional e constitucional da republica democrática instituída no Brasil a partir de 1988, pode ser desnecessário, e mais do que isto, pode ser prejudicial, uma vez que não cumpre sua função de casa de representação dos entes federados, distorce a soberania popular fundada no sufrágio igualitário universal (que proíbe a existência de voto censitário ou qualquer outra forma de pesos diferenciados de votos para os cidadãos brasileiros), e ainda é historicamente marcado por uma majoritária representação de elites políticas e econômicas conservadoras, famílias que se alojam no poder, perpetuando um familismo extremamente prejudicial para a ideia de Republica e impedindo reformas e transformações que a Câmara muitas vezes poderia promover.
         Para compreendermos o papel do Senado vamos começar pela análise de seu funcionamento na Constituição de 1988 para posteriormente fazermos um estudo comparado com o funcionamento do Senado e sua finalidade(s) em outras democracias contemporâneas.


O SENADO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A adoção da organização do parlamento, em uma ou duas casas legislativas, ultrapassa a discussão da forma federal de Estado, podendo ter aspectos políticos relevantes para a estabilidade e conservação do ordenamento jurídico.
No Brasil, a Constituição de 1988 mantém o bicameralismo das Constituições anteriores.
A Câmara de Deputados é formalmente a representação popular onde o mecanismo de escolha deve respeitar a idéia de soberania popular e voto igualitário: um cidadão um voto. O Senado é formalmente a casa de representação dos interesses dos entes federados em um estado federal. No Brasil o Senado representa os Estados membros e o Distrito Federal em um federalismo simétrico, o que implica na idéia de que a representação dos Estados membros da federação não é proporcional a população, ao poder econômico ou dimensão territorial, mas igualitária para cada Estado: três senadores para cada estado membro e o distrito federal.
O nosso Senado, além de casa de representação dos Estados membros e do DF cumpre a função de casa legislativa revisora de natureza moderadora conservadora, com o objetivo de barrar prováveis mudanças bruscas na legislação e na Constituição, decorrentes de uma alteração radical na composição da Câmara dos Deputados, uma vez que esta casa tem todas as suas cadeiras em disputa no período de quatro em quatro anos, enquanto no Senado a renovação ocorre na proporção de um terço, dois terços a cada quatro anos, permanecendo, portanto sempre uma parcela de componentes eleitos na legislatura anterior. Desta forma, uma mudança radical na composição da câmara de deputados será amortecida pelos senadores eleitos há quatro anos atrás, que podem ser na proporção de um terço ou dois terços de todo o Senado. Esta característica bastante conservadora é capaz de prejudicar a vontade popular expressa em um momento político específico, frustrando a população com o papel desempenhado pelo legislativo. Esta situação pode ser mais grave quando a maioria do Senado for contraria a maioria da Câmara e ao Governo eleito. Como sabemos o governo depende do Congresso nacional para governar, como em qualquer democracia representativa do mundo, e como o Senado participa da votação em todo processo legislativo, não havendo separação de competências legislativas segundo a vocação da casa, esta característica conservadora será ainda mais acentuada.

Um outro grave problema que ocorre em nosso sistema bicameral decorre da mencionada ausência de repartição constitucional de competência legislativas e constitucionais entre as duas casas de modo que mantenha a função de representação do povo por parte da Câmara de Deputados e a representação dos estados membros por parte do Senado.
A Câmara dos Deputados, pelo fato de representar os cidadãos, e uma vez que se adotou o sistema de circunscrições equivalentes ao território dos Estados membros, deve ter número variável de Deputados por circunscrição (que corresponde ao território do Estado membro), correspondente à proporção do número de seus eleitores. Em outras palavras, enquanto no Município e nos Estados membros as eleições ocorrem em circunscrição única, o que implica na adoção do sistema proporcional puro, para os representantes do povo brasileiro na Câmara de Deputados Federais a Constituição não adota a circunscrição única mas sim um sistema que podemos chamar de distrital proporcional uma vez que o território é dividido em circunscrições para fim de aprisionamento do voto. Exemplificando: a) nas eleições para vereadores cuja dimensão é o território do município, o eleitor de qualquer bairro ou distrito pode votar em qualquer vereador de qualquer bairro ou distrito (circunscrição única); b) nas eleições para deputados estaduais, o eleitor de qualquer município, de qualquer região do Estado pode votar em qualquer candidato do Estado, seja qual for seu domicílio, sua região ou cidade (circunscrição única); c) nas eleições para deputados federais a adoção de circunscrição única implicaria na possibilidade do eleitor de qualquer cidade, município, região ou estado, poder votar indistintamente em qualquer candidato também de qualquer local. Isto não ocorre justamente pelo fato de nossa Constituição, diante da grande dimensão territorial e diversidade cultural e econômica presente em nosso território, optar pela adoção de um sistema distrital proporcional. Em outras palavras, o eleitor domiciliado em Minas Gerais só pode votar nos candidatos a deputados federais também domiciliados e inscritos em Minas Gerais. Isto não significa que estes deputados representem Minas Gerais, representam o povo brasileiro, mas para facilitar o controle dos representados sobre seus representantes e evitar distorções favoráveis a candidatos residentes e domiciliados em determinadas regiões decorrentes de poder econômico ou mídia além de outros fatores, a Constituição dividiu o território em circunscrições que correspondem ao território dos Estados membros. Em cada uma desta circunscrição haverá uma eleição proporcional para preenchimento de vagas que variam de oito a setenta.
     Desta divisão decorre um problema sério: o texto constitucional estabeleceu o número mínimo 08 (oito) e máximo 70(setenta) Deputados por Estado. Esta proporção criada pelo mínimo e máximo não permite que haja a proporcionalidade exigida por princípio fundamental da Constituição que mantenha o sufrágio igualitário de um cidadão um voto, visto a enorme disparidade existente entre os Estados mais e menos populosos. Ou seja, a proporção entre o Estado menos populoso com menor eleitorado e o mais populoso com maior eleitorado não cabe matematicamente dentro da proporção entre oito e setenta. Isto faz com que os brasileiros habitantes dos Estados menos populosos sejam super-representados na Câmara (o seu voto vale mais pois com menos votos esses eleitores elegem mais deputados) enquanto que os habitantes dos Estados mais populosos sejam sub-representados (uma vez que para eleger um deputado precisa de muito mais votos do que o eleitor dos estado menos populosos). Importante lembrar que se trata neste caso de representação popular e não representação dos Estados membros pois estes estão representados no Senado. Para corrigir este problema é necessário mudar os números mínimo e máximo ou então mudar o número de circunscrições que não precisam corresponder ao território dos Estados uma vez que os deputados não representam os Estados mas sim o povo brasileiro.
Entretanto, com razão, argumenta-se que os Estados menos populosos seriam mesmo assim prejudicados por esta regra, pois, enquanto São Paulo teria 70 deputados, Estados como Rondônia, Amapá, Acre, Roraima entre outros teriam cada um apenas oito deputados. A casa de representação dos Estados membros é o Senado e este tem três senadores para cada estado mantendo assim o equilíbrio (ou simetria horizontal) federal. O Senado Federal, por representar a federação, estabelece pesos iguais de representação entre os Estados, sendo que cada um terá três representantes, incluindo-se a partir de 1988, a representação do Distrito Federal. O prejuízo dos Estados menos populosos, logo, só ocorre, pela inexistência de competências legislativas próprias que preservem de um lado a simetria no senado e de outro a proporcionalidade na Câmara. São necessárias mudanças no processo legislativo que estabeleçam competências exclusivas de iniciativa para cada casa, além das que já existem, observando a finalidade constitucional de cada uma delas.

