ÉTICA, COTIDIANO E CORRUPÇÃO
JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
Violências...
O
filósofo esloveno Slavoj Zizek em sua obra "Sobre la violencia: seis
reflexiones marginales"
desenvolve três conceitos de violência que são importantes para entendermos os
equívocos das políticas de encarceramento e aumento das penas e controle sobre
as pessoas. Zizek nos fala de três formas de violência:
a)
Uma violência subjetiva que representa a decisão, vontade, de praticar um ato
violento. A violência subjetiva representa a quebra de uma situação de
(aparente) não violência por um ato violento. A normalidade seria a não
violência, a paz e o respeito às normas (normalidade) que é interrompida por um
ato de vontade violento.
b)
A violência objetiva, diferente da violência subjetiva é permanente. A
violência objetiva são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes
relações que se reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente,
desigual, opressiva e repressiva.
c)
A violência simbólica é também permanente. Esta violência se reproduz na
linguagem, na gramática, na arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda, e
outras formas de representação. Para entendermos melhor, podemos exemplificar a
violência simbólica presente na gramática: em diversos idiomas os sobrenomes se
referem exclusivamente ao pai ou ainda, o plural, no idioma português, por
exemplo, sempre vai para o masculino. Assim, se estiverem em uma sala 40
mulheres e um homem, diremos: "eles estão na sala". O plural para uma
mulher passeando com um cachorro será: "eles estão passeando". A
violência simbólica, assim como a violência estrutural, objetiva, atuam
permanentemente.
Assim,
de nada adianta construirmos políticas públicas de combate à violência
subjetiva sem mudarmos as estruturas socioeconômicas opressivas e desiguais
(violentas) ou todo o universo de significações e representações que reproduzem
a desigualdade, a opressão e a exclusão do "outro" diferente,
subalternizado, inferiorizado.
Um
exemplo interessante: a escola moderna é um importante aparelho ideológico,
reproduzindo a mão de obra necessária para ocupar os postos de trabalho que
permitirão o funcionamento do sistema socioeconômico assim como reproduzindo os
valores e justificativas necessárias para que as pessoas se adequem e não questionem
seriamente o seu lugar no sistema social (e no sistema de produção e
reprodução). A escola, portanto, tem a fundamental função de uniformizar
valores e comportamentos. O recado da escola moderna é: adeque-se; conforme-se;
este é o seu lugar no sistema.
Simbolicamente,
a escola moderna diz diariamente isso aos seus alunos, por meio do uniforme.
Sem o uniforme, a meia, a calça, a camisa e os sapatos da mesma cor, o aluno
não pode assistir a aula. Durante muito tempo, e ainda hoje em algumas escolas
uniformiza-se os cabelos, o andar, o sentar, e claro mas um monte de outras
coisas mais profundas como o pensar, o desejar e o gostar. A criança desde cedo
deve se vestir da mesma forma, se comportar da mesma maneira, palavras mágicas,
sem as quais as portas não se abrem. Pois bem, vamos ao problema: a criança,
mesmo que não seja dito por meio da palavra (o que também ocorre),
simbolicamente percebe, diariamente, todo o tempo, que não há lugar para quem
não se normaliza, uniformiza. O recado muito claro da escola moderna é: o
uniformizado é o bom; não há lugar para o diferente (não uniformizado); para o
que se comporta diferente, se veste diferente, ou de alguma forma não se
enquadra no padrão. É claro que esta criança, processando o recado permanente
(dito e repetido de várias formas) irá compreender que o padrão é bom e o
diferente do padrão é ruim. No seu universo de significados em processo de
construção, o diferente deve ser excluído, afastado, punido, uma vez que o que
foge ao padrão não pode assistir a aula, não pode sequer permanecer na escola.
Logo, quando esta criança percebe alguém ou algo em alguém que para ela, é
diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor; a forma do corpo; da fala; do
olhar) esta criança irá de alguma forma reagir a ameaça do diferente, excluindo
e punindo o diferente "ruim".
Em
outras palavras, a escola moderna ensina diariamente a criança a praticar o
"bullying". Vejamos então a ineficiência das políticas de combate à
violência, à discriminação, à corrupção que padecem, todas, deste mal. No
exemplo descrito acima, a escola, o estado, os governos, criam políticas
públicas pontuais de combate ao "bullying" (a tortura mental e
agressão física decorrente da discriminação do "diferente") ao mesmo
tempo que mantém uma estrutura simbólica que ensina a discriminação (o
"bullying").
Voltamos
aos conceitos de violência: toda política de combate à violência; às drogas; à
corrupção, serão sempre ineficazes se não se transformarem as estruturas
sociais e econômicas que permanentemente criam as condições para que esta
violência subjetiva se reproduza, assim como o sistema simbólico que continua,
da mesma forma reproduzindo a violência. Para acabar com a violência subjetiva
só há uma maneira: acabar com a violência simbólica e objetiva. Para acabar com
o "bulling" na escola só mudando as estruturas uniformizadoras e
excludentes presentes diariamente na escola; para acabar com a corrupção só
transformando o sistema social e econômico e de valores (condições objetivas e
simbólicas) que reproduzem as condições para que esta (a corrupção) se torne
parte da estrutura social e econômica vigente.