Outro problema com o Senado será seu conservadorismo, muito mais marcante do que sua natureza de Casa Legislativa com a responsabilidade de manter o equilíbrio federal. Esse conservadorismo negativo manifesta-se, claramente, em três momentos: a) o mandato de seus membros; b) a forma de renovação dos mesmos; c) a sua competência legislativa onde não há demarcações claras de iniciativas legislativa para uma e outra casa levando em consideração sua função e finalidade constitucional.

         O mandato dos Senadores é de 8 anos, o dobro do mandato dos Deputados Federais, não existindo, ainda, a possibilidade de renovação de todos os seus membros de uma só vez, pois a eleição ocorre a cada quatro anos, renovando-se um terço e dois terços dos seus membros alternadamente.O estabelecimento desse mecanismo como já mencionado, implica na existência de uma casa legislativa, que poderá representar em determinado momento político, barreira às transformações mais amplas apoiadas pela maioria da população, oriundas de uma Câmara dos Deputados totalmente renovada pelo voto popular.
O caráter limitador do processo legislativo pelo Senado se agrava pelo processo de elaboração normativa estabelecida na Constituição, onde todas as matérias devem ser votadas, normalmente, nas duas casas legislativas separadamente, e em alguns casos, como na apreciação de veto presidencial, pelo Congresso Nacional, em sessão unicameral.
A adoção desse processo implica que as matérias oriundas da Câmara dos Deputados, deverão ser discutidas e votadas no Senado, sendo que se não aprovadas serão arquivadas ou então, sofrendo emendas, voltarão para apreciação das modificações pela Câmara. Aprovadas ou não, as modificações sofridas no Senado por meio de emendas, mas aprovado o projeto de lei, este será encaminhado para sanção ou veto do Presidente da República. Se o projeto de lei é proposto por senador, iniciando-se no Senado ocorre o mesmo procedimento só que em sentido contrário. Importante observar que os projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Poder Judiciário, de iniciativa popular, de iniciativa do Ministério Público ou de iniciativa de deputados federais, deverão se iniciar na Câmara, seguindo o procedimento acima. Já os projetos de iniciativa dos senadores devem se iniciar no Senado seguindo então o procedimento já referido: após discutido votado e aprovado no senado segue para a Câmara, esta pode arquivar ou então, aprovar sem emendas indo para sanção ou veto do Presidente da República. Se houver emendas aprovadas ao projeto de lei estas emendas retornam para apreciação da Câmara. Aprovadas ou rejeitadas as emendas, segue o projeto para sanção ou veto do Presidente da República. O que chama atenção e que causa problemas é a inexistência de matérias de iniciativa exclusiva do Senado e da Câmara conforme a finalidade constitucional de cada uma destas casas. Para que o Senado cumprisse sua função de representação dos interesses dos Estados membros evitando a distorção que ele provoca da proporcionalidade da representação popular, e para que a Câmara cumprisse sua função de representação igualitária do povo evitando a distorção que causa da simetria federal, teríamos que corrigir os seguintes equívocos e omissões constitucionais:
a)  As matérias de interesse dos Estados (matéria fiscal e orçamentária, por exemplo) deveriam iniciar obrigatoriamente no Senado e ter obrigatoriamente a palavra final do Senado, após discussão e aprovação ou não do projeto de lei, com ou sem emendas por parte da Câmara de deputados. A não aprovação de um projeto de lei do Senado implicaria em veto da Câmara que obrigatoriamente retornaria ao Senado para apreciação.
b) Todas as outras matérias de interesse popular em geral deveriam ser iniciadas na Câmara de Deputados e depois de passar pelo Senado, retornar sempre à Câmara de Deputados para discussão e votação final, na forma acima descrita.
Estas análises do nosso texto constitucional criam uma desconfiança em relação ao nosso bicameralismo e a busca de nova configuração para nossa democracia representativa que possa oferecer maior clareza, celeridade e transparência no processo legislativo. O unicameralismo pode oferecer uma dinâmica muito mais adequada a um país em transformação. Entretanto, a adoção do unicameralismo esbarra na lógica federal especialmente na adoção de um federalismo simétrico que busca a correção das diferenças regionais por meio de uma representação igualitária entre os entes federados.
         Será que todo federalismo é juridicamente simétrico? A única maneira de corrigir as brutais distorções no desenvolvimento econômico é por meio de um federalismo simétrico? Não acredito que seja. O fim da simetria não pode ser obstáculo para a adoção do unicameralismo. Existem Estados federais juridicamente assimétricos assim como existem Estados federais unicamerais. O bicameralismo não é uma condição inafastável para o federalismo. Vejamos pois algumas soluções:
         a) Para a manutenção do Senado em um federalismo simétrico a superação do problema pode ocorrer de maneira simples, partindo-se da modificação dos três fatores, enumerados anteriormente, como sendo responsáveis pelo caráter conservador do Senado.
I- A redução do mandato para quatro anos e a renovação de todos os seus membros, simultaneamente, com a Câmara de Deputados, pode reduzir o caráter conservador mantendo-se o equilíbrio federal no parlamento.
II- Outro avanço pode ser alcançado, corrigindo-se o processo legislativo e estabelecendo-se competências diversas, para as duas casas legislativas. Determinando para o Senado e para a Câmara competências legislativas específicas segundo sua finalidade constitucional.
III- Criar novas circunscrições territoriais para fins eleitorais, que permitam a correção das distorções entre os estados com maior ou menor população ou modificação dos números mínimo e máximo de deputados por circunscrição o que pode atenuar o problema.
b) Com a extinção do Senado e a adoção de um federalismo unicameral simétrico, dinâmico, mantendo-se mecanismos fiscais e princípios constitucionais fundamentais que promovam e protejam o equilíbrio federal com a redução das desigualdades regionais e sociais.
c) Uma opção radical: temos defendido em vários trabalhos, o Poder Municipal, estudando as opções existentes para a desejável descentralização de poder, o que pode ocorrer por meio de uma federação de Municípios; uma miniaturização dos Estados Membros; ou a simples modificação da repartição de competências e os mecanismos atualmente existentes ainda muito centralizados. Reconhecemos, entretanto, que este é um caminho incerto.

Para entendermos a adoção de um unicameralismo em uma Federação simétrica ou assimétrica precisamos resgatar alguns conceitos. O que significa um federalismo simétrico e assimétrico?
     O Federalismo simétrico (simetria jurídica) busca o equilíbrio de um Estado Federal de fato assimétrico (as assimetrias reais, de natureza econômica, cultural, populacional são muito comuns), onde os entes federados de mesmo nível (municípios entre si e estados membros entre si) têm as mesmas competências e se for o caso, o mesmo número de representantes no Senado. Digo, se for o caso, pelo fato dos municípios, embora sendo entes federados, não terem representantes no Senado, mas tem entre si, as mesmas competências legislativas ordinárias, administrativas e constitucionais.
O federalismo assimétrico ocorre em Estados complexos que convivem com uma diversidade lingüística e étnica de especial complexidade histórica, como ocorre com o Canadá onde pessoas de cultura e idioma francês convivem com pessoas de cultura e idioma inglês, ou a Bélgica que dispõe de um Senado para representação das comunidades lingüísticas neerlandesa (flamenga); francesa e uma minoria alemã. Pela existência destas comunidades distintas que guardam muitas vezes rivalidades antigas, o Senado apresenta uma assimetria que procura responder ao peso populacional de cada comunidade, assim como o peso econômico algumas vezes. Portanto no federalismo assimétrico há um tratamento diferenciado em relação aos entes federados de mesmo nível que procuram acomodar diversidades étnico-culturais e ou econômicas.
No Brasil, embora convivamos com assimetrias reais que vão desde uma diversidade cultural muito rica até realidades econômicas muito diferentes, adotamos um federalismo simétrico do ponto de vista constitucional.
A adoção de um federalismo assimétrico (juridicamente) no Brasil deve buscar a superação das assimetrias sociais e econômicas e não perpetuá-las. Este é um problema que deve ser enfrentando e uma crítica que pode surgir à adoção de tal proposta. O federalismo assimétrico serve apenas para manter e reconhecer as diferenças, como no caso Belga e canadense ou pode servir para superar assimetrias?
O federalismo assimétrico pode efetivamente ajudar a manter a unidade em países como Bélgica e Canadá, que têm grandes diversidades culturais que se mostram em certos momentos quase que insuperáveis. Entretanto, nos parece obvio, que, se de um lado este modelo federal reconhece as diversidades populacionais e econômicas, não condena nenhum Estado membro (ente federado) a condição de subalternidade, o que seria claramente inaceitável por países formados por grandes diversidades étnicas e logo culturais, lingüísticas e econômicas como Bélgica, Canadá, Rússia, Suíça e citando um caso que não deu certo, a Iugoslávia.
O modelo federal proposto para o Brasil não seria, entretanto de um federalismo assimétrico nestes termos. Como já discutido, poderíamos seguir um modelo de federalismo simétrico com as reformas essenciais demonstradas ou então um federalismo unicameral como ocorre, por exemplo, com a Venezuela.
Surge então uma outra pergunta: um federalismo unicameral é necessariamente assimétrico? A resposta é não. Vejamos.
A inexistência do Senado nos sistemas unicamerais pode levar a uma apressada conclusão de que, no federalismo, a representação dos Estados membros (entes federados) seja feita pela Câmara de deputados que necessariamente teria uma representação proporcional de acordo com a população de cada Estado. Em primeiro a escolha dos representantes na Câmara não precisa ser feita pelo sistema distrital proporcional com circunscrições equivalente ao território do Estado como ocorre hoje no Brasil. A forma de escolha dos representantes do povo pode ser pelo sistema distrital majoritário[1], distrital misto[2], distrital proporcional (onde os distritos ou circunscrições eleitorais não correspondam ao território dos estados membro) ou ainda pelo sistema proporcional puro[3]. Só isto já elimina qualquer suspeita de favorecimento de qualquer estado. Além disto, o equilíbrio federal ocorre efetivamente por meio de uma justiça fiscal com a distribuição de recursos de forma justa, buscando o cumprimento do principio da redução das desigualdades regionais e sociais. O equilíbrio federal com equidade deve ser construído com políticas públicas, políticas fiscais e equidade financeira e orçamentária fundadas sobre o principal constitucional de observância obrigatória de redução das desigualdades regionais e sociais.