Neste
artigo pretendemos trazer algumas reflexões (preocupações) sobre a relação
entre "ética, cotidiano e corrupção", o que faremos a partir das
premissas teóricas acima desenvolvidas. De nada adiantarão as constantes
políticas pontuais de combate a corrupção na vida de nosso país, se estas
políticas atacarem apenas os efeitos de forma repressiva e (ainda pior) com o
direito penal, o aumento do controle e da punição. Os resultados serão
enganosos, sempre, se não respondermos algumas perguntas: porque a corrupção¿
Quais são os elementos estruturais e simbólicos em nossa sociedade que
reproduzem as condições para a corrupção?
O direito penal não resolve.
Nesta
perspectiva podemos trazer nossas reflexões para o Brasil, 2012, segundo
semestre, às vésperas das eleições municipais.
O
pano de fundo do julgamento é construído pela insistente campanha dos
principais meios de informação (a grande mídia) que aposta na punição dos
excluídos, dos não enquadrados, dos não uniformizados e normalizados. As
cidades, a exemplo da Paris do Barão Haussmann (1853-1867), não é para todos. A
higienização urbana (a exclusão dos pobres) continua sendo a mais nova política
urbana do século XXI. O direito penal é a grande aposta. A ideia também não é
nova. Se voltarmos ao século XIX nos reencontramos com este morto vivo que
perambula pelo século XXI. A brutal concentração de riquezas causada pela
aposta em uma economia naturalizada que recompensará o mais ousado e eficaz
competidor no mercado gera a exclusão; a exploração radical do trabalho; a
desigualdade, e com esta, a crescente insatisfação, que se traduz em rebeliões
difusas de um lado (o que se pode chamar de uma criminalidade
"comum") e rebeliões políticas de outro lado (que são também
criminalizadas pelo Estado ocupado pelos grandes proprietários). Em meio a
tamanha insatisfação causada pela desregulamentação econômica que agrava a
concentração de riqueza e deixa livre os grandes proprietários para o abuso do
poder econômico (qualquer semelhança com a atual crise não é mera
coincidência), a resposta do Estado será (estamos no século XIX) mais direito
penal; mais encarceramento; mais controle social; mais polícia; mais manicômios
e presídios. Toda uma justificativa ideológica é construída para explicar a
situação. Os problemas econômicos não são sistêmicos mas atribuídos às condutas
de alguns indivíduos. A criminalidade tampouco é sistêmica, e não se reconhece
nenhuma conexão desta com o sistema econômico, social e cultural do
liberalismo. Se existe crime é por causa dos indivíduos que escolhem o caminho
do mal ou são doentes mentais. O poder do Estado, nas mãos dos proprietários,
define o que é crime, normalidade e pecado, o que, é claro, são as condutas dos
pobres excedentes do sistema econômico. Este retrato do século XIX restaurado
com cores falsas no final do século XX é colocado em grandes imagens
globalizadas no século XXI. Este é o pano de fundo para o "espetáculo"
transmitido diariamente para todo o país. Onze juízes, vaidosos, com poses e
gestos, com capas pretas até o tornozelo, sentindo-se a consciência moral do
país, julgam e condenam sem provas mas segundo "indícios fortes"
(alegação transmitida e gravada pela TV para todos ouvirem). Não, não estamos
no século XVI. O mais interessante é a coincidência do julgamento com as
eleições municipais.
O
julgamento dos políticos envolvidos na acusação, coincide, quase, com o dia do
pleito eleitoral municipal de 2012. Coincidências a parte, lembramos que os
fatos que envolvem o julgamento foram utilizados para uma tentativa de
"golpe de estado" contra o presidente eleito democraticamente e no
poder em 2005 (no novo formato de golpe utilizado em Honduras e Paraguai - o
golpe parlamentar travestido de falsa legalidade).
Não,
o direito penal não resolverá a corrupção. A corrupção está na estrutura e nas
representações simbólicas de um sistema social, econômico e político
intrinsecamente corrupto. A corrupção está no futebol de toda semana; na fila
furada; na propina diária; nas pequenas vantagens; a corrupção está na sala de
aula; no assinar a presença sem estar presente na aula; na mentira na mídia; na
mentira e no encobrimento; na notícia distorcida; nas coincidências... No jogo
do roto e do esfarrapado só um é mostrado como tal. Assim como vimos apoiadores
da ditadura acusando democratas de autoritários, assistimos corruptos "históricos"
pronunciando discursos históricos de moralidade.
Efetivamente,
o direito penal não resolverá a corrupção. Lei de "ficha limpa"; o
espetáculo televisivo da ação penal 470 (realizado por uma mídia que se tornou
autista); isto não resolverá a corrupção. Felizmente alguma coisa está fora da
ordem (como diria Caetano). Por algum momento "eles" (na verdade o
"nós" no poder) perderam o controle do monopólio da desinformação
diária. A mídia alternativa mostra o que a grande mídia (que defende a
liberdade dos donos dos meios de comunicação e não a liberdade de imprensa) não
mostra, mas propositalmente esconde. O "autismo" em que se lança a
mídia pode ser um sinal de esperança para a conquista da liberdade de
expressão. O "julgamento do século" como insistiu a grande mídia, não
mobilizou ninguém e ainda nos expos ao pior, à ameaça e comprometimento do Estado
constitucional e democrático por uma prática que lembra um "tribunal de exceção" (condenação
por indícios). Alias, o que vemos revelado nas telas da TV é o que acontece com muita
frequência, de forma não revelada, com os pobres.