O SENADO EM OUTROS ESTADOS NACIONAIS

Ao realizar um estudo comparado, especialmente na realidade europeia, percebemos que há uma característica comum ao Senado: o Senado funciona como uma espécie de superego da nação, uma casa conservadora que não detém as mesmas competências que a Câmara (casa de representação popular e por este motivo quase sempre mais importante), e que funciona muitas vezes apenas para vetar ou protelar a entrada em vigor de uma lei, levando a Câmara a rediscutir e, portanto, repensar determinada matéria. Outra característica comum do Senado e a representação dos interesses regionais. Para o exercício desta função o Senado detém competências próprias ligadas a estes interesses, onde, em geral detém a palavra final. Apenas nestas matérias. Portanto conservar, evitar mudanças bruscas e representar interesses territoriais é a função preponderante do Senado, que por este motivo não têm as mesmas competências e a mesma força da casa legislativa popular. Importante que se diga que isto não é regra geral existindo uma enorme variedade de sistemas. No parlamentarismo e comum que apenas a Câmara de deputados escolha o governo e logo possa também derrubá-lo, mas há exceções: na Itália o Senado também participa da escolha e da derrubada do governo. Não se pode dizer que o sistema italiano sirva de modelo, uma vez que te se mostrado extremamente instável. De 1947 até hoje o Itália teve mais de cinqüenta governos, o que dá uma média de quase um governo por ano.
Devemos conservar, barrar mudanças, ou criar um sistema que acompanhe as transformações rápidas das sociedades contemporâneas? Necessitamos de um Senado para defender os poderes locais ou precisamos efetivamente de uma revisão do pacto federativo que descentralize recursos e competências para os estados membros e municípios?
Prosseguindo com a análise comparada vamos citar alguns exemplos específicos, despertando nos leitores a curiosidade para que busquem outros exemplos. Se o leitor quiser defender o nosso sistema basta buscar exemplos no sistema norte-americano. Lembro, entretanto, que este sistema tem se mostrado arcaico e pouco democrático, fundado em eleições indiretas para presidente com forte presença dos grupos de pressão organizados de setores econômicos e financiamento privado de um sistema muito caro em um bipartidarismo que chega facilmente a unanimidade quando se trata de sistema econômico. A proliferação dos mecanismos de controle sobre a população (especialmente dos pobres, hispânicos e árabes) e dos órgãos internos de inteligência soma-se uma mídia concentrada e comprometida com os interesses econômicos da indústria armamentista e petrolífera. Lembramos ainda que este bipartidarismo no bicameralismo presidencial norte-americano, só funciona, devido a características históricas especificas, entre elas o fato de inexistência de uma oposição ideológica efetiva ou algum partido de expressão que apresente alternativas ao modelo sócio-econômico dominante. As eleições norte-americanas são muito desacreditadas entre a população pobre que não vê perspectivas de mudança de vida. A participação nas eleições estaduais é muito inferior ao percentual de 50% do eleitorado enquanto as eleições presidenciais alcançam em média este patamar.
Podemos buscar um exemplo do outro lado do mundo: o Japão. Neste país o Congresso Nacional tem o nome de Dieta e é composta por duas câmaras: a Câmara de representantes (equivalente aos deputados) e a Câmara de Conselheiros (equivalente ao Senado). Os deputados têm mandato de quatro anos enquanto os conselheiros têm mandato de seis anos, característica comum do bicameralismo, onde o mandato do senador é em geral maior do que dos deputados, justamente acentuando o caráter conservador daquela casa. A Câmara de Representantes é mais poderosa e conta com maior numero de membros (em torno de 500 membro de acordo com os cálculos realizados para a eleição distrital que antecede as eleições), enquanto que o Senado (Câmara de Conselheiros) têm a metade deste numero. Só a Câmara de Representantes (deputados) participa da escolha e queda do governo. Normalmente um projeto de lei se inicia e se aprova na Câmara de Representantes sendo que a Câmara de Conselheiro  pode apresentar emendas que podem ser derrubadas pelos Representantes.[4]
Um caso interessante de federalismo bicameral complexo e assimétrico é o da Bélgica. Este país une duas etnias preponderantes (valões de fala francesa e flamengos de fala holandesa), além de uma minoria alemã expressiva. Para superar as diversidades ainda hoje muito acirradas, as reformas constitucionais de 1893, 1899 e 1921 introduziram a representação proporcional e a igualdade lingüística. Desde 1970 a Constituição reconheceu comunidades lingüísticas com bastante autonomia e competências importantes em matéria de educação. Esta descentralização constante culminou com a adoção do federalismo em 14 de Julho de 1992. O Senado belga não tem as mesmas competências da Casa dos Representantes (deputados) e cumpre uma função de manutenção da unidade territorial belga constantemente ameaça pelos conflitos e preconceitos entre flamengos e valões.  Como curiosidade para a percepção da complexidade deste Estado Federal assimétrico citamos o professor Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp quando analisa a composição do Senado belga:
“O Senado possui setenta e um membros, assim escolhidos:
a) vinte e cinco senadores eleitos pelo colégio eleitoral holandês;
b) quinze senadores eleitos pelo colégio eleitoral francês;
c) dez senadores indicados pelo Conselho da Comunidade Flamenga;
d) dez senadores indicados pelo Conselho da Comunidade Francesa;
e) um senador indicado pelo Conselho da Comunidade de fala alma;
f) seis senadores indicados pelos senadores referidos nas letras a) e c);
g) quatro senadores indicados pelos senadores referidos nas letras b) e d).
Para complicar mais um pouco, existem mais regras acerca dessa distribuição. Um dos senadores da letra a), c) e f) deverá ser legalmente residente no dia de sua eleição na Região Bilíngüe de Bruxelas-Capital; seis dos senadores das letras b), c) e g) deverão ser legalmente residentes no dia da eleição também na Região bilíngüe de Bruxelas-Capital.”[5] O total de senadores belgas deve sempre se basear na proporcionalidade existente entre os diversos grupos lingüísticos. Um detalhe curioso: a remuneração dos senadores e inferior a remuneração dos deputados.
O federalismo alemão é um exemplo importante de federalismo de cooperação, especialmente após a incorporação da República Democrática da Alemanha (Alemanha oriental socialista) pela República Federal da Alemanha (Alemanha ocidental capitalista). Na linha do que temos demonstrado ate aqui, o Senado não tem as mesmas competências da Câmara de deputados não tendo a mesma importância desta. Esta ultima escolhe o governo e pode derrubá-lo. Um dado interessante do Senado como casa de representação dos “Lander” é o fato dos Senadores serem membros dos governos estaduais o que garante a efetiva representação dos interesses dos entes federados estaduais por meio de seus governos eleitos. Muitas vezes os próprios ministros–presidentes dos “Lander” (que seriam o equivalente aos nossos governadores) representam seus Estados. Cada “Land” só necessita enviar um representante para o “Bundesrat” (Senado) uma vez que todos os votos de cada estado membro devem ser no mesmo sentido. Em nível estadual a Baviera é o único estado membro que adota o sistema bicameral com a adoção de um senado estadual.[6]
A França não é um estado federal, mas como muitos outros estados unitários tem um Senado que não detém as mesmas competências nem a mesma importância da Câmara de deputados, não participando da escolha do governo e de sua derrubada. O Senado francês é escolhido de forma indireta representando as coletividades territoriais da Republica. O numero de cadeiras no Senado é de 322 onde 296 representam os departamentos metropolitanos, 8 para os departamentos “d’outre-Mer”, 4 para os territórios “d’outre-Mer” e 12 para os franceses estabelecidos fora da França. O sistema de representação das coletividades territoriais é proporcional sendo que cada departamento tem direito a uma cadeira até 154.000 habitantes e mais uma cadeira para cada 250.000 habitantes. O mandato dos senadores é de nove anos, superior aos quatro anos dos deputados. A renovação do senado ocorre na proporção de um terço a cada três anos. O senado francês participa do processo legislativo mas a vontade da Câmara de Deputados sempre prevalece. A inferioridade do Senado se caracteriza também pela impossibilidade deste oferecer um voto de desconfiança em relação ao governo. Existem, entretanto, alguns domínios onde o bicameralismo francês se mostra igualitário. É o caso da adoção de leis constitucionais e leis orgânicas relativas ao Senado.
A Espanha adota uma forma de organização territorial “sui generis” classificada como uma forma altamente descentralizada de organização territorial, estado regional ou regionalizado ou como preferimos, estado autonômico, terminologia adotada por constitucionalista espanhóis. O Congresso nacional espanhol, o legislativo nacional, e chamado de “Cortes Gerais”. Seguindo a linha dos outros sistemas bicamerais já citados, seja em estados federais, seja em estados unitários ou regionais, o Senado não tem a mesma competência da Câmara de Deputados, mostra-se como uma casa inferior que não participa da escolha do governo ou de sua derrubada e que tem como característica fundamental a representação de interesses regionais. A tramitação de projetos e das disposições de leis inicia-se sempre no Congresso de Deputados, mesmo que a iniciativa seja do Senado. A competência do Senado não é simétrica com a do Congresso dos Deputados para a produção legislativa uma vez que só cabe a proposição de emendas ou o veto ao conjunto do projeto enviado pelo Congresso de Deputados, com o voto da maioria absoluta do Senado. A aprovação de emendas ou o veto do Senado produz o reenvio do texto para a reconsideração dos deputados, que podem por sua vez se manifestarem por maioria simples sobre as emendas do Senado. No caso de veto este pode ser derrubado por maioria absoluta do Congresso de deputados.[7]
Poderíamos citar diversos outros exemplos mas não é necessário. Estes confirmam os casos mencionados.[8]

O SENADO NÃO É ESSENCIAL AO FEDERALISMO NÃO SE CONSTITUINDO, PORTANTO, EM CLÁUSULA PÉTREA.

Diante do que já foi dito sobre equilíbrio federal percebemos com bastante clareza que não se constitui a existência do Senado em uma cláusula pétrea, justamente pelo fato de que sua inexistência não afetar o federalismo. Acrescente-se ainda a constatação aqui feita, de que sua configuração atual fere a Constituição trazendo desequilíbrio na representação popular, perpetuando privilégios locais por meio do familismo além de não cumprir sua função de representação dos Estados.[9] Existem várias formas de Estados Federais no mundo contemporâneo. Podemos perceber com clareza o movimento em direção a uma acentuada descentralização, que os Estados democráticos do mundo vêm construindo.
O federalismo clássico constitui-se no modelo norte-americano, formado por duas esferas de poder, a União e os Estados-membros (federalismo de duas esferas[10]), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de Estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar novas entidades territoriais de direito público, o Estado federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de direito público interno), uma das esferas de poder, ao lado dos Estados-membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica superior.
Importante ressaltar, neste ponto, alguns aspectos importantes:

1.     O federalismo clássico de duas esferas diferencia-se de outros Estados descentralizados, como o estado autonômico, regional ou unitário descentralizado, pelo fato de ser a única forma de Estado cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder constituinte decorrente. Assim:
1.1 No Estado unitário descentralizado, as regiões autônomas recebem, por lei nacional, competências administrativas, caracterizando a descentralização pela existência de uma personalidade jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Esta descentralização de competências administrativas pode ocorrer em nível municipal, departamental ou regional, em um nível ou em vários níveis simultaneamente. Exemplo: a França.
1.2 No Estado regional, as regiões autônomas recebem competências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando o seu Estatuto, mas sempre com o controle direto do Estado nacional (é o modelo italiano, onde, embora a Constituição da Itália de 1947 mencione este Estado como sendo unitário, as transformações por que vem passando fazem com que os teóricos classifiquem-no hoje como modelo de Estado altamente descentralizado: um Estado regional).
1.3 No Estado autonômico espanhol, outro modelo altamente descentralizado, ocorre uma descentralização administrativa e legislativa ordinária, diferenciando-se este modelo de Estado regional pela forma ímpar de constituição das autonomias, onde a Constituição Espanhola de 1978 permitiu que a iniciativa partisse das províncias para constituírem regiões autonômicas e que estas elaborassem seus Estatutos, que, para terem validade, devem ser aprovados pelo Parlamento Nacional, transformando-se em lei especial.
1.4 Já no Estado federal, os entes descentralizados detêm, além de competências administrativas e legislativas ordinárias, também competências legislativas constitucionais, o que significa que os Estados membros elaboram suas Constituições e as promulgam, sem que seja possível ou necessária a intervenção do Parlamento Nacional (no nosso caso, do Congresso Nacional) para aprovar esta Constituição estadual (como é necessário em relação aos Estatutos das regiões autônomas no Estado regional e no Estado autonômico), que sofrerá apenas um controle de constitucionalidade a posteriori. Não há, portanto, hierarquia entre Estados-membros e União.
1.5 Não estamos considerando, como característica diferenciadora entre estes tipos de Estados, a descentralização de competências judiciais.
1.6 O grau de descentralização ou o número de competências legislativas e administrativas transferidas aos entes descentralizados também não é hoje mais elemento diferenciador, uma vez que existem Estados federais centrífugos onde o número de competências legislativas e administrativas dos estados-membros é inferior ao de regiões autônomas. O nosso federalismo é, ainda, um dos modelos mais centralizados, bastando, para confirmar esta afirmativa, ler a distribuição de competências legislativas e administrativas nos artigos 21 a 24 da Constituição Federal de 1988, para verificar a concentração de competências na União, em detrimento dos Estados-membros e Municípios.
Portanto, o que caracteriza o federalismo, o seu elemento essencial sem o que não se pode falar em federalismo, é a descentralização de competências constitucionais (o poder constituinte decorrente)[11]. A existência ou não de um Senado Federal não é um elemento essencial mas apenas uma característica de um tipo federal. A partir da Constituição de 1988, os municípios brasileiros não só mantém sua autonomia como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de leis orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivo e legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja possível ou permitida a intervenção do legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorrerá com as Constituições municipais (leis orgânicas) será apenas o controle a posteriori de constitucionalidade o mesmo que ocorre com os Estados membros.
Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente federado, por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica de municípios, ausência de poder judiciário no município) são frágeis ou inconsistentes diante da característica essencial do federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, que é a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados. Apenas no Estado Federal ocorre a descentralização de competências constitucionais.
Quanto à existência de um processo histórico de união, esta não existiu no Brasil, assim como em vários Estados federais pelo mundo. A formação de nosso Estado Federal ocorreu de forma fictícia, onde ocorre uma União constitucionalmente construída a partir de 1891, mas sem a existência de um processo histórico de união do que estava separado, uma vez que o Brasil já nasce unido, tendo a nossa primeira Constituição de 1824, estabelecido um Estado unitário.
O argumento da negação do município como ente federado fundado em idéia de inexistência de representação dos municípios no Senado não procede. Como já mencionado, existem Estados federais não bicamerais (a Venezuela é unicameral), assim como ocorre o bicameralismo em Estados unitários (França), regional (Itália), autonômico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado não é apenas uma casa de representação dos Estados, mas cumpre também uma função revisora e conservadora, caracterizada pela duração do mandato e forma de renovação de suas cadeiras, como também estudado anteriormente.


CONCLUSÃO

     Uma primeira conclusão reside na constatação da necessidade de reforma de nosso sistema representativo que pode seguir duas direções: a manutenção de um bicameralismo em um federalismo simétrico com a especialização das duas casas ou a adoção de um federalismo unicameral também simétrico.
A manutenção do atual sistema se mostra irracional e prejudicial aos interesses populares, portanto ofensivos à democracia representativa e participativa que estamos construindo em nosso país após 1988.
A transformação de nosso Senado em casa conservadora e investigadora ofende a vontade popular. Não há no Senado nenhuma discussão de grandes projetos de transformação das instituições e da sociedade brasileira. Assistimos a uma sucessão de CPI’s que refletem brigas políticas e a tentativa de permanente desestabilização do governo para se alcançar o poder.
Discussões importantes, como o pacto federativo, são deixadas de lado para atender a busca de manchetes em jornais e revistas como uma casa que investiga (o que é função da polícia). O Senado nestes termos tem se alçado a uma falsa condição de guardião da moralidade. Quando o legislativo, no lugar de debater grandes temas nacionais, se impõe como sua principal função a investigação, corre o risco de se mostrar desnecessário perante a opinião pública brasileira, uma vez que assume uma função para qual não tem competência técnica.
A característica conservadora demonstrada neste ensaio, assim como a ausência de uma postura de defesa dos interesses dos estados membros, que possa compensar a inexistência de mecanismos processuais constitucionais adequados para o exercício desta função de representação dos entes federados, tem transformado o Senado em uma casa protelatória, que inviabiliza a aplicação de políticas públicas adequadas, que são exigidas com maior rapidez diante de um mundo em constantes e rápidas mudanças.
A adoção de um federalismo descentralizado e unicameral, mantendo-se a simetria jurídica como mecanismo de busca da redução das desigualdades regionais e sociais, pode ser um importante mecanismo de transformação de nossa sociedade. O poder executivo tem se mostrado, em nossa história democrática recente, como o poder mais próximo das aspirações populares, e para que este poder exerça de forma adequada suas funções, necessita de um legislativo ágil, transparente, e que repercuta a vontade do povo por meio de um diálogo permanente. É necessário para o país um diálogo permanente entre executivo e legislativo fundado em idéias e projetos nacionais e não em suspeitas, delações, ameaças e investigações que têm, na maioria das vezes, finalidade de desestabilização do governo. Não podemos manter a lógica de uma oposição que faz de tudo para inviabilizar o governo para chegar ao poder. Quando esta oposição vira situação então é a vez da antiga situação, agora na oposição, fazer de tudo para prejudicar o novo governo para então voltar ao poder. Quem perde com isto somos todos nós.
Um legislativo ágil, que se renova a cada eleição, e que responde à necessidade de debate e construção de projetos nacionais demandados pela população, e, portanto, em constante dialogo com a população e com o executivo, pode ser um importante instrumento de transformação posto a serviço do povo. A isto poderíamos somar o fim da profissionalização da política e dos políticos com a generalizada proibição da reeleição, mas isto já é outra conversa.




[1] Em cada distrito eleitoral é realizada uma eleição majoritária que pode ser em um ou dois turnos para a escolha do deputado daquele local.
[2] A combinação do sistema distrital majoritário e distrital proporcional ou mesmo o proporcional puro, onde um percentual de vagas no parlamento é preenchida por um e outro sistema, como ocorre hoje na Alemanha.
[3] Já estudados anteriormente neste texto.
[4] MARGADANT, Guillermo F. El Derecho Japonês actual, Editora Fondo de Cultura Econômica, México, 1993, página 38.
[5] KNEIPP, Bruno Burgarelli Albergaria. Federalismo belga: a busca da superação da intolerância, in, MAGALHAES, José Luiz Quadros, Pacto Federativo, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2000, pág. 116.
[6] STEIN, Ekkerart. Derecho Político, editora Aguillar, Madrid, 1983, pág. 49.
[7] PECES-BARBA, Gregório. La Constitucion Espanola de 1978 – un estúdio de derecho e política, Fernando Torres-editor, Valencia, 1984, pág.67.
[8] Obra de leitura obrigatória é a do Professor José Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria Geral do Federalismo, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1986. O professor Baracho, como carinhosamente er chamado pelos seus alunos, construiu uma obra de referencia em matéria de Direito Constitucional, Teoria do Estado e da Constituição.
[9] Um aspecto interessante do nosso Senado é o fato do Senador poder pertencer a partido ou coligação diferente do governo estadual. Isto na prática política pode muito mais prejudicar o estado do que ajudá-lo. Em países como Canadá e Alemanha, o Senador deve ser indicado ou mesmo membro do governo estadual, só assim haverá a correta representação dos interesses do estado membro, que tem um governo legitimamente eleito pelo voto popular. No caso canadense ocorre uma outra preocupação: pode ocorrer que a maioria dos governos estaduais seja de partido ou coligação diferente do governo federal. Como o sistema canadense é parlamentar, os governos seriam sempre viáveis uma vez que sempre teriam maioria na Câmara. Neste caso, entretanto, embora com maioria na Câmara o governo enfrentaria um Senado hostil, o que prejudica a aplicação das políticas governamentais.
[10] A literatura sobre federalismo usa a denominação “federalismo de dois níveis” para referir-se aos modelos federais em que coexistem as esferas de governo da União e dos Estados-membros. Para tratar do federalismo brasileiro, que incluiu os municípios como mais uma esfera, é comum encontrarmos a expressão “federalismo de três níveis”. No entanto, faremos uso neste trabalho, apenas da denominação “esferas da federação”, ao invés de “níveis da federação”. Isto porque a palavra nível dá a idéia de hierarquia, o que inexiste na forma federal de Estado, na relação entre seus entes.
[11] Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, (Direito Constitucional, Tomo II, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2002, as características principais do Estado federal. Deixamos claro que o que difere o Estado federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, em que o ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário a intervenção ou a aprovação dessa Constituição por outra esfera de poder federal. Isso caracteriza a essência da federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasileiros participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte derivado. Não estamos afirmando que os Estados-Membros, a União e os municípios são soberanos, pois soberano é o Estado federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no poder constituinte originário. O que afirmamos é que no Estado federal, além da repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também – e isso só ocorre no Estado Federal – a repartição de competências legislativas constitucionais. Essa repartição de competências constitucionais implica a participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações. Entretanto, esse poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, por esse motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. A Constituição de 1988 estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados-Membros) e de terceiro grau (se dos municípios), subordinados à vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal.

1335- Por um novo constitucionalismo - por uma nova democracia - Coluna do prof. Jose Luiz Quadros de Magalhães

DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO: UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA

O constitucionalismo não nasceu democrático. E demorou muito tempo para se democratizar. Precisamos recuperar algumas informações históricas para entender este processo.
O Estado moderno (a partir de 1492) foi construído a partir de uma aliança entre nobreza, burguesia e o rei, aliança esta que ainda é claramente visível na atualidade europeia, basta ler aquela horrorosa revista de teoria do estado chamada "Caras". Lá vamos ver por exemplo o ridículo coroamento do rei da Holanda em meio a crise europeia. Das três esferas de poder territorial (império, reino e feudo) o estado moderno é construído a partir da afirmação do poder do rei sobre os senhores feudais (nobres), e da aproximação dos burgueses que, necessitando da proteção do rei, ajudam a financiar a construção do estado moderno. A insurreição dos servos ameaça o poder e posição de nobres e burgueses, que passam a necessitar da proteção do poder real, ou seja, de um poder centralizado, hierarquizado e uniformizado.
Assim, o capitalismo moderno se desenvolve a partir da necessária proteção do rei (do estado) para crescer. Não é possível capitalismo sem estado. O estado moderno cria o povo nacional, o exercito nacional, a moeda nacional, os bancos nacionais, a polícia nacional. Sem isto não teria sido possível o desenvolvimento da economia capitalista. A expansão militar, a conquista do mundo, a exploração de recursos naturais com a escravização de milhões de pessoas consideradas inferiores, é fator fundamental para o desenvolvimento da economia capitalista. A polícia como mecanismo de repressão dos excluídos do sistema é outro fator primordial. Forças armadas para buscar recursos naturais para alimentar a indústria e polícia para reprimir os explorados que produzem.
O segundo passo do estado moderno será o surgimento do constitucionalismo. As revoluções burguesas representam o amadurecimento da classe burguesa que se desenvolve sob a proteção do rei. Importante perceber esta aliança que está presente até hoje nos estados contemporâneos (ainda modernos). A burguesia se desenvolve sob a proteção do poder do rei, e é justamente quando esta classe consegue mais poder econômico que a nobreza que então passa a buscar o poder político. Este poder político é conquistado com as revoluções burguesas. A partir deste período vamos assistir alianças ou rupturas provisórias com uma posterior acomodação do poder entre nobres e burgueses que se sustenta na Europa até hoje.
O constitucionalismo moderno surge da necessidade burguesa de segurança nas relações econômicas, nos contratos. Constitucionalismo significa, portanto, “segurança”.
O constitucionalismo nasceu liberal e logo, não nasceu democrático. Constitucionalismo e democracia são palavras e ideias incompatíveis para o pensamento liberal na época. Convém neste momento explicitar os significados históricos dos termos.
Os burgueses, agora com poder político, conquistado a partir do poder econômico, necessitavam de uma ordem jurídica estável, que lhes garantisse estabilidade, respeito aos contratos e a propriedade privada. A essência do constitucionalismo liberal será a “segurança” nas relações jurídicas por meio da previsibilidade, respeito aos contratos e proteção a propriedade privada. Agora, pela primeira vez, existia uma lei maior que o estado: a constituição. A função da constituição liberal é de afastar o estado da esfera privada, das decisões individuais dos homens proprietários (mulheres, não brancos e pobres não tinham vez neste estado liberal). Assim, os burgueses, que cresceram sob a proteção do rei e do estado moderno, agora construíam uma ordem jurídica que lhes garantia liberdade para expansão segura de seus negócios. Mais uma vez lembramos: não há capitalismo sem estado moderno. É o estado moderno que permite o desenvolvimento da economia capitalista com o exército (para conquista de territórios com a finalidade de exploração de recursos e de mão de obra)[1] ; com a polícia para reprimir os excluídos (pobres reprimindo pobres); com a moeda nacional e os bancos nacionais; com o direito nacional para padronizar, homogeneizar, e logo, coibir toda crítica, toda alternativa.
O constitucionalismo nasceu liberal (e logo, não democrático) com o objetivo de limitar o poder do estado frente aos direitos de homens, brancos, proprietários e ricos. A liberdade individual, fundada na propriedade privada, passa a ser a essência do novo ordenamento jurídico. Constitucionalismo significa segurança, e segurança é expressa no constitucionalismo pela busca de estabilidade econômica e social por meio da pretensão de permanência da constituição.
A norma constitucional é capaz de oferecer segurança uma vez que é superior a todas as outras normas e poderes do estado. A norma constitucional, portanto, traz estabilidade uma vez que se pretende permanente. Superioridade da norma constitucional; rigidez constitucional (dificuldade de alterar o texto constitucional); mecanismos eficazes de controle de constitucionalidade das leis e atos; significam estabilidade, permanência e logo, segurança.
Este primeiro passo do constitucionalismo é muito importante. Agora existia uma ordem jurídica constitucional superior a todo poder do estado. Entretanto esta ordem não era democrática. Os liberais, defensores da propriedade privada, da decisão individual, não podiam aceitar a democracia majoritária. O liberalismo, elitista e não democrático em sua essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e logo sobre a vontade de cada um. O liberalismo vitorioso das revoluções burguesas viria garantir a liberdade de escolha individual de homens proprietários. A democracia majoritária se apresentava como incompatível com o liberalismo. Neste período, as constituições garantem direitos individuais de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas da população. As constituições liberais estabelecem o voto censitário.
O século XIX assiste um processo de transformação importante. A formação da identidade operária (o sentimento de classe operária) faz parte das novidades surgidas neste século. A situação de milhões de trabalhadores, depositados em fábricas, trabalhando todos os dias, a maior parte de suas horas de vida diária, permite que gradualmente, estas pessoas, compartilhando a mesma situação de opressão e exploração no mesmo espaço (a fábrica) se organizem e comecem a reivindicar juntos melhores condições de vida.[2] Este é o momento de proliferação de sindicatos, considerados ilegais pela ordem liberal que os reprimia com direito penal e polícia, assim como é o momento de surgimento de boa parte dos partidos políticos modernos, especialmente os partidos de esquerda, vinculados aos sindicatos e ao movimento operário como os partidos socialistas, trabalhistas, sociais democráticos e comunistas (muitos postos na ilegalidade pelo sistema liberal).[3]
Aos poucos, os operários começavam a sentir as profundas contradições do liberalismo. A promessa de uma ordem social e econômica sem privilégios hereditários (que aparecia no senso comum do discurso liberal) não se concretizou e a nova ordem mostrava-se cada vez mais próxima à ordem anterior. Os grandes proprietários copiavam os costumes e práticas da nobreza. As leis produzidas nos parlamentos eleitos pelo voto censitário[4] eram sempre contrárias aos interesses da maioria. O trabalhador era sistematicamente punido e a pobreza era criminalizada. A conquista do voto igualitário masculino teve a participação determinante do movimento operário. É a partir deste momento que começa a ocorrer o "casamento" entre constituição e democracia.
Importante ressaltar que não se trata de uma fusão de conceitos: democracia e constituição não são e não podem deixar de ser, conceitos distintos. Um existe sem o outro e a importante convivência entre estes dois conceitos é (em uma perspectiva da democracia representativa majoritária e do constitucionalismo moderno) sempre tensa. Uma convivência difícil mas necessária. Isto é o que vamos discutir agora.

Democracia “versus” constituição

Comentamos acima que o constitucionalismo moderno não nasceu democrático e o seu processo de transformação, e lenta democratização, ocorreu por força dos  movimentos sociais do século XIX, especialmente o movimento operário, os sindicatos e a constituição dos partidos políticos vinculados às reivindicações e lutas operárias.
Vimos que a função primeira de uma constituição liberal era oferecer segurança aos homens proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de permanência e superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social e econômica para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários.
Ao contrário da constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação, mudança?
A dicotomia entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que se encontra na raiz de nossas vidas (ocidentais). Ao contrário de uma perspectiva contraditória cultural entre busca do novo (risco) e busca de segurança; a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o universo de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação. O próprio universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser humano, como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de transformação permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos outra característica essencial. Somos seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um grau de autonomia racional razoável. Do ponto de vista psicológico, o que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de transformação, a busca do novo. Logo, uma sociedade livre e democrática, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de risco na medida em que é uma sociedade em mutação permanente.
Temos então a equação do constitucionalismo democrático moderno. A tensão permanente entre democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e permanência; transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos, aparentemente contraditórios, é uma busca constante. Democracia constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco minimamente previsível; mudança com permanência.
Importante lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e, portanto, como limite às mudanças. O papel da constituição moderna é reagir às mudanças não permitidas. Já, a democracia, é entendida como democracia majoritária e representativa.
A base da teoria da constituição moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático. Como é oferecida esta segurança?
Para que a Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas, modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto. As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal); processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária para que a constituição acompanhe as transformações ocorridas pela democracia representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com a segurança, nem mudar nada o que acaba com sua pretensão de permanência. Daí que não pode a teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas (emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição. Isto representaria destruir a essência da constituição: a busca de segurança. De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a não transformação da constituição por meio das mutações interpretativas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua essência, a busca de segurança.
Este é o equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno democrático, considerando democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição enquanto limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que protege os direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se pode compreender as teorias modernas da constituição.
Permanece ainda uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se pretende democrática), de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre uma defasagem entre as transformações da sociedade democrática e as transformações da constituição democrática. O que decorre desta equação é o fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essência da constituição e da democracia (permanência x transformação; segurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A teoria da constituição apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no que se refere a realidade social, cultural, histórica, econômica).
Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica democrática constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só por meio de um movimento inequivocamente democrático será possível (ou justificável) a ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática justifica a ruptura com a constituição, está ruptura só será legitima se for para, imediatamente, estabelecer uma nova ordem constitucional democrática.
Assim a democracia só poderá legitimamente superar a constituição se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constituição democrática. A democracia acaba com a constituição criando uma nova constituição a qual esta democracia se submete. Esta é a lógica histórica do constitucionalismo democrático moderno. Veremos mais adiante como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais a lógica contramajoritária.

Os problemas da democracia majoritária

O “casamento” entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de proteger a minoria, e cada um, contra maiorias que podem se tornar autoritárias, ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão se transformar em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites, transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição democrática (moderna, democrática representativa e majoritária) são os direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela constituição contra maiorias provisórias que em determinados momentos históricos podem ceder a tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a seguinte: pode a população, majoritariamente e livremente, escolher um regime de governo não democrático? O exemplo não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de democracia é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a democracia. Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas de organização históricas, assim como as formas de participação e construção da vontade comum em uma sociedade também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na maioria das vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos ocidentais.
Mas voltando a discussão realizada dentro do paradigma moderno de democracia constitucional ocidental (europeia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir democraticamente contra a democracia. A estes mecanismos de proteção às conquistas históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajoritários. Em momentos de crise podem os cidadãos cederem às tentações autoritárias e reacionárias e a função da constituição é reagir a estas mudanças não permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a proibição do “retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável, e por isto, talvez, muitas vezes, falsa.
Um exemplo claro disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso? Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso?
Outro aspecto é necessário ressaltar a respeito da democracia majoritária. O voto, confundido muitas vezes com a própria ideia de democracia, é na verdade um instrumento de decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso, e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão.
Interessante notar que cada vez mais, o tempo do debate, da exposição das opiniões está cada vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de democracia semidireta, o espaço dedicado ao debate de ideias e propostas se reduz. Cada vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, ideia. A opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto, ideia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos vitoriosos e derrotados.
Assim, tanto no legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial.
A democracia consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos fundamentais.
Vejamos.

Conclusão: A democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano.

Uma vez compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais.
Comecemos pela democracia. Ao contrário da democracia moderna essencialmente representativa, a democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos representativos majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam, mas, sim, que devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados de construção de consensos.
A proposta de uma democracia consensual deve ser compreendida com cuidado no paradigma do estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta democracia deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de dominação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as formas de violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o diálogo a ser construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos prévios, construídos por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração a necessidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações sociais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura.
A partir desta descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro.
Os consensos construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da democracia. Daí posturas novas precisam ser inauguradas. A postura não hegemônica deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos argumentos. Não se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate. Não é possível compreender uma democracia consensual com os instrumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição permanente. Nenhum consenso se pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela necessidade de decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção de maiorias.
Compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais.
Como a democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são construídas por maiorias, mas, sempre, por todos, a constituição não necessita mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de mecanismos contra-majoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria como fator de decisão.
Assim, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos permanentemente. O Estado e a constituição no lugar de reagir a mudanças não previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes.
Trata-se de uma nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de Estado, Constituição e Democracia. Um conceito fundamental para desenvolvermos e aprofundarmos a discussão é o de pluralismo epistemológico. Esta será a nossa próxima análise.



[1] CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
[2] ELLEY, Geoff. Forjando a democracia, ob.cit.
[3] SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
[4] George Burdeau comentando a Constituição burguesa francesa de 1814 comenta que não esteve em questão em nenhum momento a adoção do sufrágio universal pelos liberais. Estes consideravam o sufrágio universal como algo grosseiro. O direito de sufrágio não é considerado um direito inerente a qualidade de homem. O voto depende da capacidade dos indivíduos e a fortuna aparecia como uma forma de demonstrar atitude intelectual e maturidade de espírito, além de garantir uma opinião conservadora típica (é claro) dos ricos. Neste período o direito de voto depende de uma condição de idade (30 anos) e uma condição de riqueza. Para poder votar era necessário pagar 300 francos de contribuição direta, o que para época era uma quantia considerável. Para se candidatar as exigências eram ainda maiores: 40 anos de idade e pagar 1.000 francos de contribuição direta. Em toda França o numero de eleitores não passava de 100.000 (1 eleitor para cada 300 habitantes) e o numero de pessoas que podiam se candidatar não passava de 20.000. (BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316